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Description:Ao final da tarde de dia 30 de Dezembro de 1972, por volta das 19h30, uma mulher aproximou-se do microfone colocado junto ao altar da Capela de Nossa Senhora da Bonança, a «Capela do Rato», situada no nº 1-B da Calçada Bento da Rocha Cabral, em Lisboa. Anunciou que se encontrava ali em nome de um grupo de cristãos para «comunicar uma decisão e pôr um problema a toda a comunidade», lendo uma declaração que dava conta de uma vigília de 48 horas, em jejum, como forma de protesto contra a guerra colonial.
O celebrante da missa que acabara de terminar, o padre João Seabra Diniz, disse estar surpreendido com o gesto, mas deixou à consciência de cada um dos presentes a posição a tomar em face do repto lançado por aquela mulher, Maria da Conceição Moita, e pelo pequeno grupo que a acompanhava. Informado mais tarde do que se passava na capela pela qual era responsável, o padre Alberto Neto fez saber que desconhecia que aquela iniciativa iria ocorrer, mas que não se opunha a ela.
No dia seguinte, um domingo, celebraram-se as missas habituais das 11h e das 12h30, em que os oficiantes, os padres António Janela e Armindo Garcia, em lugar de proferirem homilias, leram um texto redigido em conjunto com o padre Alberto Neto, onde afirmavam, entre o mais: «Seja qual for a nossa posição diante deste gesto, ele tem um sentido interpelativo de tal densidade que não o podemos ignorar».
A última expressão parecia fazer eco dos versos da «Cantata da Paz» de Sophia de Mello Breyner («Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar»), entoada numa anterior iniciativa do mesmo grupo de católicos, levada a cabo na Igreja de São Domingos, na passagem de ano de 1968 para 1969, a qual visava igualmente denunciar, através de uma vigília pela paz, a guerra colonial e a atitude complacente da hierarquia da Igreja perante ela. Por vicissitudes várias, com destaque para a intervenção discordante do pároco da igreja, essa jornada não teve a projecção desejada, o que não dissuadiria os seus promotores, desde há muito empenhados na oposição à ditadura, de lançarem novas acções de protesto. Entre eles, destacavam-se os nomes de Luís Moita, antigo sacerdote, que em 1967 se doutorara em Ética na Universidade Lateranense de Roma, do arquitecto Nuno Teotónio Pereira, do advogado e jornalista Francisco de Sousa Tavares, do advogado Vítor Wengorovius, da pedagoga Catalina Pestana e de Bart Reker, padre holandês da Congregação dos Sagrados Corações.
No Verão de 1972, enquanto passava férias no Algarve, Luís Moita tinha amadurecido a ideia de realizar uma nova vigília contra a guerra. Logo que chegou a Lisboa, partilhou o projecto com Nuno Teotónio Pereira, seu amigo e companheiro de muitas lutas, e – segundo depoimento do próprio Moita – com Francisco Cordovil, estudante de Economia que, no decurso da vigília, viria a ser responsável pela articulação com as Brigadas Revolucionárias (BR) e com os grupos de católicos que, às portas de várias igrejas de Lisboa, distribuiriam panfletos sobre os debates em curso na Capela do Rato, também conhecida por «Capela da JEC» [Juventude Escolar Católica], exortando a que aí comparecessem para uma jornada pela paz – a qual, naquele contexto, era naturalmente um gesto de oposição ao regime.
Enquanto isso, no interior do templo, aprovavam-se moções que condenavam a cumplicidade dos bispos portugueses «na política de exploração colonial praticada pelo governo fascista português», prosseguindo os debates sob o lema «A Paz é Possível», que o Papa Paulo VI anunciara como consigna das celebrações do Dia Mundial da Paz de 1973. Os participantes, cujo número máximo terá oscilado entre 200 e 300 pessoas, organizaram-se em assembleias, cujos coordenadores foram escolhidos no próprio local, fosse para discutirem a presença portuguesa em África (com destaque para o papel da Igreja no colonialismo), fosse para abordarem especificamente o tema da guerra ultramarina. Uma segunda moção, aprovada na tarde de dia 31 de Dezembro, considerava, entre o mais, «justa a luta dos povos das colónias». Horas depois, chegaria ao local uma mensagem de solidariedade enviada por um grupo de católicos do Porto, que tinha no advogado Mário Brochado Coelho uma das suas principais figuras.
Cerca das 19 horas, as forças policiais começaram a concentrar-se em redor da Capela e, pelas 20h30, já se encontravam lá dez carrinhas com polícia de choque e cães, além de mais viaturas de outras forças de segurança. Com o trânsito controlado e os acessos à igreja cortados, seguiu-se um breve compasso de espera, após o que um graduado da PSP, o capitão Américo Maltez Soares, entrou no templo e, por volta das 20h45, deu aos presentes um prazo de dez minutos para que abandonassem o local. Estes não só não acataram a ordem como começaram a entoar em coro «Perdoai-lhes, Senhor, que eles não sabem o que fazem», o que levou diversos agentes da PSP a entrar na capela e a arrastar pela força os que resistiram. Noventa e uma pessoas foram colocadas em duas carrinhas, que as conduziram à esquadra situada no antigo Convento das Trinas do Rato, no largo com o mesmo nome. Depois de identificadas, a esmagadora maioria delas foi posta em liberdade, mas catorze – a saber, Nuno Teotónio Pereira, José Luís Galamba de Oliveira, Maria Benedita Galamba de Oliveira, Francisco Pereira de Moura, Homero Cardoso, Luís Moita, Manuel Coelho Carvalho, João Cruz Morais Camacho, João da Fonseca Quá, Francisco Louçã, Hermenegildo José Carmo Lavrador, Jorge Wemans, João Pimentel e Miguel Teotónio Pereira – foram levadas para as instalações do Governo Civil de Lisboa e, já de madrugada, para a prisão de Caxias, onde permaneceram detidas cerca de quinze dias à guarda da Direcção-Geral de Segurança, a sucessora da PIDE.
O episódio, que talvez pudesse ter terminado aqui, adquiriu repercussão nacional e internacional, convertendo-se num «caso», em larga medida devido à reacção das autoridades. No dia seguinte, 1 de Janeiro, os padres António Janela e Armindo Garcia, concertados com o padre Alberto Neto e com D. António Ribeiro, desrespeitaram a ordem policial que mandara encerrar a capela e aí celebraram missa, após o que foram detidos e levados para a sede da polícia política, na Rua António Maria Cardoso. Ali acorreu, num gesto inédito, o Patriarca de Lisboa, o qual afirmou que só abandonaria o local acompanhado dos dois sacerdotes – que foram de facto libertados ao fim de pouco tempo. O governo de Marcello Caetano, que abordou o tema na suas «Conversas em Família» transmitidas pela RTP, teve outro gesto de força – «exibição de força, demonstração de fraqueza», anotaria Vergílio Ferreira no seu diário – e demitiu os doze funcionários públicos que tinham sido detidos na Capela do Rato, acto que foi impugnado junto do Supremo Tribunal Administrativo pelos advogados Francisco Salgado Zenha, Francisco de Sousa Tavares e Jorge Sampaio, e que suscitou diversas acções de solidariedade com os demitidos, à cabeça dos quais se encontrava Francisco Pereira de Moura, professor do Instituto Superior de Economia, antigo procurador à Câmara Corporativa e líder da Comissão Democrática Eleitoral.
A 10 de Janeiro, o Patriarcado de Lisboa emitiu uma nota sobre os acontecimentos, que, apesar de considerada demasiado ambígua e tímida por vários dos protagonistas da vigília, representou uma tomada de posição notável da Igreja sobre um protesto contra a ditadura. Dias depois, em 27 de Fevereiro, o caso da Capela do Rato motivaria uma acesa troca de palavras entre o deputado da «ala liberal» Miller Guerra e o «ultra» Cazal-Ribeiro, levando a que aquele se demitisse da Assembleia Nacional, facto que, a juntar-se à demissão de Francisco Sá Carneiro, constituiu um golpe profundo nas esperanças de renovação do regime a partir de dentro, acabando a seu modo por contribuir, ainda que remotamente, para a eclosão do 25 de Abril de 1974.
O contexto do protesto
A vigília pela paz da Capela do Rato inscreve-se num movimento de dissidência de alguns sectores católicos perante o Estado Novo, que remontava, pelo menos, aos tempos da campanha eleitoral de Humberto Delgado, em 1958, e ao pro memoria do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, e que se prolongou na década de 1960 através de diversos episódios, como a presença de católicos na revolta da Sé, no golpe de Beja e na crise académica de 1962, na «rebelião» no Seminário dos Olivais (em 1967-68), no surgimento de publicações como Direito à Informação, O Tempo e o Modo, Concilium, Cadernos Necessários, África Livre, Cadernos sobre a Guerra Colonial. Colonialismo e Lutas de Libertação, A Palavra e o Tempo, Cadernos de Reflexão da JUC, do Boletim Anticolonial (BAC) e dos Cadernos GEDOC, nas actividades do Movimento de Renovação da Arte Religiosa, da editora Moraes, do Círculo do Humanismo Cristão, do Centro Nacional de Cultura e do Centro Cultural de Cinema, ou na criação das cooperativas culturais Pragma e Confronto, além de cooperativas de consumo, como a LISCOOP, de Manuel Bidarra.
Os ventos de renovação eclesial trazidos pelo Concílio Ecuménico do Vaticano II, bem como a acção de Paulo VI, que em 1964 visitou Bombaim por ocasião do Congresso Eucarístico aí realizado, a par do prosseguimento, sem fim à vista, da guerra colonial em África, e da explosão contestatária em várias partes do mundo, fosse a favor dos direitos dos negros americanos, fosse contra a guerra no Vietname, fosse do Maio de 68 em Paris, reforçaram numa minoria de católicos o sentimento de que era necessário abandonar o modelo inconsequente do oposicionismo do «stencil e do policopiador», feito à base de papéis e de abaixo-assinados, e passar a formas mais radicais e directas de «acção». Alguns sacerdotes, de resto, já haviam trilhado caminhos de maior confronto com as autoridades, com destaque para os párocos de Belém e da Lixa (Felicidade Alves e Mário de Oliveira, respectivamente), pelo que, no seio do oposicionismo católico, um pequeno núcleo mais activo e ousado decidiu passar aos actos, visíveis e projectáveis para a opinião pública no seu todo, primeiro com a vigília de São Domingos, depois com a da Capela do Rato, as quais procuraram ser, antes de mais, jornadas que, pela sua espectacularidade e impacto, sinalizassem a existência de crentes descontentes com a natureza ditatorial do regime e com a guerra que este empreendia, bem como com a atitude complacente da hierarquia da Igreja perante aquele estado de coisas.
O protesto do Rato ocorre, pois, num momento de desilusão perante as promessas liberalizadoras trazidas por Marcello Caetano, e surge também no contexto da subida de António Ribeiro ao Patriarcado de Lisboa. Havia, assim, o efeito de uma dupla renovação: uma, na esfera política, que se afigurava bloqueada e gasta, e que começara até, como sempre sucede na agonia e no estertor das ditaduras, a dar sinais de endurecimento e de clausura; outra, na esfera eclesial, que ainda não se mostrava perfeitamente nítida na direcção que haveria de tomar, já que D. António, tendo um estilo claramente diferente de Gonçalves Cerejeira, seu antecessor, parecia preferir a prudência do silêncio e a ambiguidade dos gestos, em que tanto condenava a invasão de um templo pelas forças policiais como acabava por, em finais de 1973, afastar o padre Alberto Neto das funções de responsável pela Capela da JEC, nomeando-o coadjutor da paróquia de S. João de Brito.
Se estas são as coordenadas em que se processou a vigília, um dos seus traços mais originais – e controversos – foi ter-se realizado em articulação com um dos movimentos de luta armada que à época despontavam, as Brigadas Revolucionárias, de Carlos Antunes e Isabel do Carmo, naquilo que foi, de resto, um caminho de aproximação à «acção directa» que, antes ou depois, seria trilhado por algumas vanguardas contestatárias católicas da Europa e da América Latina.
Cinquenta anos volvidos, ainda hoje é difícil determinar com precisão o grau de envolvimento e de cooperação entre os católicos contestatários portugueses e as BR, sendo ele descrito de formas muito distintas em função dos vários protagonistas – mais acentuado numas situações, menos visível noutras. Parece exagerado dizer-se, como o pretenderam alguns dirigentes das Brigadas, que a vigília foi uma acção da sua autoria, por si planeada e organizada, do princípio ao fim. Parece mais seguro concluir que elas desempenharam um papel instrumental, mas decisivo, nalgumas dimensões do protesto, nomeadamente na distribuição de panfletos e de propaganda por vários pontos de Lisboa, feita através da deflagração de explosivos de baixa potência que, ainda assim, causaram ferimentos graves em duas crianças e provocaram natural comoção e alarme social. O regime e os seus adeptos mais fervorosos não deixaram de aproveitar esta cumplicidade revolucionária para questionar a pureza e o pacifismo dos propósitos da jornada do Rato, verberada por publicistas que falaram de «terrorismo de capela», ou por então jovens jornalistas, como Alberto João Jardim, que atacaram aquilo que era, em seu entender, uma contradição entre as palavras e os actos: entre os apelos à paz feitos na capela e o recurso à violência nas ruas de Lisboa.
A ligação de alguns membros do núcleo organizador da vigília às BR – com destaque para Nuno Teotónio Pereira e para Luís e Maria da Conceição Moita – prosseguiu nos primeiros meses de 1973, e redundaria na prisão dos católicos em finais do ano e sua sujeição a brutais torturas e sevícias. A relativa tolerância do momento da vigília, quando que as detenções não duraram mais de quinze dias, mudou radicalmente e, no dia 25 de Abril de 1974, Teotónio Pereira e os irmãos Moita encontravam-se presos em Caxias, aguardando longas e duras penas de prisão.
Contexto internacional
O «caso da Capela do Rato» teve uma assinalável repercussão externa, evidenciada, por um lado, na imprensa de outros países e, por outro, na correspondência diplomática, seja das representações estrangeiras em Lisboa ou das portuguesas no estrangeiro. No dia 4 de Janeiro de 1973, no diário Komsomolskaia Pravda, órgão oficial da Organização da Juventude Soviética, podia ler-se uma breve notícia:
«Agência TASS. Paris. Na noite do primeiro de Janeiro, a polícia de Lisboa deteve 12 participantes de uma manifestação religiosa pacífica, que se realizou num dos templos da capital de Portugal sob a palavra de ordem "Serviço em nome da paz". Transmite de Lisboa a agência France Press. Os manifestantes tencionavam realizar uma discussão pública sobre a guerra que, durante muitos anos, o militarismo português conduz contra a população das suas colónias africanas.»
Três dias depois, o Pravda, órgão do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética, noticiava:
«Cerca de 50 católicos progressistas portugueses, reunidos num dos templos de Lisboa, declararam uma greve de fome em sinal de protesto contra a guerra colonial realizada por Portugal em África. A eles juntaram-se mais cerca de cem pessoas. Os grevistas lançaram um apelo às forças progressistas do país para criarem um comité nacional da paz».
Se a censura à imprensa acabava por abrir um intransponível fosso entre a verdade nacional (para usar uma expressão de Gustavo Cordeiro Ramos) e a verdade real, em muitos casos as distorções não se devem exclusivamente à falta de liberdade de imprensa. O Pravda falava de um apelo à criação de um comité nacional da paz, apelo que nunca foi feito. De facto, se olharmos para o que diziam os jornais estrangeiros, encontraremos muitas imprecisões, algumas delas indesculpáveis: um artigo do Frankfurter Rundschau, que a Embaixada de Portugal em Bona fez chegar a Lisboa em 9 de Fevereiro de 1973, informava da existência de uma vigília na Igreja de São Domingos (sic), interrompida por uma «acção policial espectacular» que levou à detenção de duzentas pessoas, entre as quais o «arquitecto António Pereira» (sic). A notícia tinha toques romanescos, veiculados também pelo The Guardian, aludindo a «homens robustos vestidos à paisana [que] agarraram energicamente uma mulher com dois filhos e tiraram-na para fora da Igreja de São Domingos de Lisboa e metendo-a num carro preto». Após esta cena, retirada de uma novela de espionagem, o jornal alemão dizia que «a polícia do Estado se sente ameaçada como há muito já não acontecia », sem no entanto indicar em que se baseava para extrair tão retumbante conclusão. Possivelmente mais próxima da realidade estava outra análise do Frankfurter Rundschau: «parece que a correlação de forças na clandestinidade portuguesa mudou e, no lugar dos anarquistas e comunistas, tornaram-se activos principalmente os católicos».
Um artigo publicado no Le Soir em 15 de Janeiro de 1971, da autoria de Colette Braeckman, enviada de Bruxelas a Lisboa, não falava de uma liderança católica da oposição, mas da possível aliança entre cristãos e outros dissidentes. Para que se tenha uma ideia da dimensão das repercussões internacionais deste caso – e da importância das redes de solidariedade em funcionamento –, o nº 29 do boletim da Portuguese Canadian Democratic Association (Março de 1973), de Toronto, trazia uma ampla notícia sobre os acontecimentos, chegando a publicar os principais documentos relativos ao caso. Segundo aquele boletim, vários católicos estavam a ser encaminhados ao gabinete do secretário do Ministro do Interior, onde, perante um juiz e um militar (o capitão Cascais), eram confrontados com um questionário elaborado pelo próprio Ministro. Muito longe dali, a embaixada portuguesa em Brasília fazia chegar a Lisboa panfletos distribuídos nos círculos portugueses no Recife, alguns dos quais se destacavam por um radicalismo que parecia contestar a própria oportunidade da vigília, dizendo: «a festa do Natal é aproveitada pela burguesia para fazer propaganda da paz». Nos Estados Unidos, registam-se manifestações contra o colonialismo português em Boston, em Julho de 1973. Já antes, em 22 de Janeiro desse ano, a Embaixada em Washington informa as Necessidades que pedira ao Departamento de Estado um reforço de segurança, não apenas nas suas instalações, mas também na missão de Portugal, nos consulados, na Casa de Portugal e nos escritórios da TAP em Nova Iorque. O Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros guarda diversos documentos – e até objectos, como autocolantes ou crachás – de acções de contestação à política de Caetano, nomeadamente pelo boicote à aquisição de produtos portugueses. Sensivelmente por essa altura, o Comitato italiano di sostegno alla lotta Portoghese contro la dittatura distribui em Milão, à porta do Teatro Lírico, onde iria actuar Amália Rodrigues, panfletos dizendo que a cantora era «objectivamente cúmplice do regime fascista português». O boletim informativo desse comité, com o título Osare lottare, osare vincere, noticiará, no seu número de Março, a prisão em Lisboa, no início do ano, de trinta católicos. Na Haia, distribuem-se cartazes das Brigadas Revolucionárias.
Se não é possível aquilatar da intensidade da acção dos diversos grupos de solidariedade com os oposicionistas que por essa altura florescem por toda a parte, o seu número é por si só revelador: a título de exemplo, podem citar-se a Comissão de Apoio aos Prisioneiros Políticos (Bélgica), a Comissão de Auxílio aos Presos Políticos (Bélgica), a Comissão de Auxílio aos Prisioneiros Políticos Portugueses (Suécia), o Comité Francês para a Libertação dos Presos e Exilados Políticos em Portugal e Espanha, o Comité Italiano para a Restauração das Liberdades Democráticas em Portugal, o Comité Pró-Amnistia dos Presos e Exilados Políticos de Portugal e Espanha (Venezuela), o Comité Uruguaio Pró-Amnistia dos Presos e Exilados Políticos de Portugal e Espanha, o Comité Venezuelano em Prol da Democracia e da Liberdade em Portugal, a Conferência Canadiana para a Amnistia aos Presos e Exilados Políticos Portugueses, o Conselho Ibérico-Americano para a Libertação dos Presos Portugueses e Espanhóis, a par de iniciativas concretas como a Conferência sobre a Tortura (Paris, Abril de 1971).
A capacidade para estabelecer contactos com o exterior não se cingia já às organizações tradicionais e mais estruturadas; pequenos grupos de orientação mais radicalizada conseguem estabelecer pontes e criar redes na Europa. A organização O Grito do Povo, por exemplo, impulsionada por Pedro Baptista e por José Pacheco Pereira, cria laços com a direcção de O Comunista, de Paris; igualmente no Porto, os núcleos gerados em torno da cooperativa Confronto, da editora Afrontamento e dos Cadernos Necessários – que Cunhal atacará, chamando-lhes «uns tantos "Cadernos" teorizantes» –, estabelecem contactos com a esquerda radical não maoísta, principalmente italiana, nomeadamente com os grupos Il Manifesto, Avanguardia Operaia e Lotta Continua, que mostravam um interesse crescente pela situação portuguesa. De Paris, João Freire viaja até Itália, em 1969 e 1970, na esteira de Manuel Villaverde Cabral, e aí estabelece contactos de resto, pouco frutíferos com membros dos grupos Potere Operaio e Lotta Continua, indo também à Bélgica, entre outros lugares, apoiar os mineiros grevistas do Limbourg. Segundo João Freire, com o apoio de gente de Lovaina, Fernando Belo publicava os Cadernos Necessários. Muito do património ideológico da extrema-esquerda é trazido por portugueses vindos do estrangeiro: Francisco Sardo surgiu com o trotsquismo da Liga Comunista Revolucionária (de Alain Krivine e Daniel Bensaïd); Torcato Sepúlveda e Pinho Monteiro enviam do exílio o internacional-situacionismo; o espontaneísmo da forma maoísta do MRPP é teorizado «para português» por Amadeu Lopes Sabino e Sebastião Lima Rego. É também à luz deste estado de coisas na cena internacional que devem ser situadas as notícias relativas ao caso da Capela do Rato – nem sempre veiculadas pela imprensa.
Como é evidente, aquelas notícias reflectiam a linha ideológica dos periódicos que as divulgavam. O órgão oficial do Partido Comunista Italiano, L‘Unitá, fala de uma «brutale irruzione in una chiesa di Lisbona», adiantando que tinham sido detidas oitenta pessoas, entre as quais Pereira de Moura, Teotónio Pereira, Luís Moita e o jornalista da Flama Homero Cardoso. Para este jornal, as bombas que explodiram em Lisboa eram «di limitata potenza», ideia partilhada pelo Avanti!, que falava em engenhos de «potenza relativamente ridotta», expressão também usada pelo Avvenire. O Rhodesia Herald tinha, como é natural, uma opinião diferente: depois de intitular que Lisboa foi varrida por uma nova vaga de explosões («Lisbon hit by new outbreak of bombings»), refere os ferimentos nas crianças e diz que os engenhos eram potentes («crudely made but powerful devices»), atribuindo a autoria dos atentados à Acção Revolucionária Armada (ARA). Os jornais sul-africanos tinham também uma visão negativa, intitulando as notícias de forma carregada: «Bomb blasts rock Lisbon» (The Star, de 2-I-1973) ou «Blasts rock Lisbon» (Pretoria News, de 2-I-1973). Mais tarde, os jornais da Rodésia informariam que a polícia portuguesa se encontrava no encalço de dois homens que se faziam transportar num carro branco, tendo as investigações abrangido, inclusivamente, a região do Algarve. «Lisbon hunt for anti-war bombers», noticiava o Rhodesia Herald.
Saliente-se, em todo o caso, que as publicações estrangeiras, mesmo sem os constrangimentos da censura, acabaram por destacar exactamente os mesmos aspectos dos jornais portugueses, dando maior realce às explosões – e aos ferimentos em crianças – do que à vigília pela paz. Tal não significa dizer que o encontro do Rato e a repressão que sobre ele se abateu foram esquecidos pela imprensa mundial. As representações diplomáticas portuguesas apressaram-se a fazer chegar a Lisboa essas notícias, veiculadas pelos órgãos de comunicação social estrangeiros. O problema é que alguns deles eram próximos da Igreja, como La Chiesa nel Mondo, cujo nº 7, de Fevereiro de 1973, «renova os ataques contra Portugal», para usar as palavras do embaixador Eduardo Brazão, em aerograma enviado para Lisboa a 13 de Fevereiro daquele ano. Aquela publicação limitava-se, em boa verdade, a transcrever a Nota do Patriarcado, extraída de La Croix, e uma carta-aberta da «Comunidade do Rato», de 21 de Janeiro. Aliás, o artigo do La Croix já havia sido remetido de França, pela embaixada em Paris. No texto que acompanha a Nota do Patriarcado, o La Croix refere que, na jornada pela paz no Rato, participaram «muitas centenas de pessoas», que cerca de dez viaturas da polícia chegaram por volta das 20h30 do dia 31 de Dezembro, tendo preso aproximadamente vinte pessoas.
Mais incisiva era a apreciação dos semanários católicos The Tablet e The Catholic Herald. Os textos são de tal forma perturbadores que o Ministério dos Estrangeiros redige uma súmula, numa extensa nota que envia à Direcção-Geral de Segurança. O Tablet, na sua edição de 20 de Janeiro, veiculava informações fornecidas pelo Conselho Mundial das Igrejas, segundo as quais o Patriarca de Lisboa, procurado por alguns membros do grupo que organizou a jornada do Rato, teria dito que ela não constituía um acto cristão, pelo que não reprovava qualquer possível atitude repressiva da polícia. A notícia de The Tablet descreve com bastante rigor e pormenor o que se passara no Rato, apontando para a concentração de cerca de trezentas pessoas, e não omitindo sequer a prisão dos padres Janela e Garcia, além dos nomes, recorrentemente citados, de Teotónio Pereira e de Pereira de Moura. No telegrama que envia para Lisboa, o embaixador António de Faria termina expressivamente: «como era de esperar, relato fornecido Tablet “por cortesia Conselho Mundial Igrejas” e aproveitado por aquele semanário omite qualquer referência explosões bombas e vítimas que causaram».
Mais tarde – bastante mais tarde –, a Esprit fará uma resenha muito completa dos acontecimentos, desde os incidentes do Rato às prisões de finais de 1973, numa nota assinada «A. F.» [Ariane Favre], com o título «Les cris du peuple».
Da África do Sul, o Rand Daily Mail fazia uma análise política do evento, dizendo que a detenção dos contestatários poderia significar um aumento de tensão («degree of nervousness») no Governo por causa das explosões ocorridas em Lisboa e da proximidade das eleições. Já The Rhodesia Herald, enviado pelo consulado-geral de Portugal em Salisbúria, limitava-se a dar notícia em breves linhas, acrescentando, todavia, que informações não confirmadas davam conta da existência de dois sacerdotes entre os detidos. Para esse periódico, à jornada em prol da paz teriam comparecido cerca de duzentos dos «chamados católicos progressistas». As Necessidades transmitiam muitas destas notícias ao Ministério do Ultramar e à Direcção-Geral de Segurança.
A vigília pela paz, como se vê, não passou despercebida nos meios de informação internacionais. Em todo o caso, foi dado maior destaque à questão dos ferimentos em crianças provocados pelos rebentamentos de explosivos na capital portuguesa. Em alguns casos, os títulos são elucidativos: «Bombas ferem três crianças em Lisboa» (Diário de Brasília, de 3-1-1973); «Bombas ferem crianças em Lisboa» (Folha de S. Paulo, de 2-1-1973); «Drei Kinder verletzt» (General Anzeiger, de 2-1-1973); «Kinder durch Bomben verletzt» (Frankfurter Rundschau, de 2-1-1973); «Sette bombe a Lisbona. Feriti tre ragazzi» (La Stampa, de 2-1-1973); «Bomb blasts hit Lisbon, three hurt» (Evening Press, de 1-1-1973); «2 injured in Lisbon blasts» (Evening Press, de 2-1-1973); «Children hurt by Lisbon bomb» (Irish Times, de 1-1-1973); «Children hit by bomb blast» (Daily Mirror, de 1-1-1973); «Children injured in bomb blast» (Liverpool Daily Post, de 1-1-1973). Mesmo os periódicos que não colocavam os ferimentos nas crianças nos títulos davam grande destaque a esse facto na respectiva notícia, como sucede com os venezuelanos El Universal e Últimas Noticias, os italianos L’Avvenire, Il Popolo, Notte, ou Paese Sera, o francês Le Figaro, o brasileiro Folha da Tarde, os ingleses The Times, The Daily Telegraph e Western Mail. As duas vagas bombistas seriam objecto de atenção por vários órgãos de comunicação social estrangeiros, como os italianos Corriere della Sera, Il Secolo d’Italia, Il Globo, os sul-americanos El Universo ou Jornal de Brasília e até o argelino El Moujahid. Por seu turno, o correspondente em Lisboa do periódico espanhol ABC, José Salas y Guirior, utiliza um estilo original para descrever o incidente, ainda que haja alguns lapsos na notícia que transmite a Madrid. «Como siempre, la Policía actuó con rapidez. Una vez más se comprobó que los autores que depositaron los artefactos furtivamente en lugares tan propicios como papeleras, cajas de correo y sitios de basuras, fueron jóvenes bien vestidos y de aspecto acomodado», escreveu.
Depois, há jornais que procuram fazer o enquadramento político das acções bombistas, mas sem grande rigor. Assim, por exemplo, The Daily Telegraph estabelece uma ligação entre o PCP e as Brigadas Revolucionárias, quando, na verdade, esses grupos não só não tinham quaisquer laços como até rivalizavam pela hegemonia do terrorismo doméstico. A confusão era tão grande que, em Dar-es-Salam, um porta-voz da FRELIMO se vê na contingência de desmentir rumores de envolvimento daquela organização nas explosões de Lisboa, imputando-as à ARA (ligada ao PCP) ou às BR. Por seu turno, The Rhodesia Herald, como se viu, atribui erroneamente a autoria dos atentados à ARA. Já Die Welt pretende ver – também erroneamente – as explosões como um «prelúdio das eleições parlamentares». O título do artigo de Die Welt é ilustrativo: «Portugal: Bomben zum Auftakt der Wahlen». Este jornal tenta, aliás, estabelecer um nexo causal entre as eleições francesas e as explosões, aludindo a um suposto apoio do Partido Comunista Francês à acção bombista ocorrida em Lisboa. Outro periódico alemão, o Frankfurter Allgemeine Zeitung, numa extensa notícia do seu correspondente em Madrid, que tratava quer da acção policial na Capela do Rato, quer da explosão de bombas em Lisboa, dizia que a detenção de Pereira de Moura tinha um significado especial para a oposição da CDE no próximo acto eleitoral. Le Monde dizia que fora detido «Pereira Moura, professor de economia de renome internacional, católico de esquerda, e um dos dirigentes mais estimados da oposição democrática ao governo de M. Caetano». Não era essa, sublinhe-se, a opinião de alguns sectores mais radicais da oposição; por essa altura, nas páginas do jornal A Voz do Desertor, Pereira de Moura será apelidado de «neo-colonialista notório», por ter sido candidato da CDE nas eleições de 1969 – o que constitui uma manifesta injustiça, dada a sua presença, ainda que discreta, na Capela do Rato, e as consequências que esse gesto teria para a sua carreira académica.
O texto em que se procede a uma tentativa mais elaborada de análise do caso, situando-o num contexto internacional, pertence provavelmente a Santana Mota, correspondente de O Estado de S. Paulo em Lisboa. Com o título «A paz e a política», o artigo, saído em 14 de Janeiro, é muito parcial, mas vale a pena ser transcrito pelo comentário que faz:
«Os chamados católicos progressistas insistem, por toda a parte, em criar dificuldades às relações da Igreja com o Estado.
Portugal não podia fugir à regra. A concentração de oito dezenas de fiéis católicos numa pequena igreja de Lisboa com o fim de praticarem jejum durante 48 horas em prol da paz, e mais particularmente contra a “guerra colonial”, é daquelas manifestações que não podem deixar de causar atrito entre os dois poderes.
O Estado, se não interfere, permite que o exemplo frutifique e que a subversão se utilize de um bom disfarce para alcançar os seus fins.
A Igreja, por seu turno, inibida de condenar um ato que aparentemente corresponde aos propósitos do próprio Papa, também não pode deixar de verberar a interferência da política nos seus domínios particulares.
É verdade que os fiéis concentrados na tal igreja com “tão humano e religioso propósito” tiveram a infeliz tática de se deixar citar como exemplo pelos panfletos espalhados na cidade por meio das explosões dos engenhos terroristas que deflagraram no último dia do ano findo em vários pontos de Lisboa.
Uma tão estranha solidariedade e afinidade não podia deixar de ser suspeita, quer à Igreja quer aos poderes de segurança civil. Mas se aos primeiros era fácil intervir sem qualquer contemplação pelos propósitos ocultos ou manifestos de tal “jejum”, já o mesmo não acontecia com a Igreja.
De qualquer forma os aludidos fiéis haviam-se recolhido a um pequeno templo católico para implorar a Deus a paz que o pontífice aconselhara por tema de súplica universal. Censurá-los a Igreja por isso seria mais que um contra-senso, seria uma heresia.
Assim, diante de caso tão intrincado, as autoridades religiosas e as autoridades civis decidiram solucionar o problema sem levantar maiores atritos entre ambos.»
Além do carácter inusitado do protesto, e do facto de o mesmo decorrer no interior de uma capela da Igreja, considerada um dos esteios do regime, a sua coincidência temporal com a revelação dos massacres de Wiriyamu, feita pelo padre Adrian Hastings, um sacerdote católico, demonstrava a existência de graves fissuras quer no catolicismo português, quer na esfera eclesial como um todo, patentes na acção de Paulo VI, que atrás se referiu.
Os «contestatários do Rato» visavam, acima de tudo, denunciar a guerra colonial e a cumplicidade da Igreja no esforço bélico, não tendo propriamente um programa político ou um modelo de sociedade alternativo, partilhado por todos. Depoimentos prestados por alguns dos líderes da jornada, anos depois, permitem sustentar que, ao menos para alguns deles, como Nuno Teotónio Pereira, a Tanzânia de Nyerere, com a sua ideia de «socialismo africano» (Ujamaa), recolhia apreço, admiração até, mesmo que não fosse considerada um modelo transponível para a realidade portuguesa. De qualquer modo, muitos dos participantes na jornada – gente da elite de Lisboa, altamente escolarizada – mostravam indisfarçável simpatia pela causa terceiro-mundista e pela busca de alternativas aos dois grandes blocos da Guerra Fria, fosse no quadro dos «não-alinhados», fosse através de caminhos próprios.
Há notícia de conexões, mesmo que incipientes, a grupos estrangeiros, como aquele que Joaquín Ruiz Giménez reunira em torno dos Cuadernos para El Diálogo. No entanto, em termos comparativos, o protesto do Rato ficou a larga distância fosse dos sit-ins que então se realizavam nas universidades americanas, fosse das sentadas que, nas igrejas de Espanha, sobretudo do País Basco, se rebelavam contra a repressão franquista.
Na vigília do Rato conflui também uma «internacional de referências» composta por muitos acontecimentos e figuras, desde Che Guevara a Martin Luther King, passando por Dom Hélder Câmara, pela «pedagogia do oprimido» de Paulo Freire, pelos questionamentos eclesiais e políticos da Igreja pós-conciliar. Ao mesmo tempo, e como é evidente, o contacto com redes de emigração clandestina, a experiência dos desertores, as organizações destes em vários países da Europa, o eterno fascínio por Paris e as viagens ao estrangeiro, por motivos pessoais e profissionais, criaram em muitos dos participantes na vigília sentimentos cosmopolitas de pertença a um mundo mais vasto e a noção – em parte libertadora, em parte opressora – de que Portugal se afastava cada vez mais desse mundo, como o comprovavam, de resto, as sucessivas derrotas que o país averbava nas Nações Unidas.
Para esse «internacionalismo» contribuiu também a própria estrutura transnacional da Igreja, o universalismo da sua mensagem e, a par dele, a circulação de pessoas, informações e ideias que Roma propiciava. Um dos organizadores do protesto, Luís Moita, estudara na Cidade Eterna, não sendo aliás caso único. A sua irmã, Maria da Conceição Moita, estivera em Paris com amigos, assistira lá a um filme sobre Luther King e, quando tentou projectá-lo na Igreja de Santa Isabel, foi proibida pela PIDE, facto que recordou como fulcral na sua radicalização. Nuno Teotónio Pereira, por seu turno, mantinha desde há muito numerosos contactos internacionais, tendo inclusive estado em Cuba. Em suma: não é exagero dizer-se que, sem ter procurado mimetizar experiências estrangeiras, desde logo pela disparidade de meios e de possibilidades de actuação, a vigília do Rato teve-as presentes, talvez como modelo inspirador, ainda que em termos algo difusos e naturalmente distantes.
Um balanço possível
Cinquenta anos depois, é possível dizer-se que, seja pelo tempo, seja pelo modo, a vigília do Rato constituiu o gesto de maior impacto público da oposição católica ao Estado Novo, mesmo não tendo a relevância de outros episódios, como o protagonizado pelo bispo do Porto. Levada a cabo por um pequeno grupo de meia-dúzia de católicos (Nuno Teotónio Pereira, Luís e Maria da Conceição Moita, Francisco e João Cordovil, António Matos Ferreira e José Galamba de Oliveira), com apoio das Brigadas Revolucionárias e dos meios estudantis, ela foi capaz de mobilizar outros segmentos da população, inclusive não-crentes, e beneficiou muito da peculiar conjuntura política e social do crepúsculo do marcelismo.
Não tendo tido sequência nem dado azo a protestos posteriores – ao contrário, por exemplo, das sucessivas ondas de «sentadas» nas igrejas que assolaram a Espanha franquista –, a vigília da Capela do Rato constituiu acima de tudo um gesto simbólico, como de resto era propósito dos seus organizadores. Esse simbolismo viria a revelar-se decisivo para a imagem da Igreja portuguesa no pós-25 de Abril, permitindo-lhe apresentar-se com algumas credenciais democráticas por ocasião da Revolução: sintomaticamente, Teotónio Pereira tomou a palavra na manifestação do 1º de Maio de 1974 em nome dos «católicos progressistas». De maneira talvez paradoxal, os católicos do Rato prestaram um involuntário serviço à instituição que criticavam; do mesmo passo, também contribuíram para questionar de maneira mais vasta a guerra colonial e, sem dúvida, para o paulatino desgaste do regime que a prosseguia. Efémera na duração e limitada no alcance, protagonizada por um número ínfimo de contestatários ousados e corajosos (as «minorias abraâmicas» enaltecidas por D. Hélder Câmara), a vigília da Capela do Rato alcançou objectivos muito superiores aos meios de que dispunha, em larga medida por culpa da reacção excessiva das autoridades. Sem receio de exagero, pode dizer-se que se saldou num incontestável triunfo, mesmo que na altura poucos se tenham apercebido disso, a começar pelos seus organizadores. É essa a singular vantagem do tempo e da perspectiva da História.
Nota: a primeira parte deste texto foi publicada na revista Visão/História, nº 74, 2023. [show more]
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