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Zoffmann Rodríguez, ArturoZoffmann Rodríguez, Arturo
Trabalho domésticoTrabalho doméstico
Description:Durante séculos, o conceito ocidental de família encontrou fundamento no “tripé do patriarcado”, exercido sobre três formas de subordinação: da mulher perante o homem, do filho perante o pai, do criado perante o amo. Para a crítica das duas primeiras formas de subordinação, destaca-se o papel do feminismo para a erosão do modelo patriarcal, ou dos estudos históricos e sociológicos que conduziram à progressiva valorização ontológica e social da criança enquanto portadora de direitos próprios. A última forma de subordinação não ocupou, contudo, uma história das ideias com o mesmo peso das primeiras duas. Em Portugal, na década de 1950 ainda era possível encontrar a apologia do serviçal doméstico enquanto naturalmente obediente, e inferior, ao seu Senhor. A partir do final da década de 1960, as palavras “serviçal” ou “criada” foram substituídas por “trabalhador(a)/empregada (o) doméstica(o)”. Apesar da mudança na nomenclatura, este trabalho continuou a manter traços de servilismo, pois que acorrentado à sua natureza informal, invisível e difícil de escrutinar pelas leis do trabalho. À escala global, as sociedades sustêm formas de subordinação destes trabalhadores ao arrepio de quaisquer direitos e, por essa razão, a história do trabalho doméstico é uma de perpetuação de desigualdades de género, de classe e de raça sem rival. Em Portugal, uma mulher que fosse trabalhadora doméstica interna, na década de 1950, podia continuar a ser declarada como “não-remunerada”, desde que, trabalhando por conta de um não-parente, não recebesse remuneração, embora retribuída com cama e mesa. Porém, esta forma de desvalorização não é recente. Fatores históricos, sociais, económicos e culturais justificam-na. O arranque dos processos de industrialização num conjunto de países da Europa Ocidental, desencadeados a partir dos finais do século XVIII, assinala os primeiros movimentos migratórios em massa do campo para a cidade. Aconteceu em Inglaterra, França, Alemanha, Espanha, como também em Portugal, com importantes variações de cronologia. Estas travessias humanas estão bem assinaladas na narrativa histórica dominante. Porém, tal narrativa tende a escamotear a dupla face, feminina e masculina, das migrações. Se os camponeses chegavam à orla das cidades para trabalhar nas fábricas, fortalecendo o ideal da masculinidade obreira e produtiva, jovens camponesas destituídas de mais qualidades além de serem mulheres sem alfabeto partiam à procura de trabalho doméstico. A revolução silenciosa provocada por trabalhadores que, no campo, se agarravam às ervas para terem o que comer, mas dali fugiram, é de enorme relevância para a história do trabalho doméstico. É a partir desse momento histórico que irá começar a sua progressiva desvalorização, ligada a uma crescente feminização e não-especialização, plasmadas na reconhecida categoria de “criadas para todo o serviço”, recrutadas por famílias de classe média. Correspondendo a um padrão de “life-cycle servant” (Laslett 1977), jovens raparigas, muitas vezes ainda crianças, iniciavam trabalho no espaço privado, ficando subordinadas à tutela dos amos, a maior parte das vezes até contraírem matrimónio, outras vezes contribuindo para as estatísticas do celibato feminino, unidas por laços de fidelidade aos senhores da casa. O recrutamento de crianças menores de 12 anos para o serviço doméstico é uma realidade que, na década de 1940, colhe mais de 15% do total de recrutamento de criados em Portugal. Afinal, esta é a causa que explica a raiz da palavra “criada”, pois que os patrões assumiam o dever de “criar” os criados da casa, e o ordenamento jurídico atribuía aos primeiros poderes de proteção, cuidado e tutela, correção e punição sobre os últimos (Código Civil de 1867). O trabalho doméstico representou um grupo ocupacional maioritário nos séculos XIX e na primeira metade do século XX em muitos países do continente europeu. Era o destino previsível de muitas mulheres a quem a escola havia sido negada e cujo horizonte de expectativas acabava na condição de jornaleira, se não mendiga, sujeita às estações da fome e do frio. O facto de se tratar de um trabalho portas adentro, em coabitação com os patrões, não facilitou o processo de formação de uma consciência de classe coletiva, como também não suscitou o interesse dos sindicatos. O primeiro sindicato, o London and Provincial Domestic Servants’ Union, inaugurado na Oxford Street, é constituído em 1890 (Adams 1989), mas irá embater contra um conjunto enorme de adversidades, em especial o facto de este trabalho não ser interpretado da mesma forma que outros. Em Portugal, o Sindicato do Serviço Doméstico, desvinculado de uma orientação católica, surgiu apenas após a queda do regime salazarista, ao contrário do Sindicato Livre das Empregadas Domésticas, de certa forma ainda dependente da Obra de Santa Zita, cujo papel não deve ser escamoteado. De pendor assistencialista, e ligado à Ação Católica Portuguesa, desenvolveu desde o início da década de 1930 múltiplas ações de alfabetização, catequização, formação profissional e abrigo, à semelhança de instituições congéneres na Europa. Além de não colherem apoio de organismos representativos na esfera laboral, as trabalhadoras domésticas foram continuamente estigmatizadas como desobedientes, falhas de carácter moral, usurpadoras e predadoras sexuais quando, ironicamente, se encontram sobrerrepresentadas nas estatísticas de vítimas de doenças venéreas, de abandono ou de mães solteiras. Este conjunto de estereótipos não se esvaneceu; no início do século XX, foi declarado um problema social. Com efeito, em 1911, “The servant roblema” foi definido pelo Dicionário de Oxford como “a dificuldade de obter e controlar criadas” (Todd 2014). Quatro décadas mais tarde, em Portugal a questão foi enunciada em moldes semelhantes, levando à mobilização de debates parlamentares, relatórios médicos, ensaios eclesiásticos, relatórios policiais e testemunhos patronais. Sem exceção, diversas forças sociais denunciavam a crescente desobediência das trabalhadoras domésticas. Um jovem proprietário da região de Estremoz chegou a endereçar uma carta a António de Oliveira Salazar em torno do iminente perigo de os criados quererem tomar o lugar dos patrões, num gesto de temerosa vingança e inversão da ordem natural das coisas (Brasão 2012: 155). Ao contrário destes receios, não se verificou qualquer sublevação desta classe profissional, e as condições de trabalho não se alteraram. Mas a enunciação do problema das criadas revelava, afinal, que os termos da negociação das condições materiais e imateriais de trabalho estavam a deixar de ser exclusivamente unilaterais. Por outro lado, a enunciação do “problema das criadas” revela aspetos que nos fazem refletir sobre a relação entre a feminização do trabalho e a progressiva degradação e precarização das trabalhadoras, relembrando que, no passado, os criados eram usados como símbolo de status, por oposição às serviçais, em regra menos expostas ao círculo social de visita à casa. O trabalho doméstico remunerado tem um peso significativo nos sistemas sociais, nomeadamente na economia dos cuidados, mas não é acompanhado de reconhecimento económico, social e simbólico correspondente. Este paradoxo é tanto mais penalizador quanto podemos aceitar que ele tem um valor incalculável para as sociedades contemporâneas, assegurando que múltiplos estratos sociais possam emprestar maior qualidade ao tempo livre de que dispõem, sem esgotarem as suas forças na domesticidade reprodutiva ligada à manutenção, higiene, limpeza, alimentação, vigília e cuidado dos mais vulneráveis, no seio da família. Por outro lado, a narrativa histórica do trabalho doméstico permite identificar uma das maiores revoluções na história das mulheres, até há pouco igualmente negligenciada. É justamente à custa da massificação do trabalho doméstico que se deu de forma mais acelerada a emancipação das mulheres de classe média para o mercado de trabalho (tanto na Europa, como na América). Numa fase mais recente, pós-colonial, o recrutamento traduz-se numa forma transmigratória, reproduzindo formas de dominação e de subalternidade em países terciarizados do Norte Global, que voltam a ir colher jovens raparigas e rapazes a países empobrecidos. Países outrora subjugados pelas potências colonizadoras exportam mão-de-obra doméstica para as antigas potências colonizadoras. Os Estados resistem a reconhecer este trabalho, deixando na escuridão e desproteção uma massa predominantemente formada por mulheres. De acordo com a OIT, o trabalho doméstico representa atualmente uma das mais importantes ocupações para milhões de pessoas. Dos 75,6 milhões de pessoas a trabalhar nesta atividade em todo o mundo, 76,2% são mulheres; desse total, apenas 6% tem direito a proteção social de algum tipo. E, ironicamente, a virtude do silêncio surge como a mais distintiva qualidade que um trabalhador doméstico deve cultivar no exercício da sua atividade. [show more]
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Segunda Independência de Timor-Leste (1999-2002)Segunda Independência de Timor-Leste (1999-2002)
Description:A invasão militar de Timor-Leste pela Indonésia, em Dezembro de 1975, suscitou a reacção de diversos agentes políticos. Em Timor, a FRETILIN procurou manter a resistência militar e popular, organizando a administração de “bases de apoio” que inicialmente gozaram de significativa expressão territorial. Portugal condenou a invasão e apresentou o caso na ONU, dando um passo decisivo para a internacionalização do problema, que evitara até ao último momento. A anterior passividade portuguesa agradara sobremaneira à Indonésia, que temia ver os países recém-independentes alinhar contra a sua posição, dificilmente compatível com o princípio da autodeterminação. A Indonésia instalou então um governo provisório, com base em políticos do que fora o Timor Português (nomeadamente da APODETI e da UDT), organizando, em Maio de 1976, um “acto de livre escolha” (logo crismado de “acto de não-escolha”) e arregimentando, sob coacção, líderes tradicionais, procurando dessa forma reproduzir o processo que anos antes havia conduzido na Papua Ocidental/Irian Jaya e que lograra obter reconhecimento da ONU. Através de uma resolução do seu parlamento, a Indonésia proclamou Timor como sua 27.ª província, sob a designação de Timor-Timur (Tim-Tim). Ao longo do tempo, a ONU viria a assumir um papel relevante, mas oscilante. Ainda em Dezembro de 1975 o Conselho de Segurança (CS) se debruçou sobre o tema (com a Resolução 384, aprovada por unanimidade), enviando logo depois o diplomata Vittorio Winspeare Guicciardi ao território, em missão de reconhecimento. Uma segunda Resolução (389) foi aprovada em Abril de 1976, desta vez com a abstenção dos EUA e do Japão. Em ambos os casos, a Indonésia foi admoestada, tendo-lhe sido pedido que retirasse as suas forças militares; ao mesmo tempo, Portugal era repreendido por não conseguir manter a ordem na sua colónia. Até 1999, seria essa a última vez que o CS se debruçaria sobre o problema de Timor-Leste. A Assembleia Geral (AG) da ONU também cedo se pronunciou em sentido crítico (Resolução 3485-XXX, 12 de Dezembro de 1975). Nos anos seguintes, viria a manifestar-se de maneira semelhante, mas o texto das resoluções seria cada vez mais moderado na crítica à Indonésia e nos remédios que propunha, enquanto o número de países que votavam a favor decrescia a olhos vistos. Em 1982, tentou-se um novo caminho: a resolução aprovada na AG solicitava ao Secretário Geral da ONU que procurasse obter um entendimento que incluísse Portugal e a Indonésia – países que pertenciam ambos à zona de influência dos EUA, não havendo por isso uma interferência directa dos problemas relacionados com a Guerra Fria. Javier Pérez de Cuéllar aceitou o encargo, sob condição de que a AG se abstivesse de se pronunciar sobre o caso enquanto durassem as suas diligências, exigência que foi cumprida. Entretanto, entra em cena outra instância da ONU, a Comissão dos Direitos Humanos. No início da década de 1980, a questão do direito à autodeterminação – base da queixa apresentada por Portugal na ONU – havia perdido grande parte da aura moral de que disfrutara em décadas anteriores. Por um lado, a descolonização era agora vista como um processo quase concluído, subsistindo apenas um número reduzido de casos por resolver (como a Namíbia ou o Sahara Ocidental); por outro, a experiência das independências africanas da década de 1960, seguidas pela instalação de regimes cada vez mais vistos como corruptos, enfraquecera a dimensão moral associada à ideia de independência. A isto acrescia a convicção de que os casos pendentes se reportavam a territórios pequenos, pouco populosos, cuja viabilidade enquanto estados autónomos era questionável, segundo vários intervenientes ligados à própria ONU. Em contrapartida, com o alastramento da chamada “terceira vaga de democratização”, ganhavam força as reivindicações de respeito pelos direitos humanos, sendo que a Indonésia era susceptível de críticas severas nesse domínio, dado que a ocupação de Timor-Leste se revestia de uma extrema dureza. Neste contexto, a reivindicação do direito à autodeterminação passou a ser acompanhada pela exigência do respeito pelos direitos humanos, o que alargou a percepção da injustiça que se cometia em Timor-Leste e permitiu fazer chegar o drama a camadas cada vez mais amplas da opinião pública mundial. Os esforços de dois sucessivos Secretários Gerais (Pérez de Cuéllar e Boutros Boutros-Ghali) no sentido de encontrar um entendimento entre Portugal e a Indonésia tiveram alcance limitado. Algumas hipóteses foram contempladas – como a de considerar as eleições legislativas indonésias de 1987 como uma espécie de referendo, mesmo que elas não incluíssem nenhuma pergunta específica sobre o destino do território –, mas não mereceram a concordância de Portugal; outras iniciativas, como a visita de uma delegação parlamentar portuguesa ao território, estiveram em preparação por vários anos (de 1987 a 1991), mas também não deram frutos. Só em 1997, com a eleição de Kofi Annan como Secretário Geral da ONU, o processo viria a desbloquear-se, depois da nomeação de um intermediário, o diplomata paquistanês Jamsheed Marker, amigo do ministro dos Negócios Estrangeiros indonésio, Ali Alatas, mas também muçulmano, o que contribuía para afastar o espectro de uma “guerra religiosa”. Seria neste contexto que viria então a estabelecer-se o acordo de 5 de Maio de 1999, a que voltaremos adiante. A situação vivida no território durante o período de ocupação indonésia era de grande repressão. No período de administração transitória da ONU (1999-2002), seria instituída uma Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR), destinada a fazer um levantamento imparcial e internacionalmente supervisionado dos acontecimentos ocorridos entre 25 de Abril de 1974 e 17 de Outubro de 1999. As suas conclusões são devastadoras: a litania de atos de violência compreende detenções ilegais, tortura, violação, escravidão sexual, casamentos forçados, julgamentos injustos, recrutamento e trabalho sob coação, destruição de casas, culturas e gados, e deslocamentos massivos de populações. Mais impressionante é o número de mortes, quer as directamente provocadas por meios bélicos, quer as indirectamente induzidas, com especial incidência nos anos entre 1975 e 1980, quando a Indonésia usou, por exemplo, aviões OV-10 Bronco (fornecidos pelos EUA) para lançar sobre populações indefesas napalm fabricado na Suíça. O número de vítimas foi estimado entre 102 800 e 186 000. No entanto, dado o carácter parcelar das informações objectivas recolhidas, a própria CAVR admitiu que o número real pudesse ultrapassar as 200 mil pessoas que o Comité Internacional da Cruz Vermelha referiu – o que, em termos relativos, poria Timor-Leste a par dos “killing fields” dos Khmer Rouge do Camboja, onde mais de um quarto da população foi chacinada. Autores como Clinton Fernandes (2023) argumentam mesmo que o comportamento da Indonésia deve ser classificado como genocídio. Além disso, o “desenvolvimento” que os indonésios se gabavam de ter proporcionado, contrastando-o com o marasmo da administração colonial portuguesa, traduziu-se na manutenção de um “estado de neo-subsistência”, em que “um conjunto de variáveis [...] mostra que apesar de elevados níveis de despesa pública, o resultado global da modernização social e económica efectivamente realizada em Timor-Leste foi mínimo” (Nixon 2012: 100). Em 2004, enquanto a República da Indonésia exibia um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) calculado pelo PNUD de 0,692 (111.º país em 177), Timor-Leste não passava de 0,436 (o que punha o território em 158.º lugar, o mais baixo de toda a Ásia). O fosso entre o nível de vida dos ocupantes e o das populações ocupadas era, pois, enorme. A população timorense resistiu como pôde. Numa primeira fase, como já se disse, a FRETILIN organizou a administração de “bases de apoio”. As forças indonésias montaram as operações “Cerco e Aniquilação” – título sintomático do propósito de eliminação física de um grupo étnico-cultural – e “Cerca de Pernas”, em que se colocavam civis (incluindo mulheres e crianças) em frente a unidades militares que faziam cerco aos resistentes; expostos dessa maneira, muitos civis eram abatidos. Graças a esse tipo de tácticas, os indonésios conseguiram estabelecer controlo efectivo sobre o território. A última base da resistência, no Monte Matebian, caiu em Novembro de 1978, e, a 31 de Dezembro do mesmo ano, o líder timorense Nicolau Lobato foi morto em combate. Seguiu-se um longo e penoso processo de reorganização, que viria a ser chefiado por Xanana Gusmão e passaria pela consolidação de uma estrutura tripartida. Contava, em primeiro lugar, com uma frente militar, que se encarregou de prosseguir uma guerra de guerrilha em condições particularmente adversas, visto que não dispunha de nenhum país limítrofe onde pudesse estabelecer “santuário”, nem contava com muitas vias para se reforçar em equipamento. Numa segunda frente, diplomática, sobressai o nome de José Ramos-Horta, conduzindo várias campanhas de sensibilização de governos e da opinião pública internacional, em parte apoiado numa extensa rede de organizações de solidariedade ancoradas nas sociedades civis que estruturavam uma “diplomacia cidadã”. Existia, por fim, uma frente clandestina, que por todo o território enquadrava a crescente oposição ao domínio estrangeiro, animando tanto sectores emergentes (como o movimento estudantil, fruto paradoxal do incremento da escolarização) como outros que inicialmente haviam encarado com simpatia a chegada dos indonésios. A resistência, e o seu reforço com o concomitante alargamento da sua base social e política, constituiu a base mais sólida para a continuada campanha pelo reconhecimento do direito à autodeterminação do território. Este alargamento paulatino viria a ter culminação institucional na constituição do Conselho Nacional da Resistência Timorense (CNRT), numa conferência realizada em Peniche em Abril de 1998 em que foi aprovada a sua Magna Carta, na qual se defendia um nacionalismo democrático e pluralista. A presidência do CNRT foi então atribuída a Xanana Gusmão, detido desde 1992 na prisão de Cipinang, na província de Jacarta. Outros lugares cimeiros couberam a personalidades como José Ramos-Horta ou Mari Alkatiri, que se tinham distinguido desde o início do processo, a par de individualidades que inicialmente haviam colaborado com os indonésios (como Mário Viegas Carrascalão, governador entre 1982 e 1992), ou que eram tidas como próximas da Igreja Católica Timorense. A eleição de 1998 dos corpos dirigentes do CNRT constituiu o culminar de um processo iniciado por volta de 1982. Naquele ano de 1982, Xanana Gusmão, então líder da FRETILIN (que se afirmava como partido marxista-leninista e havia efetuado purgas internas, entre as quais foi vítima o primeiro presidente da República Democrática de Timor-Leste, Francisco Xavier do Amaral), encontrou-se com o administrador apostólico de Díli, Monsenhor Martinho da Costa Lopes, que em 1977 havia substituído o bispo D. José Joaquim Ribeiro à frente da diocese, quando aquele prelado, vergado pelo peso do erro que havia cometido ao saudar a invasão indonésia, resignou ao cargo. A Igreja Católica havia sido um esteio da administração colonial portuguesa, tendo o próprio D. Martinho sido deputado na Assembleia Nacional, em Lisboa, entre 1957 e 1961. D. José Joaquim referira-se aos paraquedistas indonésios como “anjos vindos do céu para nos libertar”, para mais tarde se dar conta de que eram “piores que os demónios do inferno”. Entretanto, a partir da II Guerra Mundial a Igreja local havia procedido à “timorização” dos seus quadros, fazendo recrutamento local de padres, e por isso acompanhava com proximidade o sofrimento das populações. O encontro entre Xanana e D. Martinho trouxe uma novidade: o prelado apelou ao guerrilheiro para que “abandonasse o marxismo” e “abraçasse a causa de todos os timorenses”, via que, anos mais tarde, Xanana haveria de seguir, quando em 1987 recusou continuar a liderar a FRETILIN e transformou as FALINTIL (até aí o braço armado do partido) em forças armadas apartidárias, assumindo-se, portanto, como chefe de uma Resistência pluralista. Esse gesto projectou-o como líder nacional e contribuiu para a emergência de um nacionalismo pluralista, com contornos inéditos. Por sua vez, a Igreja Católica Timorense não perdeu tempo em afirmar a sua autonomia em relação à sua congénere indonésia e mesmo, em certa medida, em relação ao Vaticano, cujas posições tinham uma dose de ambiguidade, alegadamente para não alienar os seus cinco milhões de devotos no grande arquipélago indonésio. Graças a isso, a Igreja Católica Timorense veio a assumir um papel de relevo, não só na colaboração com as estruturas formais da Resistência Timorense, como sobretudo no cimento cultural de uma identidade nacional renovada. Era este o panorama quando, a 5 de Maio de 1999, sob o alto patrocínio de Kofi Annan, foi assinado em Nova Iorque um acordo entre Portugal e a Indonésia. A crise financeira asiática de 1997 havia feito cair o ditador Suharto, abrindo as portas a um processo de democratização da Indonésia, sob a batuta do anterior vice-presidente, B. J. Habibie. Também os ecos do fim da Guerra Fria se faziam sentir: desaparecida a “ameaça comunista”, a manutenção sob proteção norte-americana de regimes abertamente autoritários vinha sendo cada vez mais posta em causa. O isolamento indonésio só não era maior porque o país continuava a dispor de importantes apoios no seio da ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático), onde a realpolitik de países comunistas – como o Laos e o Vietname – garantia uma estranha unanimidade. O acordo firmado em Nova Iorque em Maio de 1999 previa a realização de uma “consulta popular”, em que se perguntaria aos timorenses se aceitavam ou não dispor de uma “autonomia especial” no seio da República Indonésia. O artigo 6.º do acordo determinava o seguinte: Se o Secretário-Geral apurar, com base no resultado da consulta popular e em conformidade com o presente acordo, que o enquadramento constitucional para uma autonomia especial proposto não é aceite pelo povo de Timor Leste, o Governo da Indonésia dará todos os passos necessários, em termos constitucionais, para pôr termo ao seu vínculo com Timor Leste, restaurando desse modo, nos termos da lei indonésia, o estatuto detido por Timor Leste antes de 17 de Julho de 1976, e os Governos da Indonésia e de Portugal e o Secretário-Geral acordarão os moldes de uma transferência pacífica e ordeira da autoridade em Timor Leste para as Nações Unidas. O Secretário-Geral dará início, nos termos de mandato legislativo apropriado desde que disponha de mandato legislativo para esse fim, ao procedimento que irá permitir a Timor Leste iniciar um processo de transição para a independência. A 30 de Agosto de 1999 teve lugar a “consulta popular” prevista. Organizado sob a égide da ONU e da sua UNAMET (United Nations Mission in East Timor, criada pela Resolução 1246, de 11 de Junho), precedido de um amplo recenseamento que garantisse um verdadeiro sufrágio universal de adultos e que resultou no registo – em Timor-Leste e na diáspora – de um total de 446 953 indivíduos, este referendo contou com uma elevada participação cívica: 96,4% de votantes. O resultado foi anunciado em Nova Iorque, a 4 de Setembro, pelo Secretário Geral Kofi Annan: 94 338 votos (21,5%) a favor do estatuto de “autonomia alargada” no seio da República Indonésia, e 344 580 (78,5%) contra essa proposta. Dificilmente um resultado poderia ser mais expressivo. As autoridades de Jacarta foram apanhadas de surpresa. O seu aparelho administrativo, essencialmente repressivo, não tinha sido capaz de interpretar cabalmente o sentimento de repúdio que grassava em Timor-Leste. Nas suas memórias, Ali Alatas revelou que, no momento da assinatura do acordo, no círculo mais próximo de Suharto se acreditava que o resultado seria amplamente favorável à proposta de “autonomia alargada”, numa ordem de 80% para 20%. Com o avançar dos dias, essa margem haveria de encolher perante a evidência do seu irrealismo, para se situar na ideia de uma vitória pouco mais do que tangencial: 55% para 45%. Ainda assim, o espectro da derrota não parecia ser encarado (Alatas 2006: 211). Porém, no comando militar havia quem se tivesse precavido, incitando partidários da integração a formar milícias, que foram apoiadas politicamente no decurso da campanha eleitoral, e ainda treinadas e armadas para eventuais ações violentas. Logo que o resultado foi anunciado, desencadeou-se uma onda de ataques que em duas semanas – apelidadas de “Setembro Negro” – provocaram mais de duas mil mortes, com a destruição de cerca de três quartos das infraestruturas físicas (desde edifícios da administração pública a pontes, passando pelo sistema de distribuição de energia eléctrica), resultando na fuga de cerca de 200 mil pessoas para a metade ocidental da ilha e o abandono dos seus postos pela esmagadora maioria dos quadros administrativos (muitos deles indonésios). O embaixador britânico na ONU, Sir Jeremy Greenstock, que visitou Díli em meados de Setembro daquele ano, declarou que “o inferno desceu à Terra”. Xanana Gusmão foi finalmente libertado da prisão domiciliária e usou o seu imenso prestígio para reclamar do grupo de guerrilheiros das FALINTIL – então com cerca de 1500 homens, chefiados por Taur Matan Ruak, acantonados em quatro campos, incluindo no quartel general de Uaimori, no centro do país – que não ripostassem: fazê-lo poderia dar pretexto para se apresentar o caso como uma nova guerra civil, quando na realidade apenas uma parte estava em clara violação dos compromissos assumidos em Nova Iorque. Foi um preço elevado o que Xanana pagou para manter de pé o caminho da independência. Perante o descalabro, que parecia escapar mesmo ao círculo próximo do presidente B. J. Habibie, o Conselho de Segurança da ONU aprovou, pela Resolução 1264, de 15 de Setembro, a constituição de uma força multinacional – a INTERFET (International Force for East Timor) – com o intuito de restabelecer um módico de tranquilidade no território. A Austrália forneceu o comandante (general Peter Cosgrove) bem como o grosso dos efetivos para esta força, que começou a chegar a Díli a 20 de Setembro. Reposta a segurança, o parlamento indonésio foi chamado a cumprir o que estava estipulado, e a 17 de Outubro aprovou uma deliberação que dava cumprimento ao acordo. Ainda assim, a margem de vitória na votação parlamentar foi curta: 355 contra 322 deputados. Desaparecia Timor-Timur (Tim-Tim), 27.ª província da República Indonésia, e surgia um “território não autónomo”, formalmente ainda sob administração portuguesa, mas de facto diretamente tutelado pelo Conselho de Segurança da ONU. Rapidamente este órgão estabeleceu uma nova missão, a UNTAET (United Nations Transitional Administration for East Timor), criada pela Resolução 1272, de 25 de Outubro. Daí em diante, seria a ONU, através da articulação entre o Conselho de Segurança e a UNTAET, a pilotar o processo (MacQueen 2015; Pereira & Feijó 2023, cap. 13). A missão da UNTAET – “preparar Timor-Leste para o autogoverno” – terá sido a de maior fôlego que a ONU desenhou até então (Tansey 2009). Esse propósito compreendia dois aspectos críticos: (re)construir as bases da administração pública, que colapsara no “Setembro Negro”, e dotá-la de princípios compatíveis com a construção de um estado de direito democrático. Para a ONU, chamuscada pelas sucessivas crises internacionais da década de 1990 (Ruanda, Balcãs) que haviam custado a Boutros-Ghali a reeleição, e ainda a braços com uma situação complicada no Kosovo, o tempo era de montar uma “missão exemplar” que resgatasse o seu prestígio. Não poupou esforços, desde logo nos recursos disponibilizados: a UNTAET teve orçamentos anuais superiores a 500 milhões de dólares (mais do que Timor-Leste viria a dispor nos seus orçamentos de estado dos primeiros anos pós-independência) e um significativo quadro de pessoal, tanto civil (2700) quanto militar (9150) e policial (1640) – cerca de seis vezes mais gente do que em 1974 havia de colonos e administradores coloniais (ao todo, cerca de 300) e militares. À frente da missão, foi colocado, como Representante Especial do Secretário Geral (RESG), um experiente diplomata e funcionário superior da ONU, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que combinava sob a sua alçada a totalidade dos poderes – executivo, legislativo e judicial. Haveria de ser comparado a um monarca pré-constitucional e o paradoxal modelo montado para o efeito descrito como “autocracia” (Chestermann 2004), “despotismo” (Beauvais 2001) ou “ditadura” (Powell 2008), embora de cariz benévolo. Não escapou aos observadores que afluíam a Díli a contradição de procurar criar as bases funcionais de uma democracia por métodos que em tudo lhe eram antitéticos. O desenho político da missão coube, em primeira linha, ao Departamento de Operações de Manutenção da Paz da ONU (DPKO, na sigla em inglês), e não ao Departamento de Assuntos Políticos (DPA), que ao longo de décadas havia acompanhado o processo. Aplicou-se uma fórmula testada em contextos diversos: as partes “beligerantes” deviam ser tratadas como iguais (desvalorizando o facto de um referendo internacionalmente sancionado ter ditado uma inequívoca vitória de uma delas) e colocadas em plano de entidades consultivas. Vieira de Mello cedo se deu conta da crescente frustração da liderança timorense perante este cenário, e convenceu a sede a flexibilizar os termos de referência. Primeiro, retirou a designação “consultivo” do nome do conselho que reunia representantes de todas as forças sociais e políticas; em seguida, admitiu timorenses no governo de transição. As pressões locais para acelerar o processo de independência – que chegou a estar previsto para um horizonte de cinco a dez anos – foram-se intensificando. Um ponto de equilíbrio foi encontrado no início de 2001, com a proposta de elaborar a Constituição do futuro estado. Mais uma vez, uma imposição externa – sobretudo associada a Peter Galbraith, representante da ONU no governo de transição – conduziu a um processo acelerado de formalização de partidos políticos, algo que líderes como Xanana Gusmão ou Ramos-Horta tentavam evitar, por temerem o regresso dos fantasmas de 1975; em vez disso, teriam preferindo soluções baseadas no consenso, como as que presidiam ao funcionamento do CNRT. Foi também por imposição da ONU que, exatamente dois anos passados sobre a data do referendo, se realizou uma “eleição especial”. O governo de transição foi remodelado, para melhor reflectir a nova correlação entre as várias forças, e a Assembleia eleita pôde elaborar a Constituição da República Democrática de Timor-Leste, mesmo que para isso não tivesse podido contar com importantes líderes que recusaram o modus operandi e, em particular, os termos propostos para a sua eleição. O texto final mereceu o voto favorável de mais de dois terços dos deputados (condição necessária para a sua aprovação) apesar da maioria dos (pequenos) partidos com assento na Assembleia ter votado contra. O calendário foi então acelerado, o que na sede da ONU não suscitou objeções, dado o volume de recursos afetos a esta missão. A declaração de “restauração de independência” (tal como a Assembleia definiu o acto) ficou marcada para 20 de Maio de 2002. Entretanto, a Assembleia deliberou por maioria – e com grande contestação dentro e fora de portas – transformar-se na primeira legislatura do Parlamento Nacional, estabelecendo para si própria um mandato de cinco anos, e foram organizadas eleições presidenciais. Rotuladas de “eleições da amizade” (Smith 2004), dadas as relações cordiais entre os dois candidatos (Xanana Gusmão, líder da Resistência, e Francisco Xavier do Amaral, presidente da efémera República a partir de 29 de Novembro de 1975), estas eleições saldaram-se por uma retumbante vitória do primeiro, com 83,7% dos votos. Para resguardar o seu estatuto de personalidade independente, Xanana fez questão de não se apresentar sob a bandeira de nenhum dos partidos até então formados, embora tenha aceitado o apoio que muitos deles lhe manifestaram; por seu lado, a FRETILIN, partido maioritário no parlamento, deu liberdade de voto aos seus simpatizantes. À meia-noite de 20 de Maio de 2002, na localidade de Tasi Tolu, nos arredores de Díli, uma enorme multidão assistiu ao hastear da bandeira, ao hino nacional e à tomada de posse de Xanana Gusmão como Presidente da República. O acto foi testemunhado por Kofi Annan, pelo presidente português, Jorge Sampaio (acompanhado de diversas personalidades de relevo associadas à “questão de Timor”), pela presidente indonésia, Megawati Sukarnoputri, pelo primeiro-ministro australiano, John Howard, pelo ex-presidente americano Bill Clinton e por um representante especial do Papa João Paulo II. Chegava ao fim um tardio, longo e penoso processo de autodeterminação, com vários traços originais, quer no contexto da descolonização portuguesa, quer no processo político mundial. Meses mais tarde, em inícios de Setembro, a Assembleia Geral das Nações Unidas votaria por unanimidade acolher a República Democrática de Timor-Leste como seu 191.º membro de pleno direito, sinalizando a aceitação internacional e sem reservas da solução encontrada pelo próprio povo de Timor-Leste. [show more]
SabãoSabão
Description:O corpo socialmente aceite teve, na Europa Ocidental e durante alguns séculos, cheiros excessivamente fortes. Esta realidade, transversal a diferentes grupos sociais, começou a alterar-se apenas em finais do século XVIII, de forma muito lenta e progressiva, através da generalização do uso do sabão, associada ao surgimento de novas ideias a respeito do corpo e da higiene. Uma substância muito semelhante ao sabão, sem a saponificação das gorduras com soda cáustica, era há muito conhecida como agente de limpeza, mas a sua utilização parece ter diminuído em alguns períodos históricos, sendo o asseio muito dificultado pelas condições dos espaços habitacionais, pelos hábitos e pela convivência entre pessoas e animais. No século XVII, e depois também no século XVIII, há diversas descrições de que a higiene se fazia “a seco”, por fricção. Para aqueles que tinham maiores posses, o vestuário utilizado substituía a limpeza das zonas cobertas: “mudar de roupa [era], no fundo, lavar-se” (Vigarello 1988: 54), o que fazia desse ritual uma verdadeira forma de comunicação não-verbal, que permitia identificar facilmente o estatuto social daqueles que podiam mudar a roupa que ficava em contacto com a pele. A forma como a água e o sabão eram utilizados permite-nos também pensar na generalização de alguns objetos de limpeza, como por exemplo as escovas tipo viola, muito utilizadas para esfregar soalhos mas não só, ou ainda as pequenas vassourinhas sanitárias, também em fibra de piaçaba, que acabaram por ter uma enorme relevância no quotidiano (Chiazza 2012). Estes e outros objetos permitem-nos viajar através das práticas de higiene, das considerações sobre a saúde, das regulamentações sobre o corpo e o vestuário, bem como entrar em contacto com certas obsessões e alguns estereótipos. Os cuidados com o corpo podem também perceber-se através das mudanças na arquitetura, no mobiliário, ou em utensílios banais, de uso comum, relacionados com lavagens íntimas, purgas e abluções diversas. O século XIX assistiu a uma higiene progressivamente mais pragmática: não estavam apenas em causa as políticas de higiene pública, a imposição de um discurso higienista (Barreiros 2016), mas também o reforço da imagem de corpos padronizados e disciplinados, mais saudáveis e mais fortes. Foi por via de uma preocupação política cada vez mais higienista que a saúde pública foi ganhando adeptos e impondo práticas generalizadas (Porter 1998). Na medida em que a assepsia era mais desejada, a água, o seu transporte para cada casa e o seu escoamento obrigaram a importantes alterações urbanas, a diferentes configurações dos espaços interiores e a novas rotinas. O sabão, que, do fabrico caseiro com gorduras vegetais (sobretudo azeite) ou animais (sebo, óleo de peixe ou de baleia) e cinzas, evoluiu para um produto com eficácia de detergente, concebido através de um processo industrial cada vez mais complexo e diversificado, começou a alimentar um comércio relevante, à medida que a publicidade seduzia a população com ideais estéticos que simultaneamente impunham permanentes “cuidados e desassossegos” (Crespo 1990: 7). Em Portugal, a evolução foi em tudo semelhante ao panorama aqui traçado. Como noutros países europeus, ao longo do século XIX as saboarias adquiriram uma importância cada vez mais significativa (Barata 1974). O sabão, sobretudo o azul e branco, ia chegando lentamente às zonas rurais, vendido em mercearias e em algumas feiras. Em meados do século XX, o acesso a este produto de higiene era ainda muito condicionado, sobretudo em aldeias mais recônditas, como referem alguns testemunhos orais (Samara e Henriques 2013). O sabão era usado na lavagem da roupa, dos soalhos e até da loiça. Porém, era um produto escasso, que se usava com parcimónia; também por isso, era comum o seu fabrico a partir do sebo e das cinzas, mistura que se fervia e moldava. Na barrela da roupa colocavam-se pedaços de sabão com água quente, a que por vezes se misturava urina guardada para o efeito e cinzas envolvidas num pano. Situação diferente se verificava nos centros urbanos, onde, na década de 1870, iam surgindo sabões de diferentes tipos, vendidos em tabernas, em mercearias ou pelos petrolinos. À semelhança do perfume, o sabão que se utiliza permite olhar para uma evolução que é também olfativa: o sabão de origem animal foi sendo substituído por outros de origem exclusivamente vegetal, alguns com notas florais, mais delicados. A beleza foi-se associando progressivamente à limpeza, ao prazer, ao conforto e até à saúde. A pele branca e o cabelo louro, que ganharam grande notoriedade no princípio do século XX – através de imagens muito divulgadas, sobretudo pelo cinema americano e pelas fotografias de moda –, foram progressivamente perdendo relevância em relação ao bem-estar. Ainda assim, nunca deixou de haver uma preocupação com os cuidados com um corpo implacavelmente controlado, cuidado ou “leve”, como refere Gilles Lipovetsky (2016). Em termos publicitários, estamos atualmente muito longe das propostas da empresa inglesa A. & F. Pears, que no início do século XIX começou a produção de um sabão menos agressivo, que pudesse ser usado nas barbearias ou com crianças e em diferentes necessidades pessoais e domésticas. Esta empresa produziu diversos cartazes publicitários sobre os benefícios da utilização do sabão que fabricava e, em muitos deles, acentuava-se o conforto que se poderia sentir com uma pele mais protegida dos germes, mais requintada, expurgada dos odores já considerados socialmente desagradáveis. No entanto, algumas dessas imagens anunciavam também que o sabão Pears era útil para branquear a pele, reforçando o estereótipo racista de que a pele negra deveria ser alterada. Se olharmos para as representações corporais dessa época – e que de diferentes formas foram chegando até hoje –, branquear e descolorir tornaram-se efetivamente temas de consumo banais. Se o olhar para com a pele negra se manteve muitas vezes ambivalente – ora alvo de fascínio, ora de interesse predatório –, ele foi ao mesmo tempo adquirindo um significado político cada vez mais relevante (Nouschi 2009: 162-193). Hoje, os corpos publicitados são tendencialmente menos padronizados no que diz respeito à cor, embora, de uma maneira geral, permaneçam harmoniosos no sentido clássico e estético do termo e, por isso, pressuponham uma normalização e repressão contínuas. A partir de meados do século XX, foi-se tornando cada vez mais simples aceder aos ideais estéticos divulgados de forma profissional e intensiva pela publicidade. Individualmente, cada pessoa passou a poder comunicar de forma mais eficaz as suas opções ideológicas ou simbólicas através das peças de roupa que usa (Eco 1989), mas também através de uma multiplicidade de cores e cheiros com os quais se apresenta publicamente, com os quais se integra socialmente. A industrialização, a comercialização generalizada e a venda em grandes superfícies praticamente acabaram com a produção artesanal de produtos para a limpeza da casa, das roupas e do corpo. Substituídos por muitas outras opções, os sabões e outros produtos de beleza (incluindo os cosméticos) democratizaram-se, ao mesmo tempo que as imagens corporais continuam a ser controladas e uniformizadas. Entre a discrição e a ostentação, o corpo traduz diferentes códigos de conduta, ideologias políticas e educativas, opções estéticas, ambientais e outras. Independentemente da época, a aparência mostrou ser sempre um elemento essencial para uma hierarquização e, também, para uma integração entre os pares. Nesse processo de integração/exclusão, o sabão foi um dos objetos quotidianos que contribuiu, entre muitos outros, para a celebração de um corpo mais saudável, mas também para a dimensão política e cultural do corpo. [show more]
RetornadosRetornados
Description:“Quantos são? Quinhentos mil? Um milhão? Ninguém sabe exatamente”, concluía, em maio de 1976, o jornal francês Le Monde sobre os portugueses que tinham chegado de Angola e Moçambique no quadro do processo de descolonização destes territórios (Le Monde, 20 de Agosto de 1975). Se a interrogação do diário francês continua até hoje em aberto, estima-se, porém, que foram mais de meio milhão os indivíduos que chegaram a Portugal, na maioria dos casos entre o verão e o outono de 1975 (Peralta 2022: 1). Uma vez em Portugal, a palavra retornados foi usada, não só pelos média mas também pelas autoridades, para designar os antigos colonos, tornando-se na palavra coloquialmente adotada. A partir de maio de 1976, o termo passou também a designar um estatuto jurídico, baseado na posse da nacionalidade portuguesa, que enquadrou os apoios aos quais essa população podia aceder. Rapidamente, porém, os repatriados queixaram-se de que o termo “retornado” adquirira uma conotação negativa, preferindo “refugiado” ou “desalojado” (Delaunay 2024: 277-278). Apesar disso, décadas depois a expressão “retornado” continua a ser a mais frequente. As razões que levaram os colonos portugueses a deixar Angola e Moçambique foram variadas (Delaunay 2024: 75-86). No caso angolano, a deterioração da situação interna, intrinsecamente ligada ao contexto da Guerra Fria, foi decisiva para uma esmagadora maioria. Apesar da assinatura dos acordos de Alvor, em janeiro de 1975, entre as autoridades portuguesas e os três movimentos nacionalistas angolanos – o Movimento Popular de Independência de Angola (MPLA), a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) –, a guerra de libertação degenerou rapidamente numa guerra civil, que só viria a terminar em 2002. Se entre 1961 e 1974 a população branca de Angola, maioritariamente urbana, raramente tinha sido confrontada de forma direta com a guerra (Pinto 1999: 84), a entrada dos três movimentos nas cidades, com os confrontos que se seguiram, alterou os dados do problema. O pânico tomou conta da população, por mais que, até à última hora, as autoridades tentassem convencer os colonos a permanecer (Delaunay 2024: 75-76). Face ao número crescente de pedidos de evacuação, a organização do regresso dos portugueses à antiga metrópole tornou-se numa necessidade absoluta. Uma ponte aérea entre Angola e Portugal, que ficou gravada na memória coletiva portuguesa, permitiu, com a ajuda da comunidade internacional, o transporte de 173 982 indivíduos entre maio e novembro de 1975. No seu auge, chegavam diariamente ao então aeroporto de Portela entre 6 e 7 mil pessoas, enquanto, entre 29 de maio e 19 de novembro, 11 460 outras desembarcaram de navios fretados para transportar pessoas e bens (Delaunay 2024: 92). Muitos saíram pelos seus próprios meios, às vezes para outros destinos, como a atual Namíbia e a África do Sul, onde dezenas de milhares de portugueses se refugiaram. As operações de evacuação enfrentaram inúmeras dificuldades, decorrentes da falta de recursos materiais e humanos para tratar de um problema com semelhante escala (Delaunay 2024: 86-95). Esta falta de recursos teve impactos na receção dos retornados em Portugal. Apesar da presença de organizações não-governamentais, como a Cruz Vermelha, e, a partir da primavera de 1975, dos serviços do Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais, criado em março de 1975, a situação vivida no aeroporto de Lisboa era caótica, sendo objeto de inúmeras reportagens nos média portugueses e estrangeiros. “Portugal, atualmente, não é apenas um país atravessado pelas suas febres e batalhas políticas [...] É, também, uma noite, no aeroporto de Lisboa, um velho que, sentado em cima da sua mala, as mãos na cara, soluça baixinho, ou aquelas mulheres que, mal desembarcaram do voo especial proveniente de Luanda, desmaiam na sala das chegadas. Imagens de um descalabro que, mesmo planificado, não deixa de ser um descalabro”, escrevia a 20 de agosto de 1975 um jornalista do Le Monde (Le Monde, 12 de Maio de 1976). A chegada dos retornados a Portugal inscreveu-se no contexto mais amplo do fim dos impérios coloniais europeus que, a seguir à Segunda Guerra Mundial, foi acompanhado pelo regresso dos colonos às antigas metrópoles, como o Reino Unido, a Itália, os Países Baixos, a Bélgica, ou a França. A chegada a França, em 1962, de cerca de 680 mil colonos da Argélia (Scioldo-Zürcher 2010: 15), os chamados pieds-noirs, recebeu muito interesse da parte de historiadores e cientistas sociais, e foi seguida de perto pelos média portugueses, como o Diário de Lisboa (Delaunay 2020: 128-165). Se a chegada dos retornados a Portugal não foi, per se, um movimento migratório invulgar, o caso português revestiu ainda assim características particulares, em comparação nomeadamente com o francês. Do ponto de vista da cronologia da instalação das populações colonas nos territórios africanos, é de salientar que a emigração metropolitana portuguesa para Angola e Moçambique foi um fenómeno tardio. Os franceses começaram a instalar-se no território argelino logo a seguir ao início da sua conquista, em 1830 (Delaunay 2020: 111), chegando a representar, em 1960, mais de um milhão de habitantes (Scioldo-Zürcher 2010: 31). Por seu turno, a emigração com destino às colónias portuguesas conheceu o seu auge só depois da Segunda Guerra Mundial: muito baixa até então, a população branca das duas colónias duplicou entre 1950 e 1960, para chegar em 1973 a 514 mil pessoas (Castelo 2007: 97, 143). Em consequência, dois terços da população portuguesa que regressou de África a seguir ao 25 de Abril de 1974 ainda tinha nascido na antiga metrópole (Pires 2003: 203), sendo o terço restante composto maioritariamente pelos seus filhos. Por comparação, 80% dos 679 mil colonos franceses que chegaram da Argélia em 1962 tinham nascido nos três departamentos franceses argelinos (Scioldo-Zürcher 2010: 15, 31). Do ponto de vista demográfico, o repatriamento dos portugueses de África teve uma dimensão mais significativa do que o francês, em termos relativos. Em 1981, segundo os resultados do primeiro censo realizado após a sua chegada, residiam em Portugal 471 427 retornados, 61% dos quais provenientes de Angola (290 504) e 34% de Mozambique (158 945) (Pires 2003: 200). No seu conjunto, estes retornados chegaram a representar 5% da população residente em Portugal; em comparação, estima-se que os pieds-noirs compusessem apenas 3,5% da população de França (Pires 2003: 192). Tal como as autoridades francesas uma década mais cedo, o estado português também não foi capaz de antecipar a real dimensão deste movimento migratório. Isso traduziu-se, de forma muito concreta, na experiência vivida pelos retornados, agravando assim o caráter traumático da sua saída de Angola e Moçambique (Delaunay 2020: 158, 439). As autoridades portuguesas reconheceriam ulteriormente ter cometido o erro de imaginar que cada retornado teria uma casa e uma família à sua espera, quando, de facto, milhares tiveram de pernoitar no aeroporto, por um período variável segundo as situações, até que uma solução temporária fosse encontrada pelas autoridades ou pelas organizações não governamentais, ou até serem recebidos por familiares (Delaunay 2024: 143-148). A complexidade das situações individuais, a que se juntou uma falta de clareza no que diz respeito às primeiras medidas de acolhimento, obrigaram as autoridades a repensar as suas ações. Esta ajustamento passou pela introdução de um aparelho legislativo que visou, a partir de maio de 1976, a definição do próprio estatuto de “retornado”, baseado na posse da nacionalidade portuguesa, segundo a nova caracterização legal estabelecida em junho de 1975 (decreto-lei 308-A/75). O objetivo era facilitar o retorno dos antigos colonos, evitando ao mesmo tempo a entrada de um elevado número de refugiados angolanos e moçambicanos (Peralta, Delaunay & Góis 2022: 420). Em termos de instalação geográfica, o facto de dois terços da população ter nascido em Portugal teve como consequência que cerca de 53% dos retornados se instalaram na sua região de origem (Pires 2003: 205). Assim, todos os distritos portugueses, bem como as regiões autónomas da Madeira e dos Açores, foram significativamente afetados por este movimento migratório. No caso dos pieds-noirs da Argélia, a situação foi diferente, dado que eles se concentraram no Sul da França e na região de Paris (Scioldo-Zürcher 2010: 205), apesar das tentativas das autoridades francesas para o impedir (Delaunay 2020: 285). Se o governo português tentou evitar reproduzir o erro cometido, segundo ele, pelas autoridades francesas (Delaunay 2020: 9), não foi, ainda assim, capaz de impedir que os retornados se concentrassem especialmente nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto (Pires 2003: 203). Entre os casos português e francês, existiam diferenças no que diz respeito ao contexto político e económico dos dois países. Nos anos 1960, a França caracterizava-se não só por um regime democrático estável, mas também por um período de crescimento económico conhecido como os “Trinta Gloriosos” (Peralta 2022: 10). Em Portugal, os retornados chegaram após o 25 de Abril de 1974, num período marcado não só por uma crise económica, mas também por um alto nível de instabilidade política e social. Apesar deste contexto desfavorável, quer os governos provisórios, quer os primeiros governos constitucionais portugueses consideraram ser uma necessidade implementar medidas visando a integração dos retornados, preocupação partilhada também pelo Parlamento (Delaunay 2019). Neste quadro, foram criados vários organismos: o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN), em março de 1975 (decreto-lei 169/75); a Secretaria de Estado dos Retornados, em outubro de 1975 (decreto-lei 584-B/75); e o Comissariado para os Desalojados, em setembro de 1976 (decreto-lei 683-B/76). Para implementar um conjunto de medidas de curto, médio e longo prazo, em vários aspetos semelhantes às que tinham sido postas em prática em França na década anterior, foram disponibilizadas verbas significativas (Delaunay 2024: 131-202). Estas políticas, assentes no conceito de solidariedade nacional, foram também pensadas como uma ferramenta para proceder à “pacificação” da população repatriada (Scioldo-Zürcher 2010: 305). Tanto França como Portugal temiam ver tensões sociais e políticas pré-existentes aumentar com a chegada dos pieds-noirs e dos retornados (Delaunay 2020: 307). Nos dois casos, o apoio estatal passou pelo pagamento de subsídios diversos, bem como por medidas no domínio do alojamento e da integração económica dos repatriados. Para aqueles que não dispunham de meios para assegurar a própria subsistência, as autoridades francesas criaram um subsídio de montante variável, com a duração máxima de um ano, a par de outros apoios para pessoas idosas e inválidas, e de subsídios excecionais em função de situações particulares. Em Portugal, os retornados puderam igualmente beneficiar de múltiplos apoios, incluindo o subsídio de desemprego, o abono de família e bolsas de estudo (Delaunay 2020: 285-286, 198-203). No domínio do alojamento, tanto em França como em Portugal, a instalação dos antigos colonos veio piorar uma crise pré-existente (Scioldo-Zürcher 2010: 211; Delaunay 2020: 215). Face à penúria habitacional, uma das medidas de urgência implementada pelas autoridades portuguesas foi instalar parte da população repatriada nos hotéis e pensões que se encontravam vazios – incluindo, numa fase inicial, em hotéis de luxo da capital. Esta medida, apesar de ter contribuído para a expressão por parte da população metropolitana de um ressentimento contra os repatriados, permitiu alojar muitas pessoas, num número que, em meados de 1976, ascendia a 30 255 (Delaunay 2020: 223). Foram também criados centros de alojamento coletivos e temporários, cuja gestão era confiada nomeadamente à Cruz Vermelha. Alguns destes centros, como no Vale do Jamor, eram similares a campos de refugiados, enquanto outros foram organizados em prisões, como em Tires ou no Forte de Peniche. As condições de vida difíceis marcaram de forma duradoura a memória dos retornados alojados em tais centros. Por fim, foram ainda construídas casas e foi criado um programa de crédito bonificado, destinado a incentivar a compra de propriedade por parte dos retornados. Na década anterior, de maneira semelhante, as autoridades francesas tinham instalado centres de transit nos diferentes lugares de chegada dos pieds-noirs, para evitar a instalação dos repatriados nos bairros de barracas que, naquela época, rodeavam as principais cidades francesas (Scioldo-Zürcher 2013: 46). A partir de agosto de 1962, foram criados centros de alojamento temporário e coletivo, para permitir estadias mais prolongadas. Em paralelo, foram requisitados alojamentos vazios, tais como estabelecimentos turísticos, mas também escolas, hospitais, ou qualquer outro tipo de edifício suscetível de poder albergar pessoas. (Delaunay 2020: 287, 292). Para resolver no longo prazo o problema do alojamento da população repatriada, foram reservados para os pieds-noirs 10% e, mais tarde, até 30% da habitação social em fase de construção, enquanto foram também requisitados terrenos para a construção de novos alojamentos destinados especialmente à população repatriada. Em paralelo, foi criado um sistema de crédito à habitação, para facilitar a compra de propriedade (Delaunay 2020: 292-295). Para proceder à integração económica da população repatriada, foram estabelecidos em Portugal outros programas. Em janeiro de 1975, foi criado o Quadro Geral de Adidos, um mecanismo que visava a reintegração laboral dos funcionários públicos que exerciam nas colónias, o que permitiu a colocação de mais de 42 mil pessoas (Delaunay 2020: 265). Um novo programa de crédito para a criação de empresas desembocou no financiamento de mais de 8 mil projetos e na criação de cerca de 65 mil postos de trabalho (Pires 2003: 236). No caso francês, apesar de o país atravessar, em 1962, uma fase de crescimento económico prolongada, a chegada dos repatriados não deixou de constituir um desafio, dada a inadequação entre as suas características socioprofissionais e as necessidades do mercado de trabalho francês (Delaunay 2020: 297). Para minimizar o impacto negativo que a chegada de centenas de milhares de pieds-noirs podia ter na economia, foi implementado um programa de reinstalação profissional destinado aos que, na Argélia, eram trabalhadores independentes, política que permitiu a integração económica da maioria dos pieds-noirs (Scioldo-Zürcher 2010: 256). Em paralelo, através de subsídios e de contratos de formação, as autoridades incentivaram o trabalho por conta de outrem, procedendo ainda à reintegração dos funcionários públicos que exerciam na Argélia (Delaunay 2020: 300-302). Apesar de as autoridades portuguesas terem instalado delegações distritais dos seus serviços (Delaunay 2020: 201), mobilizando verbas elevadas, as medidas estatais não chegaram à totalidade da população repatriada. Numerosos são os testemunhos de retornados que se queixam dos obstáculos que tiveram de enfrentar uma vez em Portugal (Delaunay 2020: 370-386), as quais eram ainda mais agudas para aqueles que não tinham ligações familiares na antiga metrópole, e em particular para as pessoas de ascendência africana e asiática (Góis 2023). À sua chegada a França em 1962, a população repatriada da Argélia também tinha enfrentado dificuldades de monta. Nos primeiros tempos, o facto de a maioria dos pieds-noirs não ter ligações familiares na antiga metrópole tornou difícil a sua adaptação (Eldridge 2016: 21). Porém, os pieds-noirs puderam contar com o apoio de várias associações, algumas delas pré-existentes, criadas na segunda metade da década de 1950 por repatriados de Marrocos e da Tunísia (Eldridge 2016: 192). Tais associações tornaram-se rapidamente um instrumento para pressionar a classe política e, no que se refere aos pedidos de indemnização pelos bens deixados na Argélia, alcançaram os seus objetivos (Eldridge 2016). Ao contrário dos pieds-noirs, que, décadas depois da sua instalação, permanecem visíveis na sociedade francesa (tanto do ponto de vista político quanto associativo), a população repatriada portuguesa tornou-se quase invisível. Após a sua chegada, foram criadas associações nacionais e comissões distritais por todo o país, as quais no entanto, menos de uma década depois, haviam desaparecido (Delaunay 2020: 321-327). Se a questão das indemnizações pelos bens deixados em Angola e Moçambique continua em aberto, hoje subsistem sobretudo associações de cariz informal, reunindo na maioria dos casos antigos alunos ou antigos moradores de localidades das antigas colónias, que funcionam como lugares de partilha e conservação da memória da sua vida nas colónias, apresentadas como paraísos perdidos, bem como do processo de instalação em Portugal (Peralta & Góis 2022). Em poucos anos, a integração dos repatriados foi apresentada, tanto em França como em Portugal, como um sucesso (Delaunay 2020: 448; Kalter 2022), tendo alguns responsáveis políticos chegado a utilizar a palavra “milagre”, silenciando assim as dificuldades que os retornados tiveram de superar (Delaunay 2022: 99). Já os retornados portugueses, tal como os pieds-noirs, embora concordem que a sua integração foi um sucesso, tendem a atribui-lo sobretudo à sua capacidade de adaptação e resiliência, a mesma que já tinham demonstrado em África. Alguns dizem que o Estado português fez muito pouco para os ajudar, enquanto outros o acusam de os ter abandonado completamente. Como os pieds-noirs em França (Scioldo-Zürcher 2010: 391), são poucos os retornados que reconhecem o esforço do Estado português na implementação de medidas que contribuíram para integração da população repatriada (Delaunay 2022: 98). Se o momento e os contextos do retorno dos colonos europeus foram diversos (tanto a nível internacional quanto interno, em Portugal e em França), o que se traduziu em diferentes respostas, os impactos dessas migrações foram em ambos os casos notáveis. Além das consequências demográficas, que variaram de caso para caso, essas migrações tiveram efeitos culturais, identitários e políticos – os quais, no caso português, necessitam ainda de ser aprofundados. [show more]
Que se Lixe a TroikaQue se Lixe a Troika
Description:O movimento Que se Lixe a Troika (QSLT) surgiu em Portugal no verão de 2012, num contexto marcado pelo maior nível de contestação verificado em Portugal desde os anos da revolução de Abril. Tal mobilização insere-se num quadro internacional marcado pela Grande Recessão e pela crise da Zona Euro, em que movimentos de protesto contestaram as políticas de austeridade e suas consequências sociais, políticas e económicas no sul da Europa. Tais políticas seguiam os ditames de redução da despesa estatal e liberalização do Estado Providência, privatizações e desregulação do mercado de trabalho. Em Portugal, essas políticas foram iniciadas em 2010 pelo então governo do Partido Socialista (PS, de centro-esquerda), por pressão dos mercados financeiros e da União Europeia, e prosseguidas pelo governo de coligação entre o Partido Social Democrata e o Centro Democrático Social (PSD e CDS/PP, de centro-direita) a partir de meados de 2011, já com monitorização da Troika formada pelo Banco Central Europeu, pela Comissão Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional. O QSLT foi criado na sequência da mobilização anti-austeridade e da interação entre diferentes atores que se iniciou em meados de 2010. As primeiras reações foram lideradas por sindicatos através de greves gerais (em março e em novembro de 2010), seguidas em 2011 por movimentos como a “Geração à Rasca” (GàR, em março), a Acampada do Rossio (em maio) e a manifestação de 15 de outubro (15O), iniciativas que acompanhavam processos semelhantes a nível global. O GàR foi uma das primeiras mobilizações europeias na sequência da Primavera Árabe, tendo inspirado o protesto de 15 de maio (15M) em Madrid; em contrapartida, a Acampada de Lisboa replicou os eventos na capital espanhola, enquanto as manifestações de outubro se inseriram numa mobilização europeia destinada a assinalar os seis meses do 15M espanhol. Após estas mobilizações, a unidade em torno do 15O desfaz-se. Com o início do ano de 2012 marcado por fraca mobilização, os sindicatos assumem protagonismo renovado através de novas greves gerais. Dado este retraimento, no verão, vários dos grupos que tinham deixado o 15O iniciam a preparação do QSLT. Agendada para 12 de setembro, a primeira manifestação promovida pelo QSLT foi impulsionada pelo anúncio de novas medidas de austeridade pelo então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, nomeadamente o aumento da contribuição dos trabalhadores para a taxa social única, que era acompanhado da sua diminuição por parte dos empregadores. Acirradas as tensões políticas e sociais, as estimativas apontaram para um milhão de pessoas na rua, em todo o país. Com base numa análise das anteriores mobilizações, o QSLT procurou redefinir a sua oposição à austeridade. Por um lado, procurou maior politização da sua mensagem; por outro, estruturou-se numa forma de organização mais fechada, de modo a garantir uma direção sólida e a evitar conflitos entre grupos (Carvalho 2022). A sua ação dava-se em tabuleiros distintos: em relação a anteriores grupos, tinha maior proximidade com partidos e sindicatos, assim como com o município de Lisboa (Accornero e Ramos Pinto 2020); ao mesmo tempo, mantinha uma atividade típica de um movimento social. O nome adotado tinha como objetivo exprimir a divisão política entre os que assinaram o Memorando de Entendimento com a Troika (PS, PSD e CDS/PP), e que como tal subscreviam as medidas de austeridade, e os que se situavam no campo oposto. Estabelecia-se, assim, não só uma linha de demarcação ideológica e política, mas também social, que afirmaria na rua a rejeição de tais políticas. Contudo, apesar do contexto de crise internacional e da condicionalidade imposta pela Troika, o QSLT não se opunha de forma clara à União Europeia, antes apontando o dedo aos responsáveis nacionais pelas políticas implementadas. Assim, um dos seus slogans era o de “governo para a rua”: alegava-se a falta de legitimidade de um programa que não tinha sido votado nas eleições de 2011 (Accornero e Kousis 2023; Carvalho 2022). Ainda assim, o QSLT procurou inserir as suas atividades no contexto das lutas internacionais. Por exemplo, havia contactos próximos com Espanha, via internet, bem como visitas e contactos pessoais (Baumgarten e Díez García 2017). Procurou-se também replicar formas de organização de sucesso em Espanha: na manifestação de 2 de março (também com cerca de 1 milhão de pessoas), organizaram-se “marés” que se focavam na defesa de interesses e direitos sectoriais, tais como a saúde e educação. Porém, estas não chegaram a implantar-se com o mesmo sucesso que tinham obtido em Espanha. Outro exemplo foi a manifestação de junho de 2013: apesar de gerar menor participação em Portugal, ela tinha como lema “Povos Unidos contra a Troika”, integrando um esforço concertado em mais de 100 cidades da Europa. A linguagem e os símbolos do QSLT alicerçavam-se numa defesa dos direitos sociais enquanto herança do 25 de Abril, num contexto em que a austeridade os punha em causa. Para isso, o legado da Revolução foi reinterpretado (Baumgarten 2017). O exemplo mais claro disso é o da canção Grândola, Vila Morena: nos estandartes do QSLT, era habitual a inscrição “O povo é quem mais ordena”, da canção de Zeca Afonso, pela sua evocação dos princípios de igualdade e justiça associados ao 25 de Abril. Com a preparação do protesto de março de 2013, esta canção foi várias vezes utilizada para interromper ministros em eventos públicos. É importante notar que, dada a defesa da herança do regime instituído no período revolucionário, este grupo não contestava o regime em si mesmo, mas antes os atores que, no poder, pretendiam desfazer esse legado. Neste sentido, nunca se deu uma crítica ao regime, ou reivindicações de renovação democrática, mas antes a defesa do legado do período revolucionário. Este cenário é distinto do verificado, por exemplo, em Espanha, que também implementou medidas de austeridade fortemente contestadas. Em Espanha, a transição pactuada entre as elites partidárias foi criticada pelo seu alcance limitado, que não teria permitido uma rutura completa com o passado ditatorial, o que teria tido consequências para o funcionamento da democracia (Accornero 2015). Este discurso enquadrava-se numa crítica transversal, que reclamava uma renovação democrática e maior inclusão cidadã. Em Portugal, pelo contrário, a memória da transição é positiva, sendo vista como um legado a defender e a aprofundar. Neste sentido, a democracia concretiza-se através dos direitos estabelecidos durante aquele período. O QSLT foi responsável por uma das maiores mobilizações de protesto desde os anos de Abril, colocando sob pressão o governo e as instituições políticas portuguesas. Em Portugal, deixou uma herança particularmente importante no imaginário dos movimentos sociais nos anos seguintes, reforçando um ideário de defesa dos direitos sociais inscritos na Constituição. [show more]
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Primeira Proclamação da Independência de Timor-Leste (1975)Primeira Proclamação da Independência de Timor-Leste (1975)
Description:Seguindo os preceitos definidos na Conferência de Berlim, que haveriam de moldar as relações entre a Europa e as suas dependências até à segunda metade do século XX, o Terceiro Império colonial português foi um complexo histórico-geográfico centrado em África, com um lugar marginal – embora simbolicamente poderoso – reservado às possessões asiáticas. Quando a Revolução dos Cravos colocou na ordem do dia o processo de descolonização – o mais tardio entre as potências europeias – já a União Indiana havia resolvido de facto a questão do “Estado Português da Índia”, situação prontamente reconhecida ainda em 1974, e a República Popular da China, que desde 1966 detinha um controle informal mas substancial sobre Macau, havia diligenciado junto da ONU para retirar esse território da lista de entidades “não autónomas sob administração portuguesa” (Resolução 1542 (XV) da Assembleia Geral, Dezembro 1960) e fazer o seu registo como “território chinês sob administração portuguesa”, situação singular a requerer solução diferenciada. Da lista de territórios asiáticos a descolonizar por Portugal, restava Timor. Reocupado pela potência colonial europeia quando o fim da Guerra do Pacífico ditou a retirada do Japão, e apesar da afirmação do Ministro das Colónias Marcello Caetano que Portugal voltava como “amigo rico”, o “Timor Português” não participou no processo de “desenvolvimento repressivo” (Bandeira Jerónimo 2023) que, no pós-II Guerra Mundial, tocou Angola e Moçambique. Em 1974, continuava a ser “uma colónia sem colonos”, como lhe chamara, na década de 1930, o capitão Armando Pinto Corrêa, então administrador do território. Tal como os outros dois domínios asiáticos portugueses, Timor era um pequeno território – 15 mil km2, com pouco mais de meio milhão de habitantes – rodeado por um enorme vizinho. A Indonésia é uma potência regional composta por um vasto arquipélago, com cerca de 17 mil ilhas e, na altura, mais de 150 milhões de habitantes, que tinha além disso ambições territoriais associadas a uma retórica anticolonial. Timor apresentava outro significativo contraste com as colónias africanas: à data da revolução portuguesa, não possuía nenhum movimento nacionalista significativo (a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas nunca teve um membro timorense), nem era palco de guerra. A articulação entre as entidades que integravam a CONCP e actores fortes, quer da então Oposição Democrática portuguesa, quer da arena internacional, estava também ausente no caso que estamos a tratar, com excepção da relação que viria a desenvolver-se, alguns meses mais tarde, entre a Indonésia e movimentos locais. Por isso, o processo de autodeterminação do “Timor Português” não recebeu honras de prioridade, tardando a definir os seus contornos. Quem não demorou em se manifestar foi a Indonésia. Ainda antes de o general Spínola tomar posse como Presidente da República, e da nomeação do I Governo Provisório do pós-25 de Abril, desembarcou em Lisboa um diplomata e político de primeira linha (Franciscus Xaverius “Frans” Seda) com uma mensagem de Suharto. A Indonésia felicitava Portugal pela decisão de encetar a descolonização, e admitia duas soluções para o caso do “Timor Português”: ou a continuação da soberania portuguesa num novo quadro institucional, ou a integração dessa colónia na nação vizinha. Argumentando com “necessidades de segurança”, afastava a hipótese da independência. Esta não era uma posição consensual entre a elite de Jacarta, uma vez que algumas personalidades defendiam um alinhamento estratégico com a agenda descolonizadora do Movimento dos Não Alinhados, cuja origem remonta à Conferência de Bandung em 1955, iniciativa estruturante do posicionamento indonésio. Segundo estas vozes, tal alinhamento poderia sair debilitado caso a solução encontrada para Timor não fosse clara, ou derivasse do uso da força. O então Ministro dos Negócios Estrangeiros indonésio, Adam Malik, dirigiu em Junho de 1974 uma carta ao timorense José Ramos-Horta em que afirmava reconhecer a todos os povos o direito à independência, não havendo razões para excluir Timor desse direito. Sabemos hoje que as várias facções do poder político e militar em Jacarta foram jogando as suas cartas, incluindo o lançamento de uma operação secreta de desestabilização (Operasi Komodo), sob o comando de Ali Murtopo, general próximo do presidente Suharto e membro do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, influente think tank com uma forte componente de católicos indonésios. Suharto reservou para si a arbitragem dessas manobras. até se decidir por uma das partes e lançar a Operasi Seroja, que levaria à intervenção militar (Durand & Dovert 2016). A Indonésia apareceu, pois, desde o início, como um elemento crítico na descolonização de Timor, exigindo a Portugal a definição de uma resposta à sua posição, suportada num poderio militar tão forte que era impossível tanto de ignorar como de enfrentar. Em Timor, o mês de Maio de 1974 viu nascer três organizações, cada uma delas representando uma versão distinta do nacionalismo político. A União Democrática Timorense (UDT) começou por defender a manutenção do território num quadro de autonomia no seio de um Portugal federal, fazendo eco da posição veiculada por Spínola em Portugal e o Futuro. Depois da derrota desta tese, com a demissão do Presidente da República português, a UDT inclinou-se para uma independência a prazo, vindo mais tarde, em Agosto de 1975, a abraçar a defesa da integração na Indonésia. Essa era, desde o início, a linha estratégica da Associação Popular Democrática de Timor (APODETI), formada em finais de Maio de 1974. Portugal garantiu a legitimidade deste movimento, a possibilidade de ser apoiado abertamente pela Indonésia, e condições de expressão do seu ideário idênticas aos demais. Em 20 de Maio de 1974 surge também a Associação Social-Democrática Timorense (ASDT), que defendia uma independência negociada. Em Setembro, este grupo viria a redenominar-se Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN), radicalizando a sua linha política, sob a influência do retorno de Lisboa de um grupo de estudantes ligados à extrema-esquerda. O quadro das forças políticas sofreria ainda alguns ajustes, com o nascimento do Partido Trabalhista, do “monárquico” KOTA e de um efémero grupo que era partidário da integração na Austrália (prontamente desautorizado por todo o espectro político desse país). As três primeiras forças corporizavam as principais opções estratégicas alternativas. Qualquer uma delas apresentava uma solução compatível com o quadro desenhado pela ONU para a descolonização, nomeadamente pela Resolução 1541(XV) da AG (Dezembro de 1960). Contrariamente ao que se passava nas colónias africanas, onde havia uma quase perfeita coincidência entre nacionalismo e independentismo, a situação em Timor assemelhava-se à dos outros territórios portugueses na Ásia, onde a restauração de uma alegada unidade pré-colonial, por via da integração em nações que haviam sacudido o jugo colonial (Índia) ou realizado uma revolução anticapitalista e antiocidental (China), apresentava credenciais nacionalistas e anticoloniais. Como já se disse, Portugal tardou em definir um quadro de referência para a situação de Timor. Em princípio, a Lei 7/74, que definiu os contornos da descolonização, deveria aplicar-se também a esse território. Mas sucederam-se declarações de responsáveis políticos que colocavam o processo em termos específicos, que ora o dilatavam no tempo, ora assumiam que ele deveria seguir uma via própria. Em Outubro de 1974, depois de proferir declarações em Lisboa sobre a inviabilidade a curto prazo da independência de Timor, mas sublinhando também o encargo resultante para Portugal de manter aquela colónia – que impactaram negativamente na opinião das associações políticas timorenses –, Almeida Santos deslocou-se a Timor e constatou ser impossível travar o processo de descolonização em pé de igualdade com as restantes colónias. Em Novembro, o coronel Mário Lemos Pires foi nomeado novo governador e encarregado de diligenciar, junto das forças políticas mais implantadas no terreno, os termos de um roteiro para a descolonização. Seguiram-se intensas conversações entre Díli e Lisboa, de que a parte portuguesa dava também conta a delegações indonésias. A Indonésia insistia no que pode ser chamado de “descolonização sem autodeterminação”, isto é, numa negociação directa com Portugal, com exclusão de qualquer consulta ou envolvimento dos timorenses. Embora mostrando abertura para a continuação dos contactos, Portugal ripostou insistindo que a última palavra teria de ser dada às populações locais. Na sequência de diversas iniciativas de contacto e diálogo com a UDT, a APODETI e a FRETILIN, que ocuparam boa parte da primeira metade de 1975 e nas quais se trabalhou num roteiro desenhado por Almeida Santos, Portugal convocou a Cimeira de Macau (realizada a 25 e 26 de Junho), com o intuito de levar essas três entidades a assinar um acordo global de descolonização. A UDT e a APODETI compareceram, discutiram, obtiveram resposta a pequenos ajustes que propuseram, e assinaram uma declaração de concordância; a FRETILIN decidiu não comparecer, sem, porém, mostrar, em momento algum, uma atitude de antagonismo em relação à solução que estava em cima da mesa. Neste quadro, Portugal promulgou a Lei de Descolonização de Timor (Lei 7/75, de 17 de Julho), que previa a constituição de uma autoridade transitória, composta por um Alto-Comissário coadjuvado por dois secretários portugueses e por um representante de cada movimento nacionalista. Previa-se também que fosse formada, no terceiro domingo de Outubro de 1976, uma Assembleia Constituinte, “por meio de eleição directa, secreta e universal com inteiro acatamento dos princípios inscritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem”, estabelecendo-se o compromisso de acatar a deliberação dessa Assembleia, que disporia de um prazo de dois anos para concluir os seus trabalhos. Trata-se de uma solução parecida com a que fora desenhada para Cabo Verde e para São Tomé e Príncipe, desta feita alargada aos três movimentos que Portugal reconhecia como legítimos representantes do povo timorense (na senda do que sucedia em Angola com o MPLA, a FNLA e a UNITA, todos subscritores dos Acordos de Alvor), mas com prazos mais alargados. O tempo e as manobras desestabilizadoras de sectores relevantes da elite indonésia viriam a conspirar contra esta solução, que tinha como ponto forte seguir o estipulado nas resoluções relevantes da ONU e nas proclamações dos respetivos comités dedicados ao tema. Não dispondo de capacidade bélica para se opor a eventuais tentativas indonésias de subverter o processo, restava a Portugal desenhar uma solução com base no direito internacional. Qualquer tentativa indonésia para interferir ou desvirtuar o sentido imprimido por este modelo deveria conduzir esse país ao isolamento diplomático – como Portugal experimentara durante duas décadas – e ao seu enfraquecimento junto dos parceiros de luta anticolonial. No entanto, na noite de 10 para 11 de Agosto de 1975, em Díli, tudo se precipitou. A UDT levou a cabo um golpe de estado, sob o nome de Movimento Anti-Comunista (na tentativa de articular sectores que escapavam ao seu controlo direto), e denunciou o quadro desenhado pela Lei 7/75. O objectivo do golpe era confuso, mas foi o suficiente para quebrar o quadro de referência em vigor. O governador, não querendo antagonizar o movimento político que entendia ter melhores relações com Portugal, optou por não ripostar, mesmo se dispunha de força suficiente (cerca de 70 paraquedistas) para o fazer; em vez disso, procurou – sem êxito – a interlocução. Perante a ameaça a que ficou submetida, a FRETILIN proclamou uma “insurreição popular” e, apoiando-se num número elevado de militares timorenses do exército português, constituiu, a 20 de Agosto, as Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste (FALINTIL). Começou assim uma breve, mas sangrenta guerra civil, e com ela o espectro de que a solução militar pudesse vir a sobrepor-se aos esforços para encontrar uma saída política para a descolonização do território. Esse espectro tinha outra face: uma intervenção indonésia, a pretexto da inexistência de condições mínimas de estabilidade e segurança. Sem forças militares em número suficiente para o impedir, Portugal procurou a via diplomática. O Presidente da República, Costa Gomes, encarregou Almeida Santos de diligências em Nova Iorque, Jacarta, Camberra e Ataúro, um ilhéu próximo de Díli onde o governador português de Timor se refugiara. A hipótese de constituir uma força internacional de interposição, sob comando da ONU, com uma missão humanitária e transitória, não recebeu à época o apoio de ninguém. No início de Setembro de 1975, a guerra terminou, com a vitória da FRETILIN, que passou a dominar o território, com excepção da fronteira oeste, onde prosseguiam escaramuças com os indonésios. Portugal lançou sucessivos e veementes apelos a novas negociações, no quadro da Lei 7/75, que admitia poder ser pontualmente revista. De Díli, a FRETILIN reivindicava o regresso do governador (para responder aos argumentos indonésios de que Portugal havia abandonado as suas responsabilidades), mas exigia ser reconhecida como “único e legítimo representante” do povo timorense, não autorizando a presença da UDT ou da APODETI, que Portugal continuava a ver como movimentos com legítimas pretensões a participar no processo previsto pela Lei 7/75. Para a FRETILIN, o único ponto a discutir com Portugal era a negociação – bilateral – da “independência total e imediata”. Tirando uma hesitação, ao tempo do V Governo Provisório, quando se encarou tal hipótese (argumentando que o cenário da descolonização africana parecia ter-se imposto também em Timor), as autoridades portuguesas recusaram-se sempre a aceitar tais exigências, certas de que tal redundaria, inevitavelmente, numa intervenção indonésia, sem que o direito internacional desse cobertura à posição de Timor-Leste. O outono europeu assistiu ao arrastar de infrutíferas tentativas de marcar rondas de negociação com os três movimentos, admitindo-se que pudessem acontecer em separado. No início de Novembro, Melo Antunes reúne em Roma, pela última vez, com o seu homólogo indonésio Adam Malik, sem que o encontro resultasse em qualquer avanço, para além da reafirmação de posições já conhecidas. Num último esforço, o Ministro dos Negócios Estrangeiros português vai ainda a Nova Iorque discursar na ONU, apelando ao retomar de conversações com os nacionalistas timorenses. No dia 28 de Novembro, a FRETILIN proclama unilateralmente a independência da República Democrática de Timor-Leste. Portugal recusa-se a reconhecer o fait accompli. Praticamente nenhum país reconhece a nova república – facto curioso, que sinaliza o relativo isolamento deste caso em relação ao confronto entre blocos antagónicos a que chamamos Guerra Fria. Mas a Indonésia reage como esperado: a 7 de Dezembro, lança um ataque com forças aerotransportadas, meios anfíbios e corpos terrestres. É apoiada internacionalmente pelos EUA (Simpson 2005), pela Austrália (Job 2021) e por vários vizinhos da ASEAN, sem que o campo oposto seja capaz de mobilizar qualquer contestação. Como disse José Ramos-Horta (1996) na sua alocução por ocasião da atribuição do Prémio Nobel da Paz, Timor-Leste não passou de uma nota de rodapé na saga da Guerra Fria. Gabando-se de que iriam tomar o pequeno-almoço em Batugadé (na fronteira oeste), almoçar em Díli e jantar em Lospalos (na ponta leste), os indonésios viriam, no entanto, a enganar-se: a ocupação demorou muito mais tempo do que o previsto, enfrentando uma tenaz oposição popular. [show more]
Praga de gafanhotos (1898)Praga de gafanhotos (1898)
Description:Ao longo da História, as interações entre os humanos e os não-humanos – múltiplas, mútuas e continuamente adaptativas – foram marcadas por momentos de perturbação. Descritas desde a Antiguidade Clássica, as pragas de gafanhotos são um dos protagonistas mais conhecidos de tais momentos. Recorrentes, destruidoras, e comuns a quase todas as geografias e períodos históricos, estas pragas estão na origem da própria palavra “calamidade”, a destruição do calam (em latim, caniço ou talo do trigo) que fazia pairar a ameaça da fome sobre as comunidades dependentes da colheita do cereal. Algumas espécies de gafanhotos beneficiam de circunstâncias ecológicas particulares, associadas ao tipo de coberto vegetal e a determinadas condições climáticas, tendo ciclos reprodutivos particularmente bem-sucedidos e formando, assim, populações numerosas que se mantêm aglomeradas. Esta gregarização é um fenómeno biológico em que se verificam mudanças fisiológicas e morfológicas individuais, articuladas com a alteração de um comportamento solitário e relativamente críptico, desencadeando-se uma fase de maior notoriedade e atração de conspecíficos. Os enxames assim formados atacam vorazmente culturas em crescimento. Em seguida, encetam uma deslocação a partir do seu ponto de origem, num trajeto que pode ter centenas ou milhares de quilómetros, com paragens regulares, e repetidos prejuízos, cruzando, frequentemente, as fronteiras políticas de diversos países. A história das pragas de gafanhotos enfrenta dois desafios principais: (1) o de abraçar as causas dos eventos, os impactos geograficamente distribuídos e as respostas societais que lhes foram inerentes de forma transnacional; e (2) o reconhecimento do papel dos não-humanos como sujeitos da História. Para a fome generalizada que afetou a Síria e a Palestina nos anos da 1ª Guerra Mundial, por exemplo, terá contribuído, alegadamente, um episódio de gregarização e migração de gafanhotos: no ano que se seguiu a uma invasão de gafanhotos do deserto (Schistocerca gregaria), morreram 100 a 200 mil pessoas de desnutrição ou doenças associadas. Frutas, legumes, forragens e uma pequena, mas não insignificante, quantidade de cereais foram devorados pelos insetos (Foster 2015). Em Portugal também se testemunharam fenómenos similares. Em 1898, por exemplo, grandes enxames de gafanhotos entraram em território algarvio. Para os agricultores locais não era estranha a chegada esporádica de nuvens de gafanhotos do deserto, as quais, neste território, causavam poucos ou nenhuns danos. Julgaram-nos idênticos e, por isso, ignoraram o fenómeno. Todavia, este era protagonizado por uma outra espécie, o gafanhoto marroquino (Dociostaurus maroccanus) (Gomes et al. 2019). Na primavera do ano seguinte, os ovos começaram a eclodir e uma nova geração de gafanhotos passou a alimentar-se das culturas e a voar para outros locais. Foi demasiado tarde para evitar a invasão prolongada, que duraria até 1905. Só no distrito de Faro, em 1899, foram apanhadas mil toneladas de gafanhotos. A expansão da praga alcançou onze distritos, o maior número registado até 1947. Os gafanhotos foram descritos como “assustadores”, “legiões inumeráveis e extraordinárias”, “devastando localidades onde pousam, com mais prejuízo, do que o fogo”; “uma verdadeira calamidade para a agricultura e para o tesouro” (Anónimo 1901). Publicadas na mesma época, as leis protecionistas que pretendiam aumentar a produção de cereais panificáveis terão contribuído para agravar o alarme e obrigar à tomada de medidas pela administração central para mitigar os efeitos dos gafanhotos. Em 1899, estabeleceram-se os “Serviços Contra as Epiphytias”. O Decreto de 23 de dezembro, que os instituiu, foi o primeiro regulamento geral contra as pragas das plantas em Portugal. Apesar de se tratar de um conjunto de disposições genéricas, que podiam ser aplicadas a qualquer praga, assemelhava-se muito à Ley de Extinción de la Langosta, publicada em Espanha vinte anos antes (Buj 1996). Em 1902 – ainda o surto de gafanhotos iniciado em 1898 não tinha sido extinto ¬ –, foi publicado o Regulamento dos Serviços de Extinção dos Acrídios, criando-se um serviço exclusivamente dedicado aos gafanhotos. Os regulamentos para controlar os surtos destes insetos sugerem um modus operandi semelhante em Portugal e em Espanha, revelando uma história transnacional que inclui os dois países ibéricos. Ambos defendiam a destruição dos ovos dos gafanhotos, lavrando os terrenos onde estes tinham sido postos, e a apanha dos animais à mão ou com redes ou armadilhas, destruindo-os posteriormente. No entanto, os relatórios das autoridades portuguesas, bem como as descrições feitas nos jornais da época – tal como O Bejense, O Comércio da Guarda ou O Distrito de Faro, entre outros – das ações levadas a cabo para controlar as populações de acrídios, não reconheciam essas semelhanças, e exigiam articulação, colaboração ou cooperação entre os governos para pôr em marcha um programa comum de combate aos surtos. A luta contra os gafanhotos deveria ser uma tarefa transnacional, baseada numa ação conjunta, coerente e coordenada ao nível de métodos e esforços. Ainda assim, um ofício atesta uma pontual cooperação ibérica. Em 1900, Portugal tinha recebido uma amostra de um fungo (Empusa acridii), do Instituto de Grahamstown, da Colónia do Cabo. Era uma tentativa pioneira de usar a luta biológica para controlar o flagelo. Esperava-se que o patógeno se espalhasse na população de gafanhotos, causando-lhes a morte (Pestana 1901). A amostra foi partilhada com Espanha, com a justificação de que a maioria das invasões em território nacional provinha do país vizinho. Pode supor-se que o momento histórico, marcado por rivalidades entre Portugal e Espanha a par com o crescimento do iberismo, possa ter criado dificuldades de colaboração entre instituições congéneres. Todavia, os gafanhotos vieram lembrar que as fronteiras políticas não separam uma unidade geográfica ou ecológica, e não eram por isso capazes de impedir a circulação dos insetos. Para a extinção dos acrídios, “não [havia] ninguém que não [visse] com bons olhos, n’esse sentido, a união ibérica” (Mastbaum 1901: 117). [show more]