Festas do Espírito Santo

- Abstract
- As festas do Espírito Santo tiveram origem, em Portugal continental, no início do século XIV. Iniciaram, a partir do século XVI, um conjunto de viagens – associadas a diferentes fases da globalização – que as irão conduzir sucessivamente aos arquipélagos atlânticos da Madeira e dos Açores e, a partir do século XVII, ao Brasil. Desde finais do século XIX acompanharam também a emigração açoriana para a América do Norte, onde se realizam hoje festas nos EUA no Havaí, na Bermuda e no Canadá.
- Description
As festas do Espírito Santo podem ser definidas como festas em honra e louvor do Espírito Santo. Este é representado, no âmbito dos festejos, por uma coroa em prata (ou noutro metal) encimada por uma pomba.
As festas convergem tendencialmente para o domingo do Espírito Santo – sete semanas depois da Páscoa – ou para o domingo da Trindade – uma semana depois do domingo do Espírito Santo. Mas, em muitos locais, podem realizar-se em qualquer domingo situado entre o domingo do Espírito Santo e o último domingo de agosto. Em casos mais raros, podem mesmo ter lugar em qualquer domingo situado ao longo do ano. As festas resultam tanto de promessas individuais como de uma devoção mais genérica ao Espírito Santo a cargo de irmandades constituídas para o efeito. Fornecem também o contexto para o pagamento de outras promessas menores.
A sequência ritual central das festas é a coroação: imposição solene da coroa a um ou mais devotos – crianças ou adultos – realizada por um padre no termo da missa do dia da festa. O script das festas inclui ainda outras cerimónias religiosas, como procissões ou sessões de oração e canto em honra e louvor do Espírito Santo. Mas reservam um papel central a várias formas de circulação de alimentos, desde refeições comunitárias a distribuições porta-a-porta de alimentos.
Com estas características, as festas do Espírito Santo, existem somente em Portugal ou em países afetados pela colonização e pela emigração portuguesas, como o Brasil e – na América do Norte – os EUA, o Canadá, o Havaí e a Bermuda.
As primeiras referências documentais seguras sobre as festas do Espírito Santo remontam ao século XIV e por isso é possível situar aí – ou em finais do século XIII – a sua origem. A narrativa mais divulgada sobre a origem das festas defende que elas nasceram em Alenquer por iniciativa da Rainha Santa Isabel. Dois aspetos obrigam a algumas cautelas em relação a esta narrativa. Por um lado, há referências a festas do Espírito Santo para períodos anteriores ao reinado de D. Dinis. Por outro, esta narrativa foi construída tardiamente – no século XVII – por eclesiásticos ligados á Ordem Franciscana e não se sabe até que ponto a sua versão dos acontecimentos – escrita quase três séculos depois e com intuitos hagiográficos – é fiável.
Seja qual for a sua origem exata, uma vez instituídas, as festas do Espírito tiveram uma rápida difusão, primeiro em Portugal continental e depois noutros destinos atlânticos tocados pela colonização e pela emigração portuguesas.
Nas suas primeiras viagens, as festas do Espírito Santo foram-se instalando em várias localidades de Portugal continental. Os testemunhos sobre a difusão inicial do culto são fragmentários e informação mais completa surge sobretudo a partir de finais do século XIX. Com base nela é possível traçar um mapa aproximativo das viagens “continentais” do Espírito Santo. Esse mapa engloba um total aproximado de 100 localidades, situadas no Centro e Sul de Portugal continental e deixa de fora o Norte do país. No interior deste mapa há áreas de maior concentração das festas do Espírito Santo: Beira Baixa, Tomar, arredores de Lisboa, Algarve.
A maior parte destas festas parece ter entrado em declínio a partir de finais do século XIX. Isso não quer dizer que as festas do Espírito Santo tenham desaparecido por completo de Portugal continental, mas que o seu número é hoje em dia bastante mais baixo do que presumivelmente foi no passado.
Depois de iniciado este primeiro ciclo de viagens, as festas do Espírito Santo irão encetar, a partir do século XVI, um segundo ciclo de viagens – ligadas à expansão portuguesa e àquilo que se tem chamado de primeira globalização – que as irão conduzir para mais longe.
A primeira escala nesse ciclo de viagens tem lugar nos arquipélagos atlânticos da Madeira e dos Açores. No caso dos Açores sabemos – por intermédio das crónicas de Frei Gaspar Frutuoso – que as festas do Espírito Santo surgem no início da colonização portuguesa do arquipélago. É provável que o mesmo tenha acontecido na Madeira.
Mas uma diferença importante separa a Madeira dos Açores. Enquanto na Madeira as festas do Espírito Santo parecem ter conhecido algum declínio e a sua presença é hoje mais pontual, nos Açores elas mantiveram e reforçaram a sua importância na vida religiosa, social e cultural local. Hoje em dia todas as freguesias dos Açores celebram o Espírito Santo e em muitas freguesias são várias as festas que têm lugar. Embora seja difícil fornecer números exatos o total de festas nos Açores deverá ser superior a 300.
Com o tempo, os Açores irão passar de espaço de receção das festas do Espírito Santo vindas do continente a espaço de difusão das festas do Espírito Santo para outros destinos.
Entre esses espaços encontra-se o Brasil. Aí, as festas do Espírito Santo – geralmente conhecidas pela designação de festas do Divino – possuem uma geografia muito ampla. No Norte existem referências a festas do Espírito Santo no Amapá, na Amazónia e na Rondónia. Mas é sobretudo no Maranhão que as festas do Espírito Santo têm uma presença significativa. Aí o número total é de 200 festas, 70 das quais em São Luís. Descendo para o sul há referências assíduas a festas do Espírito Santo nos estados da Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A importância de Santa Catarina nesta geografia brasileira do Divino deve ser sublinhada: aí realizam-se anualmente cerca de 60 festas, fazendo com que Santa Catarina seja, a seguir ao Maranhão, o estado brasileiro onde estas são mais expressivas.
Muitas destas festas podem ser ligadas de forma mais ou menos segura aos Açores e aos açorianos. Seria o caso de São Luís, colonizado no início do século XVII por casais açorianos. E é também o caso de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Mas outras festas podem ter viajado a partir de Portugal continental. De qualquer forma, com o tempo, elas tornaram-se independentes de Portugal (e dos Açores) e começaram a viajar autonomamente no interior do Brasil. Esses movimentos mantêm-se até à atualidade.
O período que se inicia em finais do século XIX e se estende pelo século XX adentro é marcado por um quarto ciclo de viagens do Divino – ligado à segunda globalização – que se desenvolveu em dois momentos distintos. Entre 1870 e 1920, acompanhou a primeira vaga migratória açoriana para os EUA e Havaí. E entre 1960 e 1980, está associado à segunda vaga migratória de açorianos, de novo para os EUA, mas também para o Canadá e para a Bermuda. Este movimento de recriação das festas na América do Norte iniciou-se na Califórnia em 1870, onde rapidamente se multiplicam as festas, que, na viragem do século XIX para o século XX, eram já cerca de 80. Na Nova Inglaterra, a primeira festa surge mais tarde, mas ainda em finais do século XIX, e também aí se assiste a um movimento de multiplicação rápido das festas. Este movimento atenua-se por volta dos anos 1930 e a seguir à 2ª Guerra Mundial. Mas a partir dos anos 1960, com a chegada de novos emigrantes, o movimento de recriação das festas retoma: festas moribundas são revitalizadas e novas festas aparecem. É também dos anos 1960 que datam as primeiras festas no Canadá, sobretudo em Toronto, Montreal e Vancouver, as cidades canadianas onde se concentra o maior número de emigrantes açorianos nesse país
Em resultado deste quarto ciclo transatlântico de viagens do Espírito Santo existem hoje na América do Norte cerca de 230 festas, 100 das quais na Califórnia, 70 na Nova Inglaterra e 60 no Canadá. Pode mesmo dizer-se que as festas do Espírito Santo possuem uma aderência quase total em relação à geografia da emigração açoriana na América do Norte. Se se quiser encontrar açorianos na América do Norte, um bom método é encontrar uma festa do Espírito Santo. De tal maneira é assim que à medida que grupos de açorianos se deslocam para outros estados norte-americanos vão dando seguimento às viagens norte-americanas do Espírito Santo, como acontece em Montana, no Ohio ou na Florida.
Com este quarto ciclo de viagens do Divino a história da circulação das festas do Espírito Santo parece por enquanto ter-se fechado. Mas ela não ficaria completa sem uma referência às suas viagens de retorno: da América do Norte e do Brasil para os Açores e dos Açores para Portugal continental.
As viagens de regresso das festas da América do Norte para os Açores estão relacionadas com o peso que os emigrantes tiveram, sobretudo entre os anos 1960 a 1980, na promoção de festas nos Açores. Na sua base estiveram promessas ao Espírito Santo relacionadas com a emigração, que irão dará lugar à multiplicação de festas promovidas por emigrantes. Em muitos casos, os emigrantes, ao regressarem, adotavam uma postura tradicionalista. Mas noutros casos, vão ser um fator de transformação das festas, introduzindo inovações originárias dos EUA, como aconteceu, na ilha do Pico, com a introdução das rainhas ou queens, importadas da Califórnia.
O mesmo movimento de retorno – embora menos intenso – tem tido lugar do Brasil para os Açores. Mas aqui os seus contornos são diferentes. De fato, em Santa Catarina, desenvolveu-se desde a década de 1940 um movimento de redescoberta das raízes açorianas do litoral do estado. Este movimento acentuou-se nos anos 1990, ganhando uma expressão popular vincada que mantém até ao presente e conduziu a uma objetificação açorianista das festas do Espírito Santo, vistas como um dos melhores exemplos da herança açoriana do estado. Em consequência abriu-se uma “segunda vida” para as festas do Espírito Santo – como emblema da açorianidade – com consequências, nalgumas festas, na sua reinvenção a partir do modelo açoriano das festas do Espírito Santo.
Finalmente, um terceiro movimento de retorno das festas do Espírito Santo fez-se dos Açores para Portugal continental. Como foi antes referido, no continente, as festas entraram em processo de declínio a partir de finais do século XIX. Mas hoje assiste-se a um movimento de revitalização em que as festas açorianas são frequentemente adotadas como modelo. É esse o caso do Penedo (Sintra). E é também, ironicamente, o caso de Alenquer.
A história das festas do Espírito Santo é, portanto, uma história de trânsitos, de circulação, de movimentos que se desenvolveram num espaço largo e num tempo longo, associados à própria cronologia da globalização. A sua difusão para os arquipélagos atlânticos e o Brasil associa-as à primeira globalização e à expansão do ocidente no Atlântico. As suas viagens para a América do Norte na viragem do século XIX para século XX articulam-se com a segunda globalização e com a grande migração europeia para a América. Movimentos mais recentes antecipam ou inserem-se naquilo que tem sido chamado a terceira globalização.
Ao longo destes grandes momentos do processo de globalização, para além de mercadorias, capitais e força de trabalho, circularam também ideias e formas culturais. As festas do Espírito Santo fazem parte destes processos de circulação de ideias e formas culturais, através dos quais se formou o Atlântico como um dos mais importantes sistemas regionais associados à globalização.
- Creator
- Leal, João
- Relation
- Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA)
- Date Issued
- 30 de maio de 2025
- References
- Brandão, Carlos Rodrigues (1978). O Divino, O Santo e a Senhora. Rio de Janeiro: FUNARTE.
Goulart, Tony (org.) (2002). The Holy Ghost Festas. A Historic Perspective of the Portuguese in California. San Jose CA: Portuguese Chamber of Commerce.
Januário, Ilda (2019). Irmãos e Irmãs na Coroa. As Festas do Espírito Santo no Canadá. Toronto: Marwoodd Bookworks.
Leal, João (1994). As Festas do Espírito Santo nos Açores. Um Estudo de Antropologia Social. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
Leal, João (2017). O Culto do Divino. Migrações, Transformações. Lisboa: Edições 70.
Nunes, Lélia Silva (2007). Caminhos do Divino. Um Olhar sobre a Festa do Espírito Santo em Santa Catarina. Florianópolis: Editora Insular.