Abolição da pena de morte
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- Abolição da pena de morte
- Abstract
- O abolicionismo foi sendo moldado pelo movimento liberal que, a partir de finais do séc. XVIII, cruzou as fronteiras dos países ocidentais e das suas colónias como um patamar de civilização firmado sobre os direitos individuais e universais da pessoa humana. Seguiu processos semelhantes ao longo do tempo e foi-se afirmando em fases sucessivas até hoje. Continua a ser um problema atual, embora em 2022 já existissem 148 estados abolicionistas, dando ideia de um movimento imparável no mundo contemporâneo.
- Description
- A pena de morte, como punição administrada pelo Estado, com base na lei, foi uma prática comum ao longo da História humana, tanto no Ocidente como noutras partes do mundo. Como prática violenta, foi sendo questionada de forma casuística ao longo do tempo. Na verdade, até ao séc. XVIII – altura em que a sua justificação prática e jurídica foi posta em causa nalguns pontos da Europa Ocidental – era uma norma (de jure ou de facto) que decorria do direito de regulação social atribuído aos poderes instituídos.
Na Europa, foi executada com algum recato até aos finais da Idade Média, altura em que passou a ser um instrumento de poder fulcral do Estado Moderno, apostado que estava este em afirmar o monopólio da violência legítima, impondo a pena de morte na base do aparato jurídico e penal que advinha da autoridade e do poder centralizado e absoluto – do Rei, da Igreja, ou da República. De meados até finais do séc. XIX, em vários países do Ocidente, a pena de morte deixou de ser aplicada a crimes políticos, tendo sido restringida ao domínio comum, com a finalidade de dissuadir e controlar o criminoso. Assim, nos finais do séc. XIX e inícios do séc. XX, são já muitos os países que optam por abolir a pena de morte – como aconteceu em Portugal, em 4 de julho de 1867 –, tendo ficado fragilizada muita da argumentação que sustentava a filosofia e a prática dos países “mortícolas”, isto é, aqueles onde prevalecia a aplicação desta pena. Este primeiro patamar do abolicionismo – reforçado pela adesão dos países escandinavos no início do séc. XX – foi mais tarde superado por uma segunda vaga, iniciada no pós-II Guerra Mundial em países como a Áustria, a Finlândia, a Itália e a Alemanha Ocidental, e depois concluído, na última década do séc. XX, pela esmagadora maioria dos países europeus, em função de normas impostas por declarações e convenções universais (adotadas sob a inspiração da ONU e do Conselho da Europa), pela sensibilidade humanitarista que resultou na recusa da aceitação do sofrimento humano e do uso gratuito da violência, e da própria inutilidade da pena como forma de controlo da criminalidade. Depois da queda da URSS, os países que antes se encontravam incluídos no Bloco de Leste também seguiram o abolicionismo: Alemanha Oriental, Roménia, Hungria, República Checa, Eslováquia e, mais tarde, Polónia, Sérvia, Croácia e Macedónia.
Embora lentamente, o abolicionismo estendeu-se não só à esmagadora maioria dos países europeus, mas a muitas novas democracias (incluindo a África do Sul e as Filipinas), deixando de fora os Estados Unidos (na maioria dos seus estados), a China e alguns países do Médio Oriente e da Ásia. Em 2022, existiam 148 países abolicionistas, 114 dos quais com abolição para todos os crimes, e 25 abolicionistas de facto; do total, apenas 9 mantinham a pena de morte para crimes comuns. Em contrapartida, 55 países continuavam a ter a pena de morte na lei, embora, na esmagadora maioria, sem a aplicarem na prática. A China, o Vietname e a Coreia do Norte mantêm uma política de total sigilo, pelo que se desconhece a verdadeira dimensão do problema nesses países. No mesmo ano de 2022, os dados conhecidos apontam para a ocorrência de execuções por pena capital nos EUA (18), no Egito (24), na Arábia Saudita (196) e no Irão (576), num total de 883. Sabe-se que ocorreram execuções na China, mas não é possível determinar o seu número (Relatório da Amnistia Internacional para o Ano de 2022).
A abolição da pena de morte constitui hoje um patamar de civilização consagrado por normas jurídicas internacionais, que exercem uma pressão abolicionista forte sobre os estados retencionistas, tendo-se constituído como um indicador – e como um travão – para a entrada desses estados nos areópagos que se guiam por princípios democráticos e pelo respeito pelos Direitos Humanos (como é o caso do Conselho da Europa). Embora a natureza da pena de morte enquanto questão política se tenha alterado, em substância os argumentos dos “mortícolas” e os princípios filosóficos, humanitários, jurídicos e práticos dos abolicionistas não mudaram desde os finais do séc. XVIII, altura em que alguns estados liberais, munidos de instrumentos jurídicos e institucionais novos, puderam prescindir do barbarismo desta punição, até aí aplicada em praça pública com a finalidade de atemorizar os súbditos. Neste sentido, o abolicionismo é um legado do liberalismo e do pensamento de iluministas como Beccaria.
A obra Dei delitti e delle pene, de César Bornesano, marquês de Beccaria, publicada em 1764, condensou as preocupações mais avançadas da consciência da época sobre a legitimidade e a utilidade da pena de morte, revolucionando os códigos penais modernos e dando azo a um profundo debate sobre o regime prisional e sobre o sistema punitivo contemporâneos. Repudiou a ideia de pena como expiação da culpa – tão cara ao espírito inquisitorial ainda bem vivo na sua época – e questionou a intimidação e a “exemplaridade” dos autos de fé e das execuções públicas porque, como considerava, “A pena de morte é (...) funesta à sociedade pelos exemplos de crueldade que fornece aos homens.” Na sua inovadora perspetiva, a pena teria de visar mais a prevenção do mal futuro do que a reparação do crime cometido; portanto, ela só faria sentido se tivesse como meta a correção do delinquente. “O objetivo da pena não é, portanto, outro senão impedir que o delinquente cause novos danos aos seus concidadãos e evitar que outros façam o mesmo”. Exemplar para a sociedade seria – se ocorresse – a reabilitação do condenado, e não a pena de morte, por não permitir a graduação do castigo e por ser inapelável e definitiva.
Buscando argumentos na ideia de contrato social de Rousseau, Beccaria considerava que não fazia nenhum sentido considerar que o homem se poderia dispor a ceder o direito de lhe tirarem a vida: “a soberania e as leis não são senão a soma das pequenas liberdades que cada um cedeu à sociedade”. O fundamento da punição só podia residir na utilidade comum e esta na lei moral, que havia de considerar iníqua qualquer condenação que ultrapassasse o interesse geral. Tudo se resumia então em saber se a pena de morte seria útil e necessária: excluindo da sua argumentação as dimensões filosófica e teológica, o autor deslocou o problema para os domínios utilitaristas do direito e da política. De ora em diante, o problema passou a ser formulado em termos políticos, sob o signo da discussão de saber se a pena capital pode ser substituída por outras penas, sem risco de aumento da criminalidade. Ora – considerava Beccaria –, se há meios mais eficazes do que a pena última para prevenir a prática de crimes futuros, então ela não só é inútil, como é desnecessária. Assim, propôs a substituição da pena capital pela pena de trabalhos forçados para toda a vida – a “escravidão perpétua”. A par da defesa da abolição da pena de morte, o ensaio de Beccaria foi ainda modelar na crítica feroz à condução arbitrária dos processos criminais, condenando a tortura como forma tradicional de captação de confissões.
Mercê destes avanços doutrinários, pequenos estados aboliram a pena de morte de jure e de facto: a Toscana (em 1786), alguns novos países independentes na América do Sul e Central (como a Venezuela, em 1863, e a Costa Rica, em 1877), e também Portugal (em 1867), sendo que, neste último caso, o pioneirismo se aliou ao facto de no nosso país a abolição nunca mais ter sido revertida, com exceção da sua aplicação em período de guerra (em 1916). No entanto, no contexto do séc. XIX tais casos são ainda excecionais; no início do séc. XX, irão juntar-se-lhes os países escandinavos (a Noruega em 1905, a Suécia em 1921, e a Dinamarca em 1930) e alguns outros países sul-americanos.
A estratégia abolicionista segue em todos os países uma prática comum, orientada por princípios humanitários, jurídicos e políticos. Começou por se lutar pela restrição dos motivos para a aplicação da pena de morte, pela suplicação de comutações pelo Rei, ou pela condenação das práticas de martírio executadas em praça pública. Em Portugal, é famoso o episódio ocorrido em Lisboa em 16 de abril de 1842, em que, sob enorme comoção pública, morrem Matos Lobo, o réu condenado, e o prior encarregado de o confortar, fulminado por uma apoplexia. Também o padre que o substituiu acabou por desfalecer à vista do cadafalso, instalado no Terreiro de Santos.
Do domínio humanitário, os liberais partiram para o campo jurídico, procurando abolir a pena de morte nos Códigos e nas Constituições. É um processo complexo, de avanços e recuos, que dá passos largos quando os tratadistas conseguem guindar-se à condição de deputados ou de ministros. Em Portugal, ficou célebre o trabalho doutrinário e político de D. António Aires de Gouveia, Lente da Universidade de Coimbra (o “bispo vermelho”, como ficou conhecido), que foi deputado e ministro da Justiça em 1865 e em 1892. Apodava a pena de morte de “impiedade”, “sacrilégio”, “insulto à civilização”. Assim como noutros países, em Portugal a oportunidade de consagrar a abolição na lei surgiria com a reforma das cadeias, matéria de natureza essencialmente política, que se decidia em função da capacidade do estado para punir ou dissuadir o criminoso e para conceber e administrar formas de cativeiro mais ajustadas às novas teorias de correção e regeneração do preso. O criminoso podia, em suma, ser castigado de outras formas, até mais “aflitivas” e em graus diferenciados, até à “escravidão perpétua”.
Neste contexto, o abolicionismo era, em finais do séc. XIX, uma matéria que, não ignorando os princípios filosóficos e jurídicos, se discutia em termos utilitaristas: as estatísticas demonstravam que a sua aplicação não constituía forma eficaz de dissuasão. O direito de recurso dos condenados, que começou a ser consagrado nos Códigos de muitos países, atirava os presos durante décadas para “corredores da morte”, o que além do mais podia resultar na demonstração de erros crassos dos tribunais, como aconteceu no caso da aplicação da pena de morte a Sacco e Vanzetti (EUA, 1927), cujo erro jurídico só foi reconhecido cinco décadas mais tarde. Nos países europeus que detinham largos espaços coloniais e territórios inóspitos (como era o caso de Portugal), o degredo e a deportação em massa para colónias penais e para campos de concentração passaram a ser formas de erradicar os “indesejáveis” e “incorrigíveis”, condenando-os a uma “morte perpétua”.
Vivemos hoje sob o efeito da última grande vaga de abolições ocorridas na última década do séc. XX, quando países como a Irlanda (1990), a Itália (1994), a Espanha (1995), a Bélgica (1996) ou o Reino Unido (1998) – para darmos só exemplos significativos – aboliram, em definitivo, a pena de morte dos seus Códigos. Até ao início dos anos 1990, a União Soviética ou a África do Sul ocupavam lugares cimeiros no número de pessoas executadas; hoje, tanto a África do Sul como as antigas repúblicas soviéticas aboliram a pena de morte de jure (e, tanto quanto se pode saber, de facto). Para estas tomadas de decisão históricas, muito terá contribuído a “landmark Soering”, uma decisão (com capacidade para criar precedente jurídico) do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos perante o apelo feito por Soering, um cidadão alemão que se encontrava na iminência de ser extraditado para os EUA, onde, segundo o seu apelo, corria o risco de ser “sujeito a tratamento degradante e à pena de morte”. A responsabilização dos países pela extradição de cidadãos para locais onde correm o risco de ser sujeitos à pena de morte foi incluída na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e esta modalidade de pena foi proibida (1989), o mesmo acontecendo no Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), aprovado em 1989. Norma semelhante foi consagrada no Protocolo com vista à Abolição da Pena de Morte, da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, adotado em 1990 pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos.
Em 1989, aproximadamente 80 países tinham abolido a pena de morte, enquanto a maioria (100) eram ainda retencionistas. Porém, no início do séc. XXI eram já 123 os Estados abolicionistas, tendo o seu número aumentado para 148 em 2022, dando ideia de um movimento imparável, com exceção de alguns estados norte-americanos, do Médio Oriente e da Ásia.
Ao contrário do que acontecia no séc. XIX, onde minorias esclarecidas foram responsáveis pelo abolicionismo, mesmo em países onde era comum afirmar-se que a população, de forma geral, defendia a sua manutenção, hoje tais decisões parecem antes derivar do respeito pelo direito à vida e à segurança individual, consagrados no Art. 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e nas Convenções e Protocolos subsequentes, bem como do efeito de uma consciência humanitarista generalizada.
Subsiste, evidentemente, a defesa da pena de morte em países como os EUA, com base em juízos genéricos e de difícil comprovação prática. Para os seus defensores, a pena dissuadiria os criminosos, faria justiça às famílias das vítimas, permitiria a “vingança” de atos terroristas horrendos ou de crimes muito graves. Por último, em alguns estados democráticos tem-se defendido que a maioria da população, ao contrário dos decisores, apoia a aplicação da pena de morte. Para responder a esta questão, em 2001 a Irlanda promoveu um referendo, com vista a ser retirada da Constituição qualquer referência à morte como penalidade, mesmo em casos de emergência, consulta que colheu o voto favorável de 62,08% da população.
Para a abolição da pena capital em todo o mundo, organizações como a Amnistia Internacional lutam hoje pelo integral conhecimento da sua aplicação, combatendo o sigilo que se verifica em países como a China, e contrariando ainda a ideia, muito generalizada nos EUA, de que a “morte limpa” (por injeção letal ou eletrocussão) constituiria uma solução humanista, por não infligir dor ao condenado.
- Creator
- Farinha, Luís
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Date Issued
- 11-11-2024
- References
- Beccaria, Cesare Bornesano (1764) Dei delitti e delle pene. Livorno.
Farinha, Luís (2017a). “A Abolição da Pena de Morte em Portugal: debates no Parlamento – das Cortes Liberais à Assembleia Nacional”. Carta de Lei da Abolição da Pena de Morte em Portugal. Edição comemorativa. Lisboa: Assembleia da República.
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Luís Farinha (coord.) (2017). MORTE À MORTE. 150 anos da Abolição da Pena de Morte em Portugal/1867-2017. Coleção Imagens e Documentos. Lisboa: Assembleia da República.
Dublin Core
Collection
Citation
Farinha, Luís, “Abolição da pena de morte,” Connecting Portuguese History, accessed December 12, 2024, http://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/31.