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Segunda Independência de Timor-Leste (1999-2002)
A invasão militar de Timor-Leste pela Indonésia, em Dezembro de 1975, suscitou a reacção de diversos agentes políticos. Em Timor, a FRETILIN procurou manter a resistência militar e popular, organizando a administração de “bases de apoio” que inicialmente gozaram de significativa expressão territorial. Portugal condenou a invasão e apresentou o caso na ONU, dando um passo decisivo para a internacionalização do problema, que evitara até ao último momento. A anterior passividade portuguesa agradara sobremaneira à Indonésia, que temia ver os países recém-independentes alinhar contra a sua posição, dificilmente compatível com o princípio da autodeterminação. A Indonésia instalou então um governo provisório, com base em políticos do que fora o Timor Português (nomeadamente da APODETI e da UDT), organizando, em Maio de 1976, um “acto de livre escolha” (logo crismado de “acto de não-escolha”) e arregimentando, sob coacção, líderes tradicionais, procurando dessa forma reproduzir o processo que anos antes havia conduzido na Papua Ocidental/Irian Jaya e que lograra obter reconhecimento da ONU. Através de uma resolução do seu parlamento, a Indonésia proclamou Timor como sua 27.ª província, sob a designação de Timor-Timur (Tim-Tim).
Ao longo do tempo, a ONU viria a assumir um papel relevante, mas oscilante. Ainda em Dezembro de 1975 o Conselho de Segurança (CS) se debruçou sobre o tema (com a Resolução 384, aprovada por unanimidade), enviando logo depois o diplomata Vittorio Winspeare Guicciardi ao território, em missão de reconhecimento. Uma segunda Resolução (389) foi aprovada em Abril de 1976, desta vez com a abstenção dos EUA e do Japão. Em ambos os casos, a Indonésia foi admoestada, tendo-lhe sido pedido que retirasse as suas forças militares; ao mesmo tempo, Portugal era repreendido por não conseguir manter a ordem na sua colónia. Até 1999, seria essa a última vez que o CS se debruçaria sobre o problema de Timor-Leste.
A Assembleia Geral (AG) da ONU também cedo se pronunciou em sentido crítico (Resolução 3485-XXX, 12 de Dezembro de 1975). Nos anos seguintes, viria a manifestar-se de maneira semelhante, mas o texto das resoluções seria cada vez mais moderado na crítica à Indonésia e nos remédios que propunha, enquanto o número de países que votavam a favor decrescia a olhos vistos. Em 1982, tentou-se um novo caminho: a resolução aprovada na AG solicitava ao Secretário Geral da ONU que procurasse obter um entendimento que incluísse Portugal e a Indonésia – países que pertenciam ambos à zona de influência dos EUA, não havendo por isso uma interferência directa dos problemas relacionados com a Guerra Fria. Javier Pérez de Cuéllar aceitou o encargo, sob condição de que a AG se abstivesse de se pronunciar sobre o caso enquanto durassem as suas diligências, exigência que foi cumprida.
Entretanto, entra em cena outra instância da ONU, a Comissão dos Direitos Humanos. No início da década de 1980, a questão do direito à autodeterminação – base da queixa apresentada por Portugal na ONU – havia perdido grande parte da aura moral de que disfrutara em décadas anteriores. Por um lado, a descolonização era agora vista como um processo quase concluído, subsistindo apenas um número reduzido de casos por resolver (como a Namíbia ou o Sahara Ocidental); por outro, a experiência das independências africanas da década de 1960, seguidas pela instalação de regimes cada vez mais vistos como corruptos, enfraquecera a dimensão moral associada à ideia de independência. A isto acrescia a convicção de que os casos pendentes se reportavam a territórios pequenos, pouco populosos, cuja viabilidade enquanto estados autónomos era questionável, segundo vários intervenientes ligados à própria ONU. Em contrapartida, com o alastramento da chamada “terceira vaga de democratização”, ganhavam força as reivindicações de respeito pelos direitos humanos, sendo que a Indonésia era susceptível de críticas severas nesse domínio, dado que a ocupação de Timor-Leste se revestia de uma extrema dureza. Neste contexto, a reivindicação do direito à autodeterminação passou a ser acompanhada pela exigência do respeito pelos direitos humanos, o que alargou a percepção da injustiça que se cometia em Timor-Leste e permitiu fazer chegar o drama a camadas cada vez mais amplas da opinião pública mundial.
Os esforços de dois sucessivos Secretários Gerais (Pérez de Cuéllar e Boutros Boutros-Ghali) no sentido de encontrar um entendimento entre Portugal e a Indonésia tiveram alcance limitado. Algumas hipóteses foram contempladas – como a de considerar as eleições legislativas indonésias de 1987 como uma espécie de referendo, mesmo que elas não incluíssem nenhuma pergunta específica sobre o destino do território –, mas não mereceram a concordância de Portugal; outras iniciativas, como a visita de uma delegação parlamentar portuguesa ao território, estiveram em preparação por vários anos (de 1987 a 1991), mas também não deram frutos. Só em 1997, com a eleição de Kofi Annan como Secretário Geral da ONU, o processo viria a desbloquear-se, depois da nomeação de um intermediário, o diplomata paquistanês Jamsheed Marker, amigo do ministro dos Negócios Estrangeiros indonésio, Ali Alatas, mas também muçulmano, o que contribuía para afastar o espectro de uma “guerra religiosa”. Seria neste contexto que viria então a estabelecer-se o acordo de 5 de Maio de 1999, a que voltaremos adiante.
A situação vivida no território durante o período de ocupação indonésia era de grande repressão. No período de administração transitória da ONU (1999-2002), seria instituída uma Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR), destinada a fazer um levantamento imparcial e internacionalmente supervisionado dos acontecimentos ocorridos entre 25 de Abril de 1974 e 17 de Outubro de 1999. As suas conclusões são devastadoras: a litania de atos de violência compreende detenções ilegais, tortura, violação, escravidão sexual, casamentos forçados, julgamentos injustos, recrutamento e trabalho sob coação, destruição de casas, culturas e gados, e deslocamentos massivos de populações. Mais impressionante é o número de mortes, quer as directamente provocadas por meios bélicos, quer as indirectamente induzidas, com especial incidência nos anos entre 1975 e 1980, quando a Indonésia usou, por exemplo, aviões OV-10 Bronco (fornecidos pelos EUA) para lançar sobre populações indefesas napalm fabricado na Suíça. O número de vítimas foi estimado entre 102 800 e 186 000. No entanto, dado o carácter parcelar das informações objectivas recolhidas, a própria CAVR admitiu que o número real pudesse ultrapassar as 200 mil pessoas que o Comité Internacional da Cruz Vermelha referiu – o que, em termos relativos, poria Timor-Leste a par dos “killing fields” dos Khmer Rouge do Camboja, onde mais de um quarto da população foi chacinada. Autores como Clinton Fernandes (2023) argumentam mesmo que o comportamento da Indonésia deve ser classificado como genocídio.
Além disso, o “desenvolvimento” que os indonésios se gabavam de ter proporcionado, contrastando-o com o marasmo da administração colonial portuguesa, traduziu-se na manutenção de um “estado de neo-subsistência”, em que “um conjunto de variáveis [...] mostra que apesar de elevados níveis de despesa pública, o resultado global da modernização social e económica efectivamente realizada em Timor-Leste foi mínimo” (Nixon 2012: 100). Em 2004, enquanto a República da Indonésia exibia um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) calculado pelo PNUD de 0,692 (111.º país em 177), Timor-Leste não passava de 0,436 (o que punha o território em 158.º lugar, o mais baixo de toda a Ásia). O fosso entre o nível de vida dos ocupantes e o das populações ocupadas era, pois, enorme.
A população timorense resistiu como pôde. Numa primeira fase, como já se disse, a FRETILIN organizou a administração de “bases de apoio”. As forças indonésias montaram as operações “Cerco e Aniquilação” – título sintomático do propósito de eliminação física de um grupo étnico-cultural – e “Cerca de Pernas”, em que se colocavam civis (incluindo mulheres e crianças) em frente a unidades militares que faziam cerco aos resistentes; expostos dessa maneira, muitos civis eram abatidos. Graças a esse tipo de tácticas, os indonésios conseguiram estabelecer controlo efectivo sobre o território. A última base da resistência, no Monte Matebian, caiu em Novembro de 1978, e, a 31 de Dezembro do mesmo ano, o líder timorense Nicolau Lobato foi morto em combate.
Seguiu-se um longo e penoso processo de reorganização, que viria a ser chefiado por Xanana Gusmão e passaria pela consolidação de uma estrutura tripartida. Contava, em primeiro lugar, com uma frente militar, que se encarregou de prosseguir uma guerra de guerrilha em condições particularmente adversas, visto que não dispunha de nenhum país limítrofe onde pudesse estabelecer “santuário”, nem contava com muitas vias para se reforçar em equipamento. Numa segunda frente, diplomática, sobressai o nome de José Ramos-Horta, conduzindo várias campanhas de sensibilização de governos e da opinião pública internacional, em parte apoiado numa extensa rede de organizações de solidariedade ancoradas nas sociedades civis que estruturavam uma “diplomacia cidadã”. Existia, por fim, uma frente clandestina, que por todo o território enquadrava a crescente oposição ao domínio estrangeiro, animando tanto sectores emergentes (como o movimento estudantil, fruto paradoxal do incremento da escolarização) como outros que inicialmente haviam encarado com simpatia a chegada dos indonésios. A resistência, e o seu reforço com o concomitante alargamento da sua base social e política, constituiu a base mais sólida para a continuada campanha pelo reconhecimento do direito à autodeterminação do território. Este alargamento paulatino viria a ter culminação institucional na constituição do Conselho Nacional da Resistência Timorense (CNRT), numa conferência realizada em Peniche em Abril de 1998 em que foi aprovada a sua Magna Carta, na qual se defendia um nacionalismo democrático e pluralista.
A presidência do CNRT foi então atribuída a Xanana Gusmão, detido desde 1992 na prisão de Cipinang, na província de Jacarta. Outros lugares cimeiros couberam a personalidades como José Ramos-Horta ou Mari Alkatiri, que se tinham distinguido desde o início do processo, a par de individualidades que inicialmente haviam colaborado com os indonésios (como Mário Viegas Carrascalão, governador entre 1982 e 1992), ou que eram tidas como próximas da Igreja Católica Timorense. A eleição de 1998 dos corpos dirigentes do CNRT constituiu o culminar de um processo iniciado por volta de 1982.
Naquele ano de 1982, Xanana Gusmão, então líder da FRETILIN (que se afirmava como partido marxista-leninista e havia efetuado purgas internas, entre as quais foi vítima o primeiro presidente da República Democrática de Timor-Leste, Francisco Xavier do Amaral), encontrou-se com o administrador apostólico de Díli, Monsenhor Martinho da Costa Lopes, que em 1977 havia substituído o bispo D. José Joaquim Ribeiro à frente da diocese, quando aquele prelado, vergado pelo peso do erro que havia cometido ao saudar a invasão indonésia, resignou ao cargo. A Igreja Católica havia sido um esteio da administração colonial portuguesa, tendo o próprio D. Martinho sido deputado na Assembleia Nacional, em Lisboa, entre 1957 e 1961. D. José Joaquim referira-se aos paraquedistas indonésios como “anjos vindos do céu para nos libertar”, para mais tarde se dar conta de que eram “piores que os demónios do inferno”. Entretanto, a partir da II Guerra Mundial a Igreja local havia procedido à “timorização” dos seus quadros, fazendo recrutamento local de padres, e por isso acompanhava com proximidade o sofrimento das populações.
O encontro entre Xanana e D. Martinho trouxe uma novidade: o prelado apelou ao guerrilheiro para que “abandonasse o marxismo” e “abraçasse a causa de todos os timorenses”, via que, anos mais tarde, Xanana haveria de seguir, quando em 1987 recusou continuar a liderar a FRETILIN e transformou as FALINTIL (até aí o braço armado do partido) em forças armadas apartidárias, assumindo-se, portanto, como chefe de uma Resistência pluralista. Esse gesto projectou-o como líder nacional e contribuiu para a emergência de um nacionalismo pluralista, com contornos inéditos.
Por sua vez, a Igreja Católica Timorense não perdeu tempo em afirmar a sua autonomia em relação à sua congénere indonésia e mesmo, em certa medida, em relação ao Vaticano, cujas posições tinham uma dose de ambiguidade, alegadamente para não alienar os seus cinco milhões de devotos no grande arquipélago indonésio. Graças a isso, a Igreja Católica Timorense veio a assumir um papel de relevo, não só na colaboração com as estruturas formais da Resistência Timorense, como sobretudo no cimento cultural de uma identidade nacional renovada.
Era este o panorama quando, a 5 de Maio de 1999, sob o alto patrocínio de Kofi Annan, foi assinado em Nova Iorque um acordo entre Portugal e a Indonésia. A crise financeira asiática de 1997 havia feito cair o ditador Suharto, abrindo as portas a um processo de democratização da Indonésia, sob a batuta do anterior vice-presidente, B. J. Habibie. Também os ecos do fim da Guerra Fria se faziam sentir: desaparecida a “ameaça comunista”, a manutenção sob proteção norte-americana de regimes abertamente autoritários vinha sendo cada vez mais posta em causa. O isolamento indonésio só não era maior porque o país continuava a dispor de importantes apoios no seio da ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático), onde a realpolitik de países comunistas – como o Laos e o Vietname – garantia uma estranha unanimidade. O acordo firmado em Nova Iorque em Maio de 1999 previa a realização de uma “consulta popular”, em que se perguntaria aos timorenses se aceitavam ou não dispor de uma “autonomia especial” no seio da República Indonésia. O artigo 6.º do acordo determinava o seguinte:
Se o Secretário-Geral apurar, com base no resultado da consulta popular e em conformidade com o presente acordo, que o enquadramento constitucional para uma autonomia especial proposto não é aceite pelo povo de Timor Leste, o Governo da Indonésia dará todos os passos necessários, em termos constitucionais, para pôr termo ao seu vínculo com Timor Leste, restaurando desse modo, nos termos da lei indonésia, o estatuto detido por Timor Leste antes de 17 de Julho de 1976, e os Governos da Indonésia e de Portugal e o Secretário-Geral acordarão os moldes de uma transferência pacífica e ordeira da autoridade em Timor Leste para as Nações Unidas.
O Secretário-Geral dará início, nos termos de mandato legislativo apropriado desde que disponha de mandato legislativo para esse fim, ao procedimento que irá permitir a Timor Leste iniciar um processo de transição para a independência.
A 30 de Agosto de 1999 teve lugar a “consulta popular” prevista. Organizado sob a égide da ONU e da sua UNAMET (United Nations Mission in East Timor, criada pela Resolução 1246, de 11 de Junho), precedido de um amplo recenseamento que garantisse um verdadeiro sufrágio universal de adultos e que resultou no registo – em Timor-Leste e na diáspora – de um total de 446 953 indivíduos, este referendo contou com uma elevada participação cívica: 96,4% de votantes. O resultado foi anunciado em Nova Iorque, a 4 de Setembro, pelo Secretário Geral Kofi Annan: 94 338 votos (21,5%) a favor do estatuto de “autonomia alargada” no seio da República Indonésia, e 344 580 (78,5%) contra essa proposta. Dificilmente um resultado poderia ser mais expressivo.
As autoridades de Jacarta foram apanhadas de surpresa. O seu aparelho administrativo, essencialmente repressivo, não tinha sido capaz de interpretar cabalmente o sentimento de repúdio que grassava em Timor-Leste. Nas suas memórias, Ali Alatas revelou que, no momento da assinatura do acordo, no círculo mais próximo de Suharto se acreditava que o resultado seria amplamente favorável à proposta de “autonomia alargada”, numa ordem de 80% para 20%. Com o avançar dos dias, essa margem haveria de encolher perante a evidência do seu irrealismo, para se situar na ideia de uma vitória pouco mais do que tangencial: 55% para 45%. Ainda assim, o espectro da derrota não parecia ser encarado (Alatas 2006: 211).
Porém, no comando militar havia quem se tivesse precavido, incitando partidários da integração a formar milícias, que foram apoiadas politicamente no decurso da campanha eleitoral, e ainda treinadas e armadas para eventuais ações violentas. Logo que o resultado foi anunciado, desencadeou-se uma onda de ataques que em duas semanas – apelidadas de “Setembro Negro” – provocaram mais de duas mil mortes, com a destruição de cerca de três quartos das infraestruturas físicas (desde edifícios da administração pública a pontes, passando pelo sistema de distribuição de energia eléctrica), resultando na fuga de cerca de 200 mil pessoas para a metade ocidental da ilha e o abandono dos seus postos pela esmagadora maioria dos quadros administrativos (muitos deles indonésios). O embaixador britânico na ONU, Sir Jeremy Greenstock, que visitou Díli em meados de Setembro daquele ano, declarou que “o inferno desceu à Terra”.
Xanana Gusmão foi finalmente libertado da prisão domiciliária e usou o seu imenso prestígio para reclamar do grupo de guerrilheiros das FALINTIL – então com cerca de 1500 homens, chefiados por Taur Matan Ruak, acantonados em quatro campos, incluindo no quartel general de Uaimori, no centro do país – que não ripostassem: fazê-lo poderia dar pretexto para se apresentar o caso como uma nova guerra civil, quando na realidade apenas uma parte estava em clara violação dos compromissos assumidos em Nova Iorque. Foi um preço elevado o que Xanana pagou para manter de pé o caminho da independência.
Perante o descalabro, que parecia escapar mesmo ao círculo próximo do presidente B. J. Habibie, o Conselho de Segurança da ONU aprovou, pela Resolução 1264, de 15 de Setembro, a constituição de uma força multinacional – a INTERFET (International Force for East Timor) – com o intuito de restabelecer um módico de tranquilidade no território. A Austrália forneceu o comandante (general Peter Cosgrove) bem como o grosso dos efetivos para esta força, que começou a chegar a Díli a 20 de Setembro.
Reposta a segurança, o parlamento indonésio foi chamado a cumprir o que estava estipulado, e a 17 de Outubro aprovou uma deliberação que dava cumprimento ao acordo. Ainda assim, a margem de vitória na votação parlamentar foi curta: 355 contra 322 deputados. Desaparecia Timor-Timur (Tim-Tim), 27.ª província da República Indonésia, e surgia um “território não autónomo”, formalmente ainda sob administração portuguesa, mas de facto diretamente tutelado pelo Conselho de Segurança da ONU. Rapidamente este órgão estabeleceu uma nova missão, a UNTAET (United Nations Transitional Administration for East Timor), criada pela Resolução 1272, de 25 de Outubro. Daí em diante, seria a ONU, através da articulação entre o Conselho de Segurança e a UNTAET, a pilotar o processo (MacQueen 2015; Pereira & Feijó 2023, cap. 13).
A missão da UNTAET – “preparar Timor-Leste para o autogoverno” – terá sido a de maior fôlego que a ONU desenhou até então (Tansey 2009). Esse propósito compreendia dois aspectos críticos: (re)construir as bases da administração pública, que colapsara no “Setembro Negro”, e dotá-la de princípios compatíveis com a construção de um estado de direito democrático. Para a ONU, chamuscada pelas sucessivas crises internacionais da década de 1990 (Ruanda, Balcãs) que haviam custado a Boutros-Ghali a reeleição, e ainda a braços com uma situação complicada no Kosovo, o tempo era de montar uma “missão exemplar” que resgatasse o seu prestígio. Não poupou esforços, desde logo nos recursos disponibilizados: a UNTAET teve orçamentos anuais superiores a 500 milhões de dólares (mais do que Timor-Leste viria a dispor nos seus orçamentos de estado dos primeiros anos pós-independência) e um significativo quadro de pessoal, tanto civil (2700) quanto militar (9150) e policial (1640) – cerca de seis vezes mais gente do que em 1974 havia de colonos e administradores coloniais (ao todo, cerca de 300) e militares. À frente da missão, foi colocado, como Representante Especial do Secretário Geral (RESG), um experiente diplomata e funcionário superior da ONU, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que combinava sob a sua alçada a totalidade dos poderes – executivo, legislativo e judicial. Haveria de ser comparado a um monarca pré-constitucional e o paradoxal modelo montado para o efeito descrito como “autocracia” (Chestermann 2004), “despotismo” (Beauvais 2001) ou “ditadura” (Powell 2008), embora de cariz benévolo. Não escapou aos observadores que afluíam a Díli a contradição de procurar criar as bases funcionais de uma democracia por métodos que em tudo lhe eram antitéticos.
O desenho político da missão coube, em primeira linha, ao Departamento de Operações de Manutenção da Paz da ONU (DPKO, na sigla em inglês), e não ao Departamento de Assuntos Políticos (DPA), que ao longo de décadas havia acompanhado o processo. Aplicou-se uma fórmula testada em contextos diversos: as partes “beligerantes” deviam ser tratadas como iguais (desvalorizando o facto de um referendo internacionalmente sancionado ter ditado uma inequívoca vitória de uma delas) e colocadas em plano de entidades consultivas. Vieira de Mello cedo se deu conta da crescente frustração da liderança timorense perante este cenário, e convenceu a sede a flexibilizar os termos de referência. Primeiro, retirou a designação “consultivo” do nome do conselho que reunia representantes de todas as forças sociais e políticas; em seguida, admitiu timorenses no governo de transição. As pressões locais para acelerar o processo de independência – que chegou a estar previsto para um horizonte de cinco a dez anos – foram-se intensificando. Um ponto de equilíbrio foi encontrado no início de 2001, com a proposta de elaborar a Constituição do futuro estado. Mais uma vez, uma imposição externa – sobretudo associada a Peter Galbraith, representante da ONU no governo de transição – conduziu a um processo acelerado de formalização de partidos políticos, algo que líderes como Xanana Gusmão ou Ramos-Horta tentavam evitar, por temerem o regresso dos fantasmas de 1975; em vez disso, teriam preferindo soluções baseadas no consenso, como as que presidiam ao funcionamento do CNRT. Foi também por imposição da ONU que, exatamente dois anos passados sobre a data do referendo, se realizou uma “eleição especial”. O governo de transição foi remodelado, para melhor reflectir a nova correlação entre as várias forças, e a Assembleia eleita pôde elaborar a Constituição da República Democrática de Timor-Leste, mesmo que para isso não tivesse podido contar com importantes líderes que recusaram o modus operandi e, em particular, os termos propostos para a sua eleição. O texto final mereceu o voto favorável de mais de dois terços dos deputados (condição necessária para a sua aprovação) apesar da maioria dos (pequenos) partidos com assento na Assembleia ter votado contra. O calendário foi então acelerado, o que na sede da ONU não suscitou objeções, dado o volume de recursos afetos a esta missão. A declaração de “restauração de independência” (tal como a Assembleia definiu o acto) ficou marcada para 20 de Maio de 2002. Entretanto, a Assembleia deliberou por maioria – e com grande contestação dentro e fora de portas – transformar-se na primeira legislatura do Parlamento Nacional, estabelecendo para si própria um mandato de cinco anos, e foram organizadas eleições presidenciais. Rotuladas de “eleições da amizade” (Smith 2004), dadas as relações cordiais entre os dois candidatos (Xanana Gusmão, líder da Resistência, e Francisco Xavier do Amaral, presidente da efémera República a partir de 29 de Novembro de 1975), estas eleições saldaram-se por uma retumbante vitória do primeiro, com 83,7% dos votos. Para resguardar o seu estatuto de personalidade independente, Xanana fez questão de não se apresentar sob a bandeira de nenhum dos partidos até então formados, embora tenha aceitado o apoio que muitos deles lhe manifestaram; por seu lado, a FRETILIN, partido maioritário no parlamento, deu liberdade de voto aos seus simpatizantes.
À meia-noite de 20 de Maio de 2002, na localidade de Tasi Tolu, nos arredores de Díli, uma enorme multidão assistiu ao hastear da bandeira, ao hino nacional e à tomada de posse de Xanana Gusmão como Presidente da República. O acto foi testemunhado por Kofi Annan, pelo presidente português, Jorge Sampaio (acompanhado de diversas personalidades de relevo associadas à “questão de Timor”), pela presidente indonésia, Megawati Sukarnoputri, pelo primeiro-ministro australiano, John Howard, pelo ex-presidente americano Bill Clinton e por um representante especial do Papa João Paulo II.
Chegava ao fim um tardio, longo e penoso processo de autodeterminação, com vários traços originais, quer no contexto da descolonização portuguesa, quer no processo político mundial. Meses mais tarde, em inícios de Setembro, a Assembleia Geral das Nações Unidas votaria por unanimidade acolher a República Democrática de Timor-Leste como seu 191.º membro de pleno direito, sinalizando a aceitação internacional e sem reservas da solução encontrada pelo próprio povo de Timor-Leste.
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Primeira Proclamação da Independência de Timor-Leste (1975)
Seguindo os preceitos definidos na Conferência de Berlim, que haveriam de moldar as relações entre a Europa e as suas dependências até à segunda metade do século XX, o Terceiro Império colonial português foi um complexo histórico-geográfico centrado em África, com um lugar marginal – embora simbolicamente poderoso – reservado às possessões asiáticas. Quando a Revolução dos Cravos colocou na ordem do dia o processo de descolonização – o mais tardio entre as potências europeias – já a União Indiana havia resolvido de facto a questão do “Estado Português da Índia”, situação prontamente reconhecida ainda em 1974, e a República Popular da China, que desde 1966 detinha um controle informal mas substancial sobre Macau, havia diligenciado junto da ONU para retirar esse território da lista de entidades “não autónomas sob administração portuguesa” (Resolução 1542 (XV) da Assembleia Geral, Dezembro 1960) e fazer o seu registo como “território chinês sob administração portuguesa”, situação singular a requerer solução diferenciada. Da lista de territórios asiáticos a descolonizar por Portugal, restava Timor.
Reocupado pela potência colonial europeia quando o fim da Guerra do Pacífico ditou a retirada do Japão, e apesar da afirmação do Ministro das Colónias Marcello Caetano que Portugal voltava como “amigo rico”, o “Timor Português” não participou no processo de “desenvolvimento repressivo” (Bandeira Jerónimo 2023) que, no pós-II Guerra Mundial, tocou Angola e Moçambique. Em 1974, continuava a ser “uma colónia sem colonos”, como lhe chamara, na década de 1930, o capitão Armando Pinto Corrêa, então administrador do território.
Tal como os outros dois domínios asiáticos portugueses, Timor era um pequeno território – 15 mil km2, com pouco mais de meio milhão de habitantes – rodeado por um enorme vizinho. A Indonésia é uma potência regional composta por um vasto arquipélago, com cerca de 17 mil ilhas e, na altura, mais de 150 milhões de habitantes, que tinha além disso ambições territoriais associadas a uma retórica anticolonial. Timor apresentava outro significativo contraste com as colónias africanas: à data da revolução portuguesa, não possuía nenhum movimento nacionalista significativo (a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas nunca teve um membro timorense), nem era palco de guerra. A articulação entre as entidades que integravam a CONCP e actores fortes, quer da então Oposição Democrática portuguesa, quer da arena internacional, estava também ausente no caso que estamos a tratar, com excepção da relação que viria a desenvolver-se, alguns meses mais tarde, entre a Indonésia e movimentos locais. Por isso, o processo de autodeterminação do “Timor Português” não recebeu honras de prioridade, tardando a definir os seus contornos.
Quem não demorou em se manifestar foi a Indonésia. Ainda antes de o general Spínola tomar posse como Presidente da República, e da nomeação do I Governo Provisório do pós-25 de Abril, desembarcou em Lisboa um diplomata e político de primeira linha (Franciscus Xaverius “Frans” Seda) com uma mensagem de Suharto. A Indonésia felicitava Portugal pela decisão de encetar a descolonização, e admitia duas soluções para o caso do “Timor Português”: ou a continuação da soberania portuguesa num novo quadro institucional, ou a integração dessa colónia na nação vizinha. Argumentando com “necessidades de segurança”, afastava a hipótese da independência. Esta não era uma posição consensual entre a elite de Jacarta, uma vez que algumas personalidades defendiam um alinhamento estratégico com a agenda descolonizadora do Movimento dos Não Alinhados, cuja origem remonta à Conferência de Bandung em 1955, iniciativa estruturante do posicionamento indonésio. Segundo estas vozes, tal alinhamento poderia sair debilitado caso a solução encontrada para Timor não fosse clara, ou derivasse do uso da força. O então Ministro dos Negócios Estrangeiros indonésio, Adam Malik, dirigiu em Junho de 1974 uma carta ao timorense José Ramos-Horta em que afirmava reconhecer a todos os povos o direito à independência, não havendo razões para excluir Timor desse direito. Sabemos hoje que as várias facções do poder político e militar em Jacarta foram jogando as suas cartas, incluindo o lançamento de uma operação secreta de desestabilização (Operasi Komodo), sob o comando de Ali Murtopo, general próximo do presidente Suharto e membro do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, influente think tank com uma forte componente de católicos indonésios. Suharto reservou para si a arbitragem dessas manobras. até se decidir por uma das partes e lançar a Operasi Seroja, que levaria à intervenção militar (Durand & Dovert 2016). A Indonésia apareceu, pois, desde o início, como um elemento crítico na descolonização de Timor, exigindo a Portugal a definição de uma resposta à sua posição, suportada num poderio militar tão forte que era impossível tanto de ignorar como de enfrentar.
Em Timor, o mês de Maio de 1974 viu nascer três organizações, cada uma delas representando uma versão distinta do nacionalismo político. A União Democrática Timorense (UDT) começou por defender a manutenção do território num quadro de autonomia no seio de um Portugal federal, fazendo eco da posição veiculada por Spínola em Portugal e o Futuro. Depois da derrota desta tese, com a demissão do Presidente da República português, a UDT inclinou-se para uma independência a prazo, vindo mais tarde, em Agosto de 1975, a abraçar a defesa da integração na Indonésia. Essa era, desde o início, a linha estratégica da Associação Popular Democrática de Timor (APODETI), formada em finais de Maio de 1974. Portugal garantiu a legitimidade deste movimento, a possibilidade de ser apoiado abertamente pela Indonésia, e condições de expressão do seu ideário idênticas aos demais. Em 20 de Maio de 1974 surge também a Associação Social-Democrática Timorense (ASDT), que defendia uma independência negociada. Em Setembro, este grupo viria a redenominar-se Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN), radicalizando a sua linha política, sob a influência do retorno de Lisboa de um grupo de estudantes ligados à extrema-esquerda. O quadro das forças políticas sofreria ainda alguns ajustes, com o nascimento do Partido Trabalhista, do “monárquico” KOTA e de um efémero grupo que era partidário da integração na Austrália (prontamente desautorizado por todo o espectro político desse país). As três primeiras forças corporizavam as principais opções estratégicas alternativas. Qualquer uma delas apresentava uma solução compatível com o quadro desenhado pela ONU para a descolonização, nomeadamente pela Resolução 1541(XV) da AG (Dezembro de 1960).
Contrariamente ao que se passava nas colónias africanas, onde havia uma quase perfeita coincidência entre nacionalismo e independentismo, a situação em Timor assemelhava-se à dos outros territórios portugueses na Ásia, onde a restauração de uma alegada unidade pré-colonial, por via da integração em nações que haviam sacudido o jugo colonial (Índia) ou realizado uma revolução anticapitalista e antiocidental (China), apresentava credenciais nacionalistas e anticoloniais.
Como já se disse, Portugal tardou em definir um quadro de referência para a situação de Timor. Em princípio, a Lei 7/74, que definiu os contornos da descolonização, deveria aplicar-se também a esse território. Mas sucederam-se declarações de responsáveis políticos que colocavam o processo em termos específicos, que ora o dilatavam no tempo, ora assumiam que ele deveria seguir uma via própria. Em Outubro de 1974, depois de proferir declarações em Lisboa sobre a inviabilidade a curto prazo da independência de Timor, mas sublinhando também o encargo resultante para Portugal de manter aquela colónia – que impactaram negativamente na opinião das associações políticas timorenses –, Almeida Santos deslocou-se a Timor e constatou ser impossível travar o processo de descolonização em pé de igualdade com as restantes colónias. Em Novembro, o coronel Mário Lemos Pires foi nomeado novo governador e encarregado de diligenciar, junto das forças políticas mais implantadas no terreno, os termos de um roteiro para a descolonização. Seguiram-se intensas conversações entre Díli e Lisboa, de que a parte portuguesa dava também conta a delegações indonésias. A Indonésia insistia no que pode ser chamado de “descolonização sem autodeterminação”, isto é, numa negociação directa com Portugal, com exclusão de qualquer consulta ou envolvimento dos timorenses. Embora mostrando abertura para a continuação dos contactos, Portugal ripostou insistindo que a última palavra teria de ser dada às populações locais.
Na sequência de diversas iniciativas de contacto e diálogo com a UDT, a APODETI e a FRETILIN, que ocuparam boa parte da primeira metade de 1975 e nas quais se trabalhou num roteiro desenhado por Almeida Santos, Portugal convocou a Cimeira de Macau (realizada a 25 e 26 de Junho), com o intuito de levar essas três entidades a assinar um acordo global de descolonização. A UDT e a APODETI compareceram, discutiram, obtiveram resposta a pequenos ajustes que propuseram, e assinaram uma declaração de concordância; a FRETILIN decidiu não comparecer, sem, porém, mostrar, em momento algum, uma atitude de antagonismo em relação à solução que estava em cima da mesa. Neste quadro, Portugal promulgou a Lei de Descolonização de Timor (Lei 7/75, de 17 de Julho), que previa a constituição de uma autoridade transitória, composta por um Alto-Comissário coadjuvado por dois secretários portugueses e por um representante de cada movimento nacionalista. Previa-se também que fosse formada, no terceiro domingo de Outubro de 1976, uma Assembleia Constituinte, “por meio de eleição directa, secreta e universal com inteiro acatamento dos princípios inscritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem”, estabelecendo-se o compromisso de acatar a deliberação dessa Assembleia, que disporia de um prazo de dois anos para concluir os seus trabalhos. Trata-se de uma solução parecida com a que fora desenhada para Cabo Verde e para São Tomé e Príncipe, desta feita alargada aos três movimentos que Portugal reconhecia como legítimos representantes do povo timorense (na senda do que sucedia em Angola com o MPLA, a FNLA e a UNITA, todos subscritores dos Acordos de Alvor), mas com prazos mais alargados.
O tempo e as manobras desestabilizadoras de sectores relevantes da elite indonésia viriam a conspirar contra esta solução, que tinha como ponto forte seguir o estipulado nas resoluções relevantes da ONU e nas proclamações dos respetivos comités dedicados ao tema. Não dispondo de capacidade bélica para se opor a eventuais tentativas indonésias de subverter o processo, restava a Portugal desenhar uma solução com base no direito internacional. Qualquer tentativa indonésia para interferir ou desvirtuar o sentido imprimido por este modelo deveria conduzir esse país ao isolamento diplomático – como Portugal experimentara durante duas décadas – e ao seu enfraquecimento junto dos parceiros de luta anticolonial.
No entanto, na noite de 10 para 11 de Agosto de 1975, em Díli, tudo se precipitou. A UDT levou a cabo um golpe de estado, sob o nome de Movimento Anti-Comunista (na tentativa de articular sectores que escapavam ao seu controlo direto), e denunciou o quadro desenhado pela Lei 7/75. O objectivo do golpe era confuso, mas foi o suficiente para quebrar o quadro de referência em vigor. O governador, não querendo antagonizar o movimento político que entendia ter melhores relações com Portugal, optou por não ripostar, mesmo se dispunha de força suficiente (cerca de 70 paraquedistas) para o fazer; em vez disso, procurou – sem êxito – a interlocução. Perante a ameaça a que ficou submetida, a FRETILIN proclamou uma “insurreição popular” e, apoiando-se num número elevado de militares timorenses do exército português, constituiu, a 20 de Agosto, as Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste (FALINTIL). Começou assim uma breve, mas sangrenta guerra civil, e com ela o espectro de que a solução militar pudesse vir a sobrepor-se aos esforços para encontrar uma saída política para a descolonização do território.
Esse espectro tinha outra face: uma intervenção indonésia, a pretexto da inexistência de condições mínimas de estabilidade e segurança. Sem forças militares em número suficiente para o impedir, Portugal procurou a via diplomática. O Presidente da República, Costa Gomes, encarregou Almeida Santos de diligências em Nova Iorque, Jacarta, Camberra e Ataúro, um ilhéu próximo de Díli onde o governador português de Timor se refugiara. A hipótese de constituir uma força internacional de interposição, sob comando da ONU, com uma missão humanitária e transitória, não recebeu à época o apoio de ninguém.
No início de Setembro de 1975, a guerra terminou, com a vitória da FRETILIN, que passou a dominar o território, com excepção da fronteira oeste, onde prosseguiam escaramuças com os indonésios. Portugal lançou sucessivos e veementes apelos a novas negociações, no quadro da Lei 7/75, que admitia poder ser pontualmente revista.
De Díli, a FRETILIN reivindicava o regresso do governador (para responder aos argumentos indonésios de que Portugal havia abandonado as suas responsabilidades), mas exigia ser reconhecida como “único e legítimo representante” do povo timorense, não autorizando a presença da UDT ou da APODETI, que Portugal continuava a ver como movimentos com legítimas pretensões a participar no processo previsto pela Lei 7/75. Para a FRETILIN, o único ponto a discutir com Portugal era a negociação – bilateral – da “independência total e imediata”. Tirando uma hesitação, ao tempo do V Governo Provisório, quando se encarou tal hipótese (argumentando que o cenário da descolonização africana parecia ter-se imposto também em Timor), as autoridades portuguesas recusaram-se sempre a aceitar tais exigências, certas de que tal redundaria, inevitavelmente, numa intervenção indonésia, sem que o direito internacional desse cobertura à posição de Timor-Leste.
O outono europeu assistiu ao arrastar de infrutíferas tentativas de marcar rondas de negociação com os três movimentos, admitindo-se que pudessem acontecer em separado. No início de Novembro, Melo Antunes reúne em Roma, pela última vez, com o seu homólogo indonésio Adam Malik, sem que o encontro resultasse em qualquer avanço, para além da reafirmação de posições já conhecidas. Num último esforço, o Ministro dos Negócios Estrangeiros português vai ainda a Nova Iorque discursar na ONU, apelando ao retomar de conversações com os nacionalistas timorenses.
No dia 28 de Novembro, a FRETILIN proclama unilateralmente a independência da República Democrática de Timor-Leste. Portugal recusa-se a reconhecer o fait accompli. Praticamente nenhum país reconhece a nova república – facto curioso, que sinaliza o relativo isolamento deste caso em relação ao confronto entre blocos antagónicos a que chamamos Guerra Fria. Mas a Indonésia reage como esperado: a 7 de Dezembro, lança um ataque com forças aerotransportadas, meios anfíbios e corpos terrestres. É apoiada internacionalmente pelos EUA (Simpson 2005), pela Austrália (Job 2021) e por vários vizinhos da ASEAN, sem que o campo oposto seja capaz de mobilizar qualquer contestação. Como disse José Ramos-Horta (1996) na sua alocução por ocasião da atribuição do Prémio Nobel da Paz, Timor-Leste não passou de uma nota de rodapé na saga da Guerra Fria.
Gabando-se de que iriam tomar o pequeno-almoço em Batugadé (na fronteira oeste), almoçar em Díli e jantar em Lospalos (na ponta leste), os indonésios viriam, no entanto, a enganar-se: a ocupação demorou muito mais tempo do que o previsto, enfrentando uma tenaz oposição popular.
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Que se Lixe a Troika
O movimento Que se Lixe a Troika (QSLT) surgiu em Portugal no verão de 2012, num contexto marcado pelo maior nível de contestação verificado em Portugal desde os anos da revolução de Abril. Tal mobilização insere-se num quadro internacional marcado pela Grande Recessão e pela crise da Zona Euro, em que movimentos de protesto contestaram as políticas de austeridade e suas consequências sociais, políticas e económicas no sul da Europa. Tais políticas seguiam os ditames de redução da despesa estatal e liberalização do Estado Providência, privatizações e desregulação do mercado de trabalho. Em Portugal, essas políticas foram iniciadas em 2010 pelo então governo do Partido Socialista (PS, de centro-esquerda), por pressão dos mercados financeiros e da União Europeia, e prosseguidas pelo governo de coligação entre o Partido Social Democrata e o Centro Democrático Social (PSD e CDS/PP, de centro-direita) a partir de meados de 2011, já com monitorização da Troika formada pelo Banco Central Europeu, pela Comissão Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional.
O QSLT foi criado na sequência da mobilização anti-austeridade e da interação entre diferentes atores que se iniciou em meados de 2010. As primeiras reações foram lideradas por sindicatos através de greves gerais (em março e em novembro de 2010), seguidas em 2011 por movimentos como a “Geração à Rasca” (GàR, em março), a Acampada do Rossio (em maio) e a manifestação de 15 de outubro (15O), iniciativas que acompanhavam processos semelhantes a nível global. O GàR foi uma das primeiras mobilizações europeias na sequência da Primavera Árabe, tendo inspirado o protesto de 15 de maio (15M) em Madrid; em contrapartida, a Acampada de Lisboa replicou os eventos na capital espanhola, enquanto as manifestações de outubro se inseriram numa mobilização europeia destinada a assinalar os seis meses do 15M espanhol.
Após estas mobilizações, a unidade em torno do 15O desfaz-se. Com o início do ano de 2012 marcado por fraca mobilização, os sindicatos assumem protagonismo renovado através de novas greves gerais. Dado este retraimento, no verão, vários dos grupos que tinham deixado o 15O iniciam a preparação do QSLT. Agendada para 12 de setembro, a primeira manifestação promovida pelo QSLT foi impulsionada pelo anúncio de novas medidas de austeridade pelo então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, nomeadamente o aumento da contribuição dos trabalhadores para a taxa social única, que era acompanhado da sua diminuição por parte dos empregadores. Acirradas as tensões políticas e sociais, as estimativas apontaram para um milhão de pessoas na rua, em todo o país.
Com base numa análise das anteriores mobilizações, o QSLT procurou redefinir a sua oposição à austeridade. Por um lado, procurou maior politização da sua mensagem; por outro, estruturou-se numa forma de organização mais fechada, de modo a garantir uma direção sólida e a evitar conflitos entre grupos (Carvalho 2022). A sua ação dava-se em tabuleiros distintos: em relação a anteriores grupos, tinha maior proximidade com partidos e sindicatos, assim como com o município de Lisboa (Accornero e Ramos Pinto 2020); ao mesmo tempo, mantinha uma atividade típica de um movimento social.
O nome adotado tinha como objetivo exprimir a divisão política entre os que assinaram o Memorando de Entendimento com a Troika (PS, PSD e CDS/PP), e que como tal subscreviam as medidas de austeridade, e os que se situavam no campo oposto. Estabelecia-se, assim, não só uma linha de demarcação ideológica e política, mas também social, que afirmaria na rua a rejeição de tais políticas. Contudo, apesar do contexto de crise internacional e da condicionalidade imposta pela Troika, o QSLT não se opunha de forma clara à União Europeia, antes apontando o dedo aos responsáveis nacionais pelas políticas implementadas. Assim, um dos seus slogans era o de “governo para a rua”: alegava-se a falta de legitimidade de um programa que não tinha sido votado nas eleições de 2011 (Accornero e Kousis 2023; Carvalho 2022).
Ainda assim, o QSLT procurou inserir as suas atividades no contexto das lutas internacionais. Por exemplo, havia contactos próximos com Espanha, via internet, bem como visitas e contactos pessoais (Baumgarten e Díez García 2017). Procurou-se também replicar formas de organização de sucesso em Espanha: na manifestação de 2 de março (também com cerca de 1 milhão de pessoas), organizaram-se “marés” que se focavam na defesa de interesses e direitos sectoriais, tais como a saúde e educação. Porém, estas não chegaram a implantar-se com o mesmo sucesso que tinham obtido em Espanha. Outro exemplo foi a manifestação de junho de 2013: apesar de gerar menor participação em Portugal, ela tinha como lema “Povos Unidos contra a Troika”, integrando um esforço concertado em mais de 100 cidades da Europa.
A linguagem e os símbolos do QSLT alicerçavam-se numa defesa dos direitos sociais enquanto herança do 25 de Abril, num contexto em que a austeridade os punha em causa. Para isso, o legado da Revolução foi reinterpretado (Baumgarten 2017). O exemplo mais claro disso é o da canção Grândola, Vila Morena: nos estandartes do QSLT, era habitual a inscrição “O povo é quem mais ordena”, da canção de Zeca Afonso, pela sua evocação dos princípios de igualdade e justiça associados ao 25 de Abril. Com a preparação do protesto de março de 2013, esta canção foi várias vezes utilizada para interromper ministros em eventos públicos.
É importante notar que, dada a defesa da herança do regime instituído no período revolucionário, este grupo não contestava o regime em si mesmo, mas antes os atores que, no poder, pretendiam desfazer esse legado. Neste sentido, nunca se deu uma crítica ao regime, ou reivindicações de renovação democrática, mas antes a defesa do legado do período revolucionário. Este cenário é distinto do verificado, por exemplo, em Espanha, que também implementou medidas de austeridade fortemente contestadas. Em Espanha, a transição pactuada entre as elites partidárias foi criticada pelo seu alcance limitado, que não teria permitido uma rutura completa com o passado ditatorial, o que teria tido consequências para o funcionamento da democracia (Accornero 2015). Este discurso enquadrava-se numa crítica transversal, que reclamava uma renovação democrática e maior inclusão cidadã. Em Portugal, pelo contrário, a memória da transição é positiva, sendo vista como um legado a defender e a aprofundar. Neste sentido, a democracia concretiza-se através dos direitos estabelecidos durante aquele período.
O QSLT foi responsável por uma das maiores mobilizações de protesto desde os anos de Abril, colocando sob pressão o governo e as instituições políticas portuguesas. Em Portugal, deixou uma herança particularmente importante no imaginário dos movimentos sociais nos anos seguintes, reforçando um ideário de defesa dos direitos sociais inscritos na Constituição.
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Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do Movimento das Forças Armadas
As Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do Movimento das Forças Armadas (MFA) foram uma das iniciativas mais singulares que ocorreram na conjuntura revolucionária do 25 de Abril de 1974. Foram organizadas pela Comissão Dinamizadora Central (CODICE), estrutura da 5.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA), em colaboração com alguns organismos do Estado, nomeadamente a Direcção-Geral da Cultura Popular e Espectáculos, aliando diferentes sectores da sociedade portuguesa em torno de um novo projecto político.
A sua formalização ocorreu no dia 25 de Outubro de 1974, através de uma conferência de imprensa realizada no Palácio Foz, em Lisboa, no âmbito da qual foi apresentado o Programa de Dinamização Cultural e Esclarecimento Político, documento que clarificou os principais objectivos: “preencher o vácuo cultural e de informação política existente em todo o país, com maior incidência em certas zonas” (Correia et al. s/d: 21); a “luta anti-fascista”; o “esclarecimento do Programa do MFA”; e a criação de uma abrangente “rede cultural” em todo o país, através de uma descentralização cultural. Deste modo, a dinamização cultural tornou evidente a viragem cultural da como demonstraram Fishman & Lizardo (2013), no âmbito do processo mais vasto de aprendizagem da prática democrática (Fishman 2019).
As Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do MFA resultaram de uma pluralidade de experiências individuais e colectivas, que configuraram diferentes modelos inspiradores (ver Almeida 2019). Foram reformuladas ao longo da sua vigência, de acordo com o conhecimento das realidades que procuraram transformar, e em função também do rumo da revolução. As campanhas não apenas reflectiram a experiência da Guerra Colonial, especialmente da acção psico-social realizada pelos militares portugueses, mas também foram inspiradas por modelos internacionais, que incluíram desde os projetos pedagógicos de Paulo Freire até à experiência da revolução cubana, em particular as brigadas de alfabetização e os Comités de Defesa da Revolução (Sánchez Cervelló 1996: 263-264).
Prevendo o Programa de Dinamização Cultural e Esclarecimento Político uma actuação em todo o território, através do trabalho de equipas constituídas por militares e civis, as Campanhas actuaram privilegiadamente nas zonas rurais do norte e centro de Portugal. No entanto, desde o início, foi perceptível uma preocupação transnacional reflectida na deslocação de equipas para os países de acolhimento da emigração portuguesa na Europa (França, Alemanha, Bélgica Luxemburgo, Holanda, Inglaterra e Suíça), colaborando a CODICE, em alguns casos, com a Secretaria de Estado da Emigração.
De acordo com o Livro Branco da 5ª Divisão 1974-1975 (1984), entre 1974 e 1975 foi realizado um total de 10 mil sessões de esclarecimento. As Campanhas percorreram as populações rurais do interior norte e centro, intervindo em campos tão diversificados como o das infra-estruturas, da medicina, da veterinária, da agricultura ou do desporto. Foram construídos acessos, edificados recintos desportivos, promoveu-se o saneamento básico e a electrificação, e prestaram-se consultas médicas gratuitas. A par destas acções, a dinamização cultural integrou áreas como o teatro, as artes plásticas, o cinema, a dança, a música e o circo, coordenadas pelo sector cultural da CODICE. Neste âmbito, as áreas do teatro e das artes visuais tiveram uma actividade muito expressiva. Para os artistas que aderiram à proposta do MFA, as Campanhas foram um laboratório para a experimentação de novas relações com os públicos, contrariando uma arte apartada do real (Almeida, 2024).
Até 11 de Março de 1975, a Dinamização Cultural obedeceu a um modelo itinerante, em que as equipas procediam ao diagnóstico das principais necessidades das populações. O modo privilegiado de actuação eram sessões de esclarecimento que integravam a representação de uma peça de teatro, um concerto, ou a projecção de um filme. Neste modelo itinerante, foram realizadas as acções no distrito da Guarda (de 25 de Novembro de 1974 a 7 de Dezembro de 1974) e nas regiões de Bragança, Vila Real, Lamego e Viseu, numa campanha que assumiu a designação de “Operação Nortada” (de 6 de Janeiro de 1975 a 21 de Janeiro de 1975).
No mês de Janeiro de 1975 têm início duas outras campanhas: a primeira, entre 24 de Janeiro e 2 de Fevereiro, tem como destino o distrito de Castelo Branco; a segunda, denominada “Operação Verdade”, foi realizada no Alto Minho, de 31 de Janeiro a 9 de Fevereiro. Durante o mês de Fevereiro, a CODICE e as suas estruturas regionais e distritais continuam a promover sessões de esclarecimento em todo o país, nas quais se destacam a “Operação Alvorada”, nos concelhos de Ponte de Lima, Caminha, Vila Nova de Cerveira e Paredes de Coura, e a “Operação Povo Culto”, nos concelhos de Tavira, Castro Marim e Alcoutim.
No primeiro dia de Março de 1975, inicia-se a “Acção Atlântida”, no arquipélago dos Açores. Com duração prevista até dia 17, viria a ser suspensa devido aos acontecimentos do 11 de Março. A última campanha a ser realizada sob égide do modelo itinerante foi a “Operação Cávado”, que se propôs percorrer o concelho de Barcelos entre os dias 10 e 16 de Março.
A partir da “Operação Nortada”, o modelo itinerante e a tipologia de actuação são reavaliados. O 11 de Março de 1975 viria a desencadear a reestruturação das Campanhas de Dinamização Cultural, às quais é acrescentada uma nova dimensão: a Acção Cívica. No testemunho e na análise de Correia et al. (s/d), esta nova etapa baseia-se na experiência das acções anteriores, fazendo-se agora a apologia das campanhas de longa permanência, caracterizadas pela fixação de meios técnicos e culturais, dotando-se a CODICE de mais valências, que ampliam e fortalecem o seu campo de intervenção (ver Almeida 2009).
As campanhas realizadas sob a égide da “acção cívica” desenvolveram-se em várias fases, permanecendo no terreno por períodos mais prolongados. Por exemplo, a acção realizada no distrito de Viseu estará em curso durante um ano (de 20 de Março de 1975 até ao primeiro trimestre de 1976). A campanha “Maio-Nordeste”, realizada no distrito de Bragança, decorrerá durante cinco meses (tem início a 17 de Maio de 1975 e é interrompida em Outubro).
Visando democratizar o mundo rural por meio de iniciativas culturais dedicadas a denunciar o passado repressivo e a promover a participação cívica, as Campanhas enfrentaram fortes reações no norte rural, alimentadas pela Igreja conservadora e pelas elites locais. Na sequência do 25 de Novembro de 1975, a CODICE seria extinta no dia seguinte, embora algumas equipas tenham permanecido no terreno até ao início de 1976.
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Sabão
O corpo socialmente aceite teve, na Europa Ocidental e durante alguns séculos, cheiros excessivamente fortes. Esta realidade, transversal a diferentes grupos sociais, começou a alterar-se apenas em finais do século XVIII, de forma muito lenta e progressiva, através da generalização do uso do sabão, associada ao surgimento de novas ideias a respeito do corpo e da higiene.
Uma substância muito semelhante ao sabão, sem a saponificação das gorduras com soda cáustica, era há muito conhecida como agente de limpeza, mas a sua utilização parece ter diminuído em alguns períodos históricos, sendo o asseio muito dificultado pelas condições dos espaços habitacionais, pelos hábitos e pela convivência entre pessoas e animais.
No século XVII, e depois também no século XVIII, há diversas descrições de que a higiene se fazia “a seco”, por fricção. Para aqueles que tinham maiores posses, o vestuário utilizado substituía a limpeza das zonas cobertas: “mudar de roupa [era], no fundo, lavar-se” (Vigarello 1988: 54), o que fazia desse ritual uma verdadeira forma de comunicação não-verbal, que permitia identificar facilmente o estatuto social daqueles que podiam mudar a roupa que ficava em contacto com a pele.
A forma como a água e o sabão eram utilizados permite-nos também pensar na generalização de alguns objetos de limpeza, como por exemplo as escovas tipo viola, muito utilizadas para esfregar soalhos mas não só, ou ainda as pequenas vassourinhas sanitárias, também em fibra de piaçaba, que acabaram por ter uma enorme relevância no quotidiano (Chiazza 2012). Estes e outros objetos permitem-nos viajar através das práticas de higiene, das considerações sobre a saúde, das regulamentações sobre o corpo e o vestuário, bem como entrar em contacto com certas obsessões e alguns estereótipos.
Os cuidados com o corpo podem também perceber-se através das mudanças na arquitetura, no mobiliário, ou em utensílios banais, de uso comum, relacionados com lavagens íntimas, purgas e abluções diversas. O século XIX assistiu a uma higiene progressivamente mais pragmática: não estavam apenas em causa as políticas de higiene pública, a imposição de um discurso higienista (Barreiros 2016), mas também o reforço da imagem de corpos padronizados e disciplinados, mais saudáveis e mais fortes.
Foi por via de uma preocupação política cada vez mais higienista que a saúde pública foi ganhando adeptos e impondo práticas generalizadas (Porter 1998). Na medida em que a assepsia era mais desejada, a água, o seu transporte para cada casa e o seu escoamento obrigaram a importantes alterações urbanas, a diferentes configurações dos espaços interiores e a novas rotinas.
O sabão, que, do fabrico caseiro com gorduras vegetais (sobretudo azeite) ou animais (sebo, óleo de peixe ou de baleia) e cinzas, evoluiu para um produto com eficácia de detergente, concebido através de um processo industrial cada vez mais complexo e diversificado, começou a alimentar um comércio relevante, à medida que a publicidade seduzia a população com ideais estéticos que simultaneamente impunham permanentes “cuidados e desassossegos” (Crespo 1990: 7).
Em Portugal, a evolução foi em tudo semelhante ao panorama aqui traçado. Como noutros países europeus, ao longo do século XIX as saboarias adquiriram uma importância cada vez mais significativa (Barata 1974). O sabão, sobretudo o azul e branco, ia chegando lentamente às zonas rurais, vendido em mercearias e em algumas feiras.
Em meados do século XX, o acesso a este produto de higiene era ainda muito condicionado, sobretudo em aldeias mais recônditas, como referem alguns testemunhos orais (Samara e Henriques 2013). O sabão era usado na lavagem da roupa, dos soalhos e até da loiça. Porém, era um produto escasso, que se usava com parcimónia; também por isso, era comum o seu fabrico a partir do sebo e das cinzas, mistura que se fervia e moldava. Na barrela da roupa colocavam-se pedaços de sabão com água quente, a que por vezes se misturava urina guardada para o efeito e cinzas envolvidas num pano. Situação diferente se verificava nos centros urbanos, onde, na década de 1870, iam surgindo sabões de diferentes tipos, vendidos em tabernas, em mercearias ou pelos petrolinos.
À semelhança do perfume, o sabão que se utiliza permite olhar para uma evolução que é também olfativa: o sabão de origem animal foi sendo substituído por outros de origem exclusivamente vegetal, alguns com notas florais, mais delicados. A beleza foi-se associando progressivamente à limpeza, ao prazer, ao conforto e até à saúde.
A pele branca e o cabelo louro, que ganharam grande notoriedade no princípio do século XX – através de imagens muito divulgadas, sobretudo pelo cinema americano e pelas fotografias de moda –, foram progressivamente perdendo relevância em relação ao bem-estar. Ainda assim, nunca deixou de haver uma preocupação com os cuidados com um corpo implacavelmente controlado, cuidado ou “leve”, como refere Gilles Lipovetsky (2016).
Em termos publicitários, estamos atualmente muito longe das propostas da empresa inglesa A. & F. Pears, que no início do século XIX começou a produção de um sabão menos agressivo, que pudesse ser usado nas barbearias ou com crianças e em diferentes necessidades pessoais e domésticas. Esta empresa produziu diversos cartazes publicitários sobre os benefícios da utilização do sabão que fabricava e, em muitos deles, acentuava-se o conforto que se poderia sentir com uma pele mais protegida dos germes, mais requintada, expurgada dos odores já considerados socialmente desagradáveis. No entanto, algumas dessas imagens anunciavam também que o sabão Pears era útil para branquear a pele, reforçando o estereótipo racista de que a pele negra deveria ser alterada. Se olharmos para as representações corporais dessa época – e que de diferentes formas foram chegando até hoje –, branquear e descolorir tornaram-se efetivamente temas de consumo banais.
Se o olhar para com a pele negra se manteve muitas vezes ambivalente – ora alvo de fascínio, ora de interesse predatório –, ele foi ao mesmo tempo adquirindo um significado político cada vez mais relevante (Nouschi 2009: 162-193). Hoje, os corpos publicitados são tendencialmente menos padronizados no que diz respeito à cor, embora, de uma maneira geral, permaneçam harmoniosos no sentido clássico e estético do termo e, por isso, pressuponham uma normalização e repressão contínuas.
A partir de meados do século XX, foi-se tornando cada vez mais simples aceder aos ideais estéticos divulgados de forma profissional e intensiva pela publicidade. Individualmente, cada pessoa passou a poder comunicar de forma mais eficaz as suas opções ideológicas ou simbólicas através das peças de roupa que usa (Eco 1989), mas também através de uma multiplicidade de cores e cheiros com os quais se apresenta publicamente, com os quais se integra socialmente.
A industrialização, a comercialização generalizada e a venda em grandes superfícies praticamente acabaram com a produção artesanal de produtos para a limpeza da casa, das roupas e do corpo. Substituídos por muitas outras opções, os sabões e outros produtos de beleza (incluindo os cosméticos) democratizaram-se, ao mesmo tempo que as imagens corporais continuam a ser controladas e uniformizadas. Entre a discrição e a ostentação, o corpo traduz diferentes códigos de conduta, ideologias políticas e educativas, opções estéticas, ambientais e outras.
Independentemente da época, a aparência mostrou ser sempre um elemento essencial para uma hierarquização e, também, para uma integração entre os pares. Nesse processo de integração/exclusão, o sabão foi um dos objetos quotidianos que contribuiu, entre muitos outros, para a celebração de um corpo mais saudável, mas também para a dimensão política e cultural do corpo.
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Béla Guttmann
O futebol tornou-se ao longo do século XX num dos principais terrenos de produção e banalização de identificações nacionais. Da discussão sobre os estilos de jogo aos debates sobre a utilização de jogadores naturalizados, passando pela organização de grandes eventos desportivos, são múltiplos os canais através das quais os discursos e as práticas de diferentes agentes e instituições do mundo do futebol comunicam com projetos ideológicos e políticos de caracterização de um povo enquanto totalidade mítica. A esta demanda identitária, que procura transformar o particular e o contingente – a forma como onze homens se organizam num dado momento dentro de um campo relvado – no símbolo da essência intemporal e imutável de um coletivo, uma história migrante do futebol pode responder com o recenseamento da diversidade das formas de o jogar e com o reconhecimento das interconexões entre elas. Se é impossível compreender a introdução do futebol em Portugal sem olhar para as trajetórias dos jovens das elites nacionais que estudaram em Inglaterra ou para o contributo dos representantes dos interesses comerciais britânicos aqui, também é difícil pensar o desenvolvimento do jogo sem considerar a sua inserção noutras redes internacionais. O estudo da profissionalização do futebol português e da sua transformação em espetáculo popular não pode ignorar o papel desempenhado por um conjunto de técnicos e atletas provenientes de contextos muito diversos. Entre eles, destaca-se o caso de Béla Guttmann.
A partir de meados da década de 1920, o aumento da competitividade desportiva levou os clubes portugueses de futebol a procurarem treinadores estrangeiros, originários de países onde o profissionalismo já se encontrava institucionalizado. Entre eles, destacaram-se os técnicos húngaros. Muitos chegaram a Portugal fugindo de perseguições religiosas e políticas, ou da guerra; alguns procuravam apenas melhores condições de trabalho e reconhecimento profissional. Entre 1924, quando Akös Tezler iniciou funções no Futebol Clube do Porto, e 1962, quando Béla Guttmann conduziu o Benfica à conquista da sua segunda Taça dos Campeões Europeus consecutiva, dezenas de treinadores provenientes daquela região da Europa dirigiram equipas portuguesas. Józseph Szabó, Mihaly Syska, Magyar Ferenc, Lippo Hertzka, János Biri, Julius Lelovtic ou Rudolf Jenny, entre outros, transformaram decisivamente a forma de jogar futebol em Portugal no período de entreguerras. Consigo não traziam apenas o que, por facilidade de expressão, se designou como “estilo húngaro”. Muitos deles haviam aprendido sobre sistemas táticos ou métodos de treino com os “mestres escoceses” que, por não encontrarem nas ilhas britânicas as condições necessárias para desenvolver o seu métier, no final da I Guerra Mundial trabalharam em Viena, Budapeste ou Praga. Antes de chegarem a Portugal, quase todos os membros desse grupo de húngaros tinham passado, como jogadores e treinadores, por diversos campeonatos europeus. Foi o conhecimento acumulado por essa experiência que tentaram adaptar às condições de trabalho que encontraram nos clubes portugueses.
Béla Guttmann nasceu a 27 de Janeiro de 1899 em Budapeste, uma das capitais do Império Austro-Húngaro, e morreu no dia 28 de Agosto de 1981 em Viena, capital da Áustria. Foi um dos grandes jogadores húngaros e um dos mais importantes treinadores de futebol do século XX. Filho de um casal de professores de dança (Abraham e Eszter Guttmann), Béla encontrou no futebol terreno para a construção de uma trajetória de mobilidade social ascendente e para a integração na sociedade húngara pós-emancipação, em processo de modernização cultural.
Ao longo da sua carreira como atleta, que se estendeu de 1917 a 1934, jogou em clubes como o Törekvés e o MTK de Budapeste (Hungria) ou o Hakoah de Viena (Áustria), além de, durante a primeira grande vaga de crescimento do futebol nos Estados Unidos da América, ainda na década de 1920, ter também representado o New York Giants e o New York Hakoah. Ao serviço de outra equipa americana, o Hakoah All Stars, encetou a sua primeira grande tournée pela América do Sul, desempenhando uma variedade de funções: jogador, mas também treinador e organizador da digressão. As filiações dos vários clubes por onde passou eram muito diversas: se o MTK, o Círculo Húngaro dos Educadores da Cultura do Corpo, fundado em 1888, era uma instituição da burguesia liberal de Budapeste, que aspirava a uma “hungaridade universal”, o Hakoah de Viena e o Hakoah de Nova Iorque, pelo contrário, representavam o projeto sionista de um “judaísmo muscular”. Assim, as escolhas de carreira de Béla Guttmann enquanto jogador não podem ser lidas como simples expressão de uma orientação política, mas devem também, ou sobretudo, ser interpretadas como parte de um projeto de afirmação profissional e de busca de segurança pessoal. A mudança de Budapeste para Viena acontece quando o profissionalismo já havia sido instituído na Áustria, ao contrário do que sucedia na Hungria. A emigração para a América do Norte resulta das enormes diferenças salariais observadas entre os clubes da Europa e dos Estados Unidos, onde o futebol era organizado segundo as regras das indústrias culturais. Nos EUA, Guttmann conheceu a fortuna, mas também a ruína financeira: terá perdido todas as suas poupanças e investimentos após o crash de 1929, o que contribuiu, a par da falência do primeiro campeonato americano de futebol, para o seu regresso à Europa no início dos anos 1930.
Enquanto jogador, destacou-se como um médio-centro completo, com excelente condição física, com capacidade para defender e atacar, recuperar, passar e transportar a bola, ajudando a transformar os padrões de desempenho daquela posição específica, no quadro da divisão do trabalho de equipas organizadas segundo o modelo da pirâmide escocesa, 2-3-5. Foi seis vezes internacional húngaro, tendo ainda muito jovem abdicado de jogar pela seleção do seu país, como consequência de conflitos com dirigentes federativos, suscitados pela má organização da participação húngara nos Jogos Olímpicos de Paris de 1924, e em particular pelo descaso demonstrado em relação às necessidades dos atletas.
Iniciou o seu percurso no Hakoah de Viena, em 1934-35, ainda com o estatuto de jogador-treinador. Logo depois, assumiu o seu primeiro cargo a tempo inteiro como treinador no Enschede (hoje Twente), dos Países Baixos, para mais tarde regressar ao Hakoah de Viena. Quando começou a II Guerra Mundial, era treinador do Újpest, clube ao serviço do qual conquistou a mais importante competição europeia da época, a Taça Mitropa.
Apesar de quase nunca o ter referido em entrevistas e intervenções públicas, entre 1939 e 1945 esteve na clandestinidade. Foi nesse período que, escondido em Budapeste, conheceu a sua esposa Mariann, que o acompanhou pelo resto da vida. Em 1944 foi internado num campo de trabalho dos fascistas húngaros do Partido da Cruz de Flechas, de onde encetou uma fuga com o seu colega e amigo Ernö Erbstein, outro grande treinador da escola húngara que se destacou ao serviço do Torino, de Itália. Depois da Guerra, num tempo de escassez de bens, inflação e mercado negro, Guttmann incluiu no seu contrato com o Vasas de Budapeste, um clube liderado à época por empresários do sector alimentar, uma cláusula que incluía o pagamento de uma percentagem do salário em géneros: batatas, farinha, banha, açúcar, entre outros bens essenciais.
Entre 1945 e 1974, mudou de país 15 vezes, e 21 vezes de clube. Números impressionantes, talvez até inéditos, mas não totalmente invulgares entre os grandes treinadores da época. Dirigiu grandes e pequenas equipas na Holanda, na Jugoslávia, na Hungria, na Roménia, em Itália, na Argentina, em Chipre, no Brasil, em Portugal, no Uruguai, na Suíça e na Grécia. É considerado um dos mais brilhantes elementos de uma geração de treinadores húngaros – entre os quais se encontram também Márton Bukovi ou Gusztáv Sebes – cujo trabalho conjunto ajudou a criar uma das grandes equipas da história do futebol, a Aranycsapat, a “equipa de ouro”, nome pelo qual ficou conhecida a seleção húngara na década de 1950. Este grupo de treinadores impulsionou também mudanças táticas e técnicas no futebol mundial, ao introduzir dinâmicas ainda inexploradas no modelo WM, até então o sistema de referência no plano internacional, que tinha sido implementado por Herbert Chapman no Arsenal de Londres na segunda metade da década de 1920. No final dos anos 1940, no Kispest (mais tarde Honvéd), Guttmann treinou muitos dos jogadores que fizeram a fama do futebol daquele país, como Ferenc Puskás ou József Bozsik. Após o termo deste contrato, não regressou à Hungria. Sagrou-se campeão em Itália, com o AC Milan, onde também trabalhou com jogadores de nível mundial, tendo aí conhecido em detalhe os sistemas defensivos das equipas italianas, que ganhariam reconhecimento próprio na ideia de catenaccio. O ano de 1956 foi crucial no seu percurso: adquiriu nacionalidade austríaca, com o apoio dos dirigentes federativos daquele país, e, depois da revolta húngara, dirigiu no exílio a equipa do Honvéd, numa digressão pela América do Sul que lhe abriria a possibilidade de treinar o São Paulo. Terá sido um dos responsáveis pela implementação do sistema 4-2-4 naquele clube brasileiro, esquema tático que acabou por ser adotado pela seleção campeã do mundo em 1958. O ponto alto da sua carreira foi vivido ao serviço de um clube português, o Sport Lisboa e Benfica, que treinou pela primeira vez entre 1959 e 1962.Não obstante o lugar central de Guttmann na história do futebol mundial, resultado desta trajetória singular, na imaginação portuguesa o seu nome evoca habitualmente duas histórias: a conquista de duas Taças dos Clubes Campeões Europeus consecutivas pelo Benfica, nas épocas de 1960-61 e 1961-62, em finais disputadas contra o Barcelona e o Real Madrid, poderosas equipas espanholas cujo estilo de jogo também foi moldado por jogadores e técnicos húngaros; e o mito da maldição que teria lançado sobre a equipa da Luz depois de ser despedido – em conflito, como tantas vezes ao longo da sua carreira, com dirigentes cuja gestão autoritária, patrimonialista e clientelar chocava com o seu projeto de profissionalização do desporto –, profetizando que nem em 100 anos o clube voltaria a vencer uma competição europeia. Para quebrar a maldição, e depois de mais uma final perdida em 2013, em fevereiro de 2014 o Sport Lisboa e Benfica inaugurou uma estátua de dois metros do seu antigo treinador. Três meses mais tarde, voltou a perder uma final europeia, desta feita frente ao Chelsea.
Deixando estes episódios de lado, a longa história deste treinador de futebol permite-nos considerar o desenvolvimento do futebol e a profissionalização do jogo a nível planetário. Ao mesmo tempo, o estudo do seu percurso em Portugal, inserido no quadro de uma prosopografia de uma geração de treinadores húngaros, vem questionar a relação entre estilos de jogo e representações da identidade nacional: talvez se possa argumentar que o futebol português foi inventado por treinadores húngaros. Ou talvez seja possível ir ainda mais longe e dizer que, quando chegou a Portugal, Guttmann, tal como outros seus compatriotas antes dele, nem seria já um treinador húngaro. Nas suas próprias palavras: “Durante a minha longa carreira estive em muitos países e trabalhei em alguns deles. Sempre que via uma boa ideia de jogo roubava-a e guardava-a para mim. Ao fim de algum tempo, fazia um cocktail com esses ingredientes surripiados“ (Claussen 2015: 131). O futebol português, tal como o futebol húngaro, austríaco ou brasileiro, ou qualquer outro, emerge como o resultado dessa mistura de influências, intrinsecamente transnacional.
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Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de Coimbra
A 20 de Junho de 1957, o Diário de Coimbra noticiava na primeira página: “O Dr. Armando de Lacerda regressa amanhã do Brasil onde instalou o primeiro Laboratório de Fonética da América do Sul”. Refere-se esta notícia à criação do Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de São Salvador da Bahia, para a qual o foneticista português Armando de Lacerda (1902-1984), fundador e director do Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra, contou com a colaboração do seu discípulo Nelson Rossi (1927-2014). Este laboratório brasileiro, equipado com cromógrafos – inovadores instrumentos para a investigação fonética que Lacerda desenvolvia desde 1932 –, produz em 1960-1963 o primeiro atlas linguístico do Brasil, o Atlas prévio dos falares baianos, no qual se recorre à transcrição fonética de Armando de Lacerda e de Göran Hammarström (1922-2019). Esse empreendimento, no qual intervieram Nelson Rossi e alguns dos seus colaboradores, foi vital no despontar da dialectologia no Brasil, promovendo a emergência de atlas linguísticos noutros estados. Exemplificativos são o Atlas lingüístico de Sergipe, também desenvolvido pela equipa da Universidade de São Salvador da Bahia e concluído em 1973 (embora publicado somente em 1987); o Esboço de um atlas lingüístico de Minas Gerais (1977); o Atlas lingüístico da Paraíba (1984); o Atlas lingüístico do Paraná (1994); e o Atlas lingüístico de Sergipe II (2005).
Nos EUA, a influência do Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra também se repercute. O apetrechamento deste espaço laboratorial com cromógrafos, associado ao prestígio internacional de Lacerda, é fundamental para atrair para Coimbra o doutorando Francis Millet Rogers (1914-1989). Detentor de uma bolsa de estudo da Universidade de Harvard, Rogers especializa-se em 1939, sob a supervisão de Lacerda, no uso da cromografia. Depois de regressar a Harvard, onde se doutora em 1940, a carreira de Rogers culminará na criação nessa universidade da primeira cátedra de Estudos Portugueses nos EUA (cátedra “Nancy Clark Smith”, de Língua e Literatura Portuguesas). Nesse percurso, Rogers, que entendia Lacerda como seu mestre, consegue integrar os estudos de português no programa de “General Education”. Nas suas aulas, recorre aos métodos de registo da fala apreendidos no laboratório dirigido por Lacerda. Entre outras inovações, esta prática potencia o interesse pela língua portuguesa a níveis dignos de o inscrever nas suas memórias, onde refere que, a partir de 1960, com a actualização e melhoria do curso de língua portuguesa, frequentemente lhe chegavam rumores de que as duas línguas de maior prestígio para os estudantes da Universidade de Harvard eram o árabe e o português.
Na mesma época, em 1965, mas do outro lado do globo, em Melbourne, um outro discípulo de Lacerda e colaborador do Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra assume a posição de primeiro professor catedrático de Linguística na Austrália. Referimo-nos a Göran Hammarström, o foneticista sueco que já em 1955 havia criado o Departamento de Fonética da Universidade de Uppsala. À imagem do ocorrido com Francis M. Rogers e com Nelson Rossi, também na base desta carreira académica se encontra o Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra, onde Hammarström preparara o seu doutoramento, que defendera em seguida em Uppsala em 1953. A importância da colaboração com Lacerda no laboratório dirigido por este sobressai em 1957, quando Georges Straka (1910-1993), director do Instituto de Fonética da Universidade de Estrasburgo, elabora um parecer sobre as competências científicas de Hammarström, a pedido do director da Faculdade de Letras de Uppsala. Nesse documento, Straka defende que o estudo de Hammarström sobre a duração dos fonemas em sueco é de grande interesse para a linguística, excedendo largamente os resultados previamente alcançados por outros investigadores. Na sua opinião, isso resultava de Hammarström ter usado em Coimbra o “excelente método cromográfico”.
Brasil, EUA, Escandinávia e Austrália: a criação em várias universidades estrangeiras de laboratórios que se apropriam das técnicas de investigação aplicadas no Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra são alguns exemplos da influência global deste centro de investigação. Os ensinamentos obtidos em Coimbra contribuíram para desencadear uma “mentalidade dialectológica” na América do Sul, assim como para a criação de cadeiras de fonética, de cursos de português ou para o seu uso em aulas de Línguas Românicas em Harvard.
O director do Laboratório, Armando de Lacerda, desempenhou um papel fundamental na obtenção deste estatuto. Lacerda beneficiara da existência, desde 1929, da Junta de Educação Nacional, instituição que planificava e financiava a investigação científica em Portugal, seguida, a partir de 1936, do Instituto para a Alta Cultura. É como bolseiro de investigação da Junta de Educação Nacional que Lacerda se especializa em fonética experimental em Hamburgo e em Bona, em 1930-1933. Nos institutos de fonética destas universidades adquire prestígio internacional, nomeadamente pela criação, em 1932, do policromógrafo, equipamento que torna obsoleto o quimógrafo, até então o principal instrumento aplicado nos laboratórios de fonética experimental. Digna de nota é também a publicação em 1933, em co-autoria com o seu mestre Paul Menzerath (1883-1954), da obra Koartikulation, Steuerung und Lautabgrenzung, trabalho que cria o conceito-chave de coarticulação (as influências exercidas entre si pelos sons contíguos da fala), que a partir daí desempenha um papel central na teoria fonética.
Regressando a Portugal em 1933, Lacerda instala na Universidade de Coimbra, como já foi referido, o primeiro laboratório de fonética experimental do país. Considerado por diversos linguistas estrangeiros, em meados do século XX, o melhor laboratório de fonética experimental da Europa, este espaço laboratorial, como exemplificámos com alguns casos, atrairá inúmeros cientistas da Europa, da América do Norte, da América do Sul e de África. Em comum, os investigadores estrangeiros partilham a procura de especialização que lhes permita dar início a prestigiadas carreiras académicas internacionais.
Nos anos 1960 os apoios do Estado português ao laboratório dirigido por Lacerda diminuem e, a partir de 1972, com a sua jubilação, e na ausência de um sucessor na direcção do instituto, inicia-se a ocupação para novos fins das dez salas que o Laboratório até então ocupava na Faculdade de Letras de Coimbra. Reduzido a uma única sala, o Laboratório encerra em 1979 a sua actividade. Nesse mesmo ano, Lacerda ocupava ainda a posição de membro honorário do Conselho Permanente para a Organização de Congressos Internacionais de Ciências Fonéticas, ombreando em exclusivo com Roman Jakobson (Cambridge, EUA) e Eberhard Zwirner (Colónia, República Federal da Alemanha), distinção compaginável, no ocaso da sua vida, com a história da sua carreira académica. Se a sua escola de investigação, por intermédio dos seus discípulos, se difundiu nos mais diversos países e continentes, já no nosso país aquele que é um dos raros cientistas portugueses inscritos na história de uma disciplina científica foi remetido ao esquecimento, realidade para a qual terá concorrido o facto de a Universidade de Coimbra o ter sistematicamente considerado membro do “pessoal técnico, auxiliar e menor”.
A (in)visibilidade historiográfica do Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de Coimbra e de Armando de Lacerda assume, deste modo, um particular interesse na história da ciência mundial, ao mostrar como um espaço laboratorial na periferia da Europa chegou a assumir uma atractividade científica mais própria dos tradicionais centros científicos; ao mesmo tempo, o seu fundador e director, sendo embora um dos nomes maiores da disciplina, era oficialmente remetido à condição de “técnico invisível”. Estes são motivos que mais do que justificam a recuperação desta história, em curso pelo projecto PHONLAB (2022.06811.PTDC) “Laboratório de Fonética: Coimbra – Harvard. Repensar centros e periferias científicas no século XX”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. A recuperação historiográfica em curso conduziu a Real Academia das Ciências da Suécia a dedicar um dia ao foneticista português (Armando de Lacerda: A pioneer of Experimental Phonetics - Kungl. Vetenskapsakademien (kva.se), além de em 2022 ter levado a rede internacional focada na história da investigação em comunicação de fala a, pela primeira vez, dedicar um dos seus workshops bianuais a um cientista (LACERDA 120 – 5th International Workshop on the History of Speech Communication Research (HSCR) (wordpress.com).
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D. Maria Constança da Câmara, sétima marquesa de Fronteira
Filha de D. Luís Gonçalves da Câmara Coutinho Pereira de Sande e de D. Maria de Noronha, D. Maria Constança nasceu a 13 de Julho de 1801, de acordo com o assento de baptismo. A família paterna, não titular, descendia dos senhores das Ilhas Desertas, Regalados e da Casa da Taipa. A família materna, pelo contrário, pertencia à aristocracia de corte, descendendo dos condes dos Arcos e dos marqueses de Marialva. Sétima dos nove filhos do casal, pouco se sabe acerca da sua instrução, a não ser que recebeu educação literária, religiosa e musical (em canto, piano e harpa). Teve provavelmente uma educação doméstica, como era habitual nas elites aristocráticas femininas do seu tempo, com recurso a diversos mestres.
A casa ascendeu à titulação na sua geração. Os seus irmãos tornaram-se sucessivamente o 1º, 2º e 3º condes da Taipa. A sua irmã mais velha entrou no grupo da aristocracia ao casar com o 6º marquês de Angeja, o que sucedeu também a D. Maria Constança por casamento com D. José Trasimundo Mascarenhas Barreto, 7º marquês de Fronteira, 8º conde da Torre e de Coculim, 10º conde de Assumar e representante do título de marquês de Alorna. A frequência por D. José Trasimundo das partidas e saraus típicos da aristocracia europeia nos séculos XVIII e XIX, realizados no palácio dos pais de D. Maria Constança, favoreceu o consórcio, ocorrido a 14 de Fevereiro de 1821. Deste enlace nasceria, no ano seguinte, D. Maria Mascarenhas, a única filha do casal.
Na sequência do golpe absolutista de Abril de 1824, o alinhamento político do marquês pelas ideias liberais levou-o à prisão. Depois de ser libertado, ele e a sua mulher abandonaram o Reino, percorrendo diversos países da Europa, em particular França, Bélgica, Holanda e a península itálica. Neste contexto, assistiram em Paris à sagração de Carlos X, em 1825, e às cerimónias do Jubileu Santo, em Roma, no mesmo ano. Nesta última cidade, D. Maria Constança desempenharia oficiosamente, em diversas cerimónias, as funções de embaixatriz, a pedido do embaixador português, por este ser solteiro.
O diário inicia-se em 1826, na viagem de regresso a Portugal. Ao contrário de outros países europeus, que desde a Idade Moderna cultivam uma tradição neste género literário, a produção diarística em Portugal é considerada incipiente, sendo escassos os diários anteriores ao século XX conhecidos. Tal pode dever-se à pouca atenção dada aos arquivos de família, muitos dos quais permanecem até hoje privados e desconhecidos do público. Esta realidade é ainda mais significativa se vista por uma perspectiva de género: o número conhecido de mulheres diaristas é baixo (Urbano 2023). Ao desconhecimento das fontes, junta-se o menor grau de alfabetização e de acesso à cultura letrada por parte das mulheres, mas também um conjunto significativo de questões que ao longo dos séculos invisibilizaram a escrita de autoria feminina.
Nessa viagem de regresso, o casal passou por Inglaterra, visitando Londres, Oxford, Hampton Court, Newark e Portsmouth, e contactando com diversos membros da aristocracia, portugueses e estrangeiros, nomeadamente com os marqueses de Salisbury, com o conde de Flavigny, com os barões de Heytesbury e com o futuro barão Francis Godolphin Osborne.
Entre Novembro de 1826 e o início de 1828, D. Maria Constança esteve em Lisboa. Neste período, as entradas do diário são escassas, vindo a tornar-se regulares a partir do final de Julho de 1829, na estância balnear de Dieppe, já durante o segundo exílio do casal, provocado pela ascensão de D. Miguel ao trono português, período em que mais de 13 mil liberais deixaram o país (Isabella 2023: 217). Esta emigração insere-se em movimentos migratórios similares ocorridos por toda a Europa, decorrentes das revoluções e da instabilidade política vivida em países como França, Itália, Espanha e Grécia, mobilizando elites aristocráticas, terratenentes e militares. Neste período, os marqueses de Fronteira conviveram com outros aristocratas, tais como as duquesas de Angoulême, Berry, Noialles e Poix, o conde Demidoff, os viscondes de Castelbajac e diversos membros da família Bombelles. Em Agosto, o casal regressou a Paris, onde encontraria outros aristocratas portugueses emigrados, travando também conhecimento com vários titulares estrangeiros.
Em Junho de 1830, iniciaram um périplo até à região de Como, através de Pouilly-sur-Loire, Vichy, Lyon, Nantua, Genebra, Lauzen, Aber, Sion, Briga, Domo D’assola, Baveno e Milão; nessa ocasião, conviveram com a marquesa de Vence, o conde de Borromeu, a viscondessa da Pedra Branca e o general espanhol Miguel de Álava y Esquível. A temporada em Como, em Julho e Agosto de 1830, foi socialmente menos intensa, mas ainda assim pô-los em contacto com os condes de Tanzi e com a cantora lírica Giuditta Pasta. Posteriormente, o casal instalou-se em Florença, após um périplo por Milão, Génova, Rapallo, Sestri, Borghetto di Vara, Sarzana, Luca e Livorno, estabelecendo redes de sociabilidade com membros da família Strogonoff, com o diplomata Carlo Andrea Pozzo di Borgo e com os príncipes Dolgarukov. Em Florença, foram apresentados aos grão-duques da Toscana e ao dei da Argélia, exilado nesta corte, bem como a diversos aristocratas e diplomatas europeus.
No final de Maio de 1831, os marqueses deixaram Florença, passando por Bolonha, Modena, San Benedetto Po, Mântua, Verona, Borghetto sull’Adige, Roveredo, Trento, Inha, Colma, Vipiteno, Innsbruck e Munique, onde se demoraram alguns dias. A viagem prosseguiu para Augsburgo, Ulm e Estugarda, seguindo-se Karlsruhe e Baden-Baden. Aqui, travaram conhecimento com os príncipes de Tarante, com Lobanov-Rostovsky, com de la Tremouille, com a condessa Lage de Volude e com os barões von Mengden, reencontrando ainda outros aristocratas, como o príncipe Golitsyn ou o barão von Ende. Em meados de Agosto retomaram viagem, passando por Karlsruhe, Heidelberg, Frankfurt, Mainz, Koblenz, Colónia e Aachen.
O diário é omisso entre Setembro de 1831 e Fevereiro de 1832, data em que os marqueses já se encontravam em Paris. Aqui, recuperaram relações com aristocratas portugueses e estrangeiros, como a marquesa d’Agrain, com Jean-Guillaume Hyde de Neuville ou com Susan Euphemia Beckford. A estadia em Paris foi interrompida em Maio de 1833 para dar lugar a uma temporada de banhos em Boulogne-sur-mer, tendo o casal regressado à capital francesa em Agosto e retomado então contacto com o marquês de La Valette e com a Madame de Flahaut.
O regresso de D. Maria Constança a Portugal deu-se a partir de Boulogne-sur-mer, a 9 de Outubro, através de Dover e com paragem em Londres. O diário é reiniciado a 1 de Abril de 1834, em Lisboa, prolongando-se, com bastantes intervalos, até 1842. Neste período, a 1 de Janeiro de 1836, foi agraciada por D. Maria II com a ordem de Santa Isabel.
Embora exilados e em situação económica precária, contornada com recurso a empréstimos de banqueiros estrangeiros, os marqueses de Fronteira mantiveram um nível de vida condizente com o seu estatuto social, estabelecendo redes de sociabilidade com a aristocracia europeia e norte-africana que igualmente se deslocava, tanto por razões de exílio (como no caso já referido do dei da Argélia), quanto profissionais (como no caso do corpo diplomático) e de lazer. Este quotidiano cosmopolita, que o diário permite acompanhar, é comparável ao da aristocracia norte-europeia de finais do século XVIII e assenta na partilha da mesma esfera social, favorecida pela existência de códigos de sociabilidade comuns (Wolff 2015: 84-88), que consistiam na realização de visitas, na frequência de bailes e saraus, nos quais se jogava ou tocava e se cantavam os êxitos musicais da época. Ia-se a banhos nas estâncias termais em voga, passeava-se nos parques públicos, visitavam-se locais de interesse – fossem igrejas, palácios ou museus –, onde os grandes mestres da pintura europeia eram apreciados: artistas como Rafael, Guido Reni, Rubens, Domenico Zampieri, Anthony Van Dick ou Bartolomé Esteban Murillo.
Outro elemento significativo do estilo de vida aristocrático era a frequência do teatro, especialmente de ópera. Além de ser um espaço privilegiado de aprofundamento das redes sociais, a frequência da ópera permite-nos conhecer os consumos culturais deste grupo e o próprio gosto da marquesa de Fronteira, que referencia os principais compositores do seu tempo, incluindo alguns atualmente menos conhecidos (como Peter von Winter, Simon Mayr, ou François-Adrien Boieldieu), a par de outros que continuam a figurar no cânone operático, como Rossini, Mercadante ou Bellini. Os marqueses tiveram ocasião de assistir a atuações dos principais artistas internacionais do seu tempo, em especial de cantores líricos e de bailarinas.
De resto, a descrição dos consumos culturais da marquesa de Fronteira não se fica pelas artes de palco. D. Maria Constança alude a algumas leituras – desde o clássico Homero, aos franceses Charles-Victor Prévot, Marie des Heures (Clotilde-Marie Collin de Plancy), Alphonse Marie Louis de Prat de Lamartine e George Sand, passando pelo italiano Alessandro Manzoni, pela inglesa Ann Radcliffe e até pelo norte-americano James Fenimore Cooper. A prática da leitura incluía também a imprensa periódica nacional e estrangeira. Através dela, e da correspondência recebida dos seus familiares e amigos, a marquesa mantinha-se atualizada relativamente à situação política do seu país e dos principais acontecimentos europeus, nomeadamente as guerras de independência da Grécia e a travada entre a Rússia e o Império Otomano (1828-1829). Acompanhou também a revolução de Julho de 1830 em França e, no mesmo ano, a de Varsóvia, bem como a tentativa de revolução em Modena, perpetrada por Ciro Menotti.
Desde a conclusão do diário em 1842 até à sua morte, pouco se sabe, à excepção de ter sido directora de um dos colégios de Infância Desvalida, instituído pela duquesa de Bragança, e vogal da Sociedade Protetora dos Órfãos Desvalidos das Vítimas da Cólera Morbus, em 1856, e da Febre Amarela, em 1857. Nas memórias do seu marido, D. Maria Constança é referida apenas pontualmente. Morreu a 11 de Setembro de 1860 no seu palácio de Benfica, tendo sido sepultada na igreja do convento de S. Domingos de Benfica.
Finalmente, importa realçar que a participação da marquesa de Fronteira nas sociabilidades europeias, demonstrada pelo seu diário, sobretudo após a ascensão de D. Miguel ao trono, para além de testemunhar a partilha de códigos sociais, deverá ser entendida como uma estratégia de mobilização política internacional levada a cabo pelos emigrados portugueses liberais. O desenvolvimento de uma diplomacia informal visou a promoção de redes de solidariedade transnacional entre os partidários do constitucionalismo e a adesão à causa liberal portuguesa.
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Descolonização
Terá havido algo de singular na descolonização portuguesa? Esta questão pode bem figurar entre os problemas clássicos da historiografia do império português, um campo fértil em reivindicações de “excepcionalidade” quando se trata de situar a trajetória do país face a outras experiências europeias.
Desde logo, a cronologia parece validar tal hipótese. A soberania portuguesa nos seus territórios ultramarinos chegou ao fim em 1974-75, mais de uma década volvida sobre as descolonizações protagonizadas por outras potências. Só o pequeno enclave de Macau seguiu um curso mais em linha com desenvolvimentos internacionais, tendo o território governado por Portugal transitado para a administração chinesa em 1999, dois anos depois da entrega de Hong-Kong pela Grã-Bretanha à República Popular da China.
Para a esquerda anticolonial, o desfasamento temporal deveu-se ao anacronismo de um regime liderado por um obstinado ditador fascista, sustentado pelos seus aliados da NATO graças à lógica da Guerra Fria. Para muitos à direita, a longevidade do império assentou no carácter fundamentalmente benigno da governação colonial lusa, respaldada em séculos de coexistência pacífica com as populações ultramarinas, segundo uma visão popularizada a partir dos anos 1950 com base nas ideias do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre.
No entanto, uma das preocupações que tem distinguido a investigação historiográfica das últimas décadas sobre esta temática é a atenção prestada às afinidades – que não foram poucas – entre as trajetórias portuguesa e europeia-ocidental (Jerónimo e Pinto 2015). Nesta entrada, procuraremos olhar para esses paralelismos, mas também para a complexa teia de influências recíprocas e transnacionais que permitem matizar o alegado “excepcionalismo” português, de maneira a tornar o fim do colonialismo nos espaços de língua portuguesa um fenómeno compreensível à luz das dinâmicas que contribuíram para o afrouxamento dos laços imperiais um pouco por todo o mundo naquele período.
A descolonização não foi um acontecimento, mas um processo: este tornou-se, na era contemporânea, um dos lugares-comuns da historiografia dos impérios (Jansen e Osterhammel 2017). Mas foi também – acrescentamos nós – um fenómeno multifacetado e repleto de paradoxos. Como processo, a descolonização poderá talvez inscrever-se na “conjuntura”, a temporalidade definida por Fernand Braudel como de carácter cíclico, secular; nesse sentido, encaixará, grosso modo, nas balizas do “breve século XX” conceptualizado por E. J. Hobsbawm. Embora alguns autores prefiram recuar até ao século XVIII e às primeiras independências crioulas contra o domínio europeu para dar conta do imperialismo contemporâneo em toda a sua amplitude (Klose 2014), neste ensaio adotaremos uma periodização mais restrita (c. 1919-1975), em parte por razões de espaço, mas também porque aquilo que chega ao fim em 1974-75 é o chamado “terceiro império português”, forjado no contexto da corrida imperialista de finais do século XIX, com o seu centro de gravidade localizado no continente africano.
Numa perspetiva diacrónica, poderá fazer sentido determo-nos em quatro subdivisões temporais: 1919-1945; 1945-61; 1961-74; e uma última em que, muito sucintamente, aludiremos aos acontecimentos que marcaram o fim do império (1974-75) e às suas sequelas, numa perspetiva comparada.
A primeira fase transporta-nos até esse período extremamente ambivalente, do ponto de vista da estabilidade dos impérios coloniais, que foi o pós-Primeira Guerra Mundial. As devastações desse conflito desferiram um severo – mas não definitivo – golpe nas pretensões de “missão civilizacional” que eram reivindicadas pelas potências imperiais para justificar a hierarquia racial em que repousavam as sua conquistas ultramarinas.
As reverberações globais da defesa, pelo presidente dos Estados Unidos, do princípio da autodeterminação, nos últimos meses da I Guerra Mundial – aquilo a que se chamou o “momento Wilsoniano” (Manela 2007) – revelar-se-iam limitadas no império colonial português, mais ainda do que noutras paragens. As condições que noutros espaços imperiais – como o Egipto e a Índia britânica, partes do Médio Oriente, a China ou a Coreia – permitiram que germinasse uma consciência nacionalista eram pouco expressivas nos territórios ultramarinos portugueses: Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Goa, Damão e Diu, Macau ou Timor Oriental. Ainda assim, algumas pessoas ligadas a uma intelligentsia africana estabelecida na metrópole aproveitaram as expectativas criadas pelas proclamações de Wilson para criticar o incumprimento de promessas humanitárias e autonomistas feitas pelo regime republicano recentemente instaurado em Portugal, assim como a legislação de sentido claramente racista que fazia o seu caminho em várias colónias portuguesas.
No período de entre-guerras, elementos dessa intelligentsia participarão em vários congressos pan-africanistas; um deles, o escritor e jornalista Mário Domingues, usaria as páginas do jornal anarquista A Batalha para denunciar as expressões mais cruas e violentas do domínio colonial português em África (Garcia 2022). Mas a posição de muitos destes pan-africanistas era ao mesmo tempo ambígua, com vários deles a fazerem a defesa das posições coloniais portuguesas em diversos fóruns internacionais (Oliveira 2017).
Nas possessões indianas, será sobretudo o fermento do nacionalismo associado ao movimento liderado por Gandhi no Raj Britânico que galvaniza os descontentes com o domínio português. Em 1928, Tristão de Bragança Cunha, um engenheiro de Chandor educado em Paris, funda o Goa Congress Committee, distinguindo-se depois na agitação patriótica em Goa após a Segunda Guerra Mundial, circunstância que lhe valeria vários anos de cativeiro em prisões portuguesas.
O facto de a contestação nacionalista ter sido incipiente no período de entre-guerras não poupou os governos portugueses a outras dores de cabeça. Em boa medida, isso deveu-se ao receio de que a nova organização internacional, a Sociedade das Nações, e a sua doutrina da trusteeship (incrustada no sistema dos mandatos), pudesse facilitar uma “espoliação” dos territórios ultramarinos portugueses. Denúncias de situações análogas à escravatura feitas em Genebra por observadores externos, como o sociólogo norte-americano Edward Ross (1924-25), causaram enorme agitação patriótica em Lisboa. Grande entusiasta do eugenismo nos EUA, Ross visitara extensas partes de Angola e Moçambique e revelara-se muito crítico da incapacidade portuguesa para levar por diante uma obra civilizacional à altura dos padrões definidos pelas potências ocidentais mais influentes – um tipo de contrariedade que haveria de atormentar o império luso praticamente até ao fim. Em 1926, a sugestão de um intelectual macaense, o escritor Montalto de Jesus, de que, por manifesta incapacidade da metrópole para garantir o desenvolvimento do enclave, a administração de Macau transitasse para a Sociedade das Nações levou à apreensão e destruição dos exemplares da obra em que tal proposta havia sido formulada (Jesus 1990).
Os piores receios dos partidários do império acabaram por não se concretizar, em boa medida graças ao desinteresse da própria SDN por esse tipo de soluções, mas também à orientação de potências revisionistas, como a Alemanha após a chegada dos nazis ao poder, para outro tipo de projetos de expansão imperialista, designadamente para a Europa Central e de Leste. Durante a Segunda Guerra Mundial, a gestão cuidadosa, e muitas vezes ambígua, por Oliveira Salazar da neutralidade portuguesa resultaria numa confirmação do apoio das democracias ocidentais ao colonialismo português, que em Timor e em Macau, entre 1942 e 1945, enfrentou, às mãos dos japoneses, humilhações equiparáveis à de outros poderes imperiais (Alexandre 2017).
As ambiguidades das potências ocidentais a propósito da continuidade do colonialismo ficaram bem patentes em vários momentos do pós-guerra. Em boa medida, a historiografia vê hoje a criação das Nações Unidas como uma tentativa para dar um novo sopro de vida aos impérios europeus (Mazower 2009): diversos planos de desenvolvimento e bem-estar procuravam conter as aspirações nacionalistas estimuladas pela Guerra. Excluído da ONU até 1955, Portugal não deixou de tirar partido deste cerrar de fileiras dos poderes imperiais, sobretudo em África, cujas matérias-primas e recursos naturais eram percebidos pelos europeus como indispensáveis à sua reconstrução económica, bem como para a recuperação do seu estatuto de potências.
No entanto, não deixaram de ocorrer diversos desenvolvimentos perturbadores para o status quo imperial luso, desde logo relacionados com movimentos sísmicos que tiveram lugar no continente asiático. A independência da Índia, em 1947, gerou uma disputa diplomática entre Lisboa e Nova Deli, que rapidamente se converteria numa guerra de nervos, com potencial para degenerar num conflito armado. Em 1954, os enclaves portugueses de Dadrá e Nagar Aveli foram ocupados por ativistas satyagrahas indianos. A relutância de Jawaharlal Nehru em recorrer à força para resolver de uma vez por todas a “questão de Goa” adiaria por alguns anos o desfecho da disputa, que acabaria por acontecer em finais de 1961, quando o líder indiano concluiu que maiores atrasos poderiam comprometer seriamente a sua liderança junto do emergente Movimento dos Não-Alinhados (Stocker 2005).
Na China, o triunfo de uma revolução comunista que prometia vingar os vexames infligidos ao antigo Império do Meio parecia uma sentença de morte para estabelecimentos ocidentais como Macau ou Hong Kong. Tal não viria a acontecer, por força de um conjunto complexo de fatores, entre os quais foi decisivo o interesse do regime de Mao Tsé-tung em dispor de vias discretas que lhe permitissem contornar o bloqueio decretado pelos EUA à República Popular da China, no seguimento da Guerra da Coreia. Cálculos geopolíticos do mesmo teor refrearam a Indonésia de Sukarno, tornada independente em 1949, de reclamar a soberania sobre os territórios que não integravam o património das Índias Orientais holandesas, incluindo o então chamado Timor português (Oliveira 2023).
No entanto, os governantes portugueses não ignoravam o apelo emocional do nacionalismo anticolonialista e nunca confiaram inteiramente num direito internacional cujo viés imperialista passara a ser abertamente contestado nos grandes areópagos mundiais. Em abril de 1955, a conferência afro-asiática de Bandung sinalizou, entre outras coisas, a disposição das potências ali reunidas para prestarem apoio às lutas de libertação que tinham como foco primordial os poderes coloniais europeus. Redes e comités de solidariedade foram estabelecidos em vários países do então denominado Terceiro Mundo, com destaque para o Egipto, o Gana e Marrocos. Essas novas infraestruturas de solidariedade afro-asiática seriam ativamente procuradas pelos nacionalistas anticoloniais de língua portuguesa, para organizarem a sua luta independentista. Os de orientação tendencialmente socialista, na sua maioria educados na Europa (e muitos deles em Lisboa), formam, em 1960, em Tunes, a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, uma plataforma que traria importantes sucessos diplomáticos aos movimentos que a constituíam, ao ponto de permitir muitas vezes camuflar as respetivas fraquezas na frente militar.
A viragem da década foi fértil em sobressaltos para Portugal. Reunida em dezembro de 1960, a Assembleia Geral das Nações Unidas coincidiu com a aprovação de um conjunto de declarações que estabeleciam, sem ambiguidades, o direito dos povos à autodeterminação, a que a própria Carta da organização já aludia.
É certo que à época outros poderes coloniais europeus estavam ainda implicados em vários conflitos intratáveis, usando leis de exceção para encarcerar e torturar combatentes independentistas, desde a Argélia ao Quénia. Mas o carácter ditatorial do poder metropolitano português tornava-o quase impermeável a pressões domésticas e menos flexível a sugestões liberalizadoras feitas por poderes como os EUA – elementos que, por essa altura, pesaram nalgumas das “estratégias de saída” congeminadas por britânicos e franceses. O regime salazarista enfrentou um ano particularmente duro em 1961, com tentativas de golpe no plano interno, levantamentos populares armados em Angola, a perda da fortaleza de São João Baptista de Ajudá (no atual Benim), e a anexação de Goa, Damão e Diu pelas forças da União Indiana.
As pressões sofridas por Portugal nas Nações Unidas eram consideráveis, incluindo votos hostis dos EUA, então sob a presidência de John F. Kennedy. Salazar alegaria mais tarde que um pequeno país como Portugal estava impedido de seguir as pisadas de outros países europeus, pois não dispunha de meios para continuar a exercer uma influência duradoura nas suas colónias através de mecanismos indiretos (ditos “neocoloniais”). Trata-se de uma explicação que deixa muito a desejar; parece mais razoável supor que Salazar percebesse que uma guerra prolongada, mas de custos controlados e de “baixa intensidade”, lhe seria vantajosa. Agora que os países europeus ocidentais, para onde todos os anos emigravam dezenas de milhares de portugueses, demonstravam ser possível conciliar prosperidade, estabilidade e democracia, tornava-se mais difícil justificar a natureza ditatorial do regime português. Numa era de détente na Guerra Fria, como aquela que ocorreu a partir de 1962-63, apenas a manutenção de um império concebido como uma “herança sagrada” (Alexandre 2017) permitia justificar a mobilização militar do país, com os correspondentes custos financeiros, e ainda com prejuízo para os esforços de modernização e bem-estar que o próprio regime sabia que tinha de empreender para garantir a sua estabilidade.
No imediato, é verdade que Lisboa conseguiu ganhar tempo, graças a uma estratégia de contrainsurreição prudentemente conduzida e a um conjunto apreciável de cumplicidades internacionais. Até ao início dos anos 1970, o regime logrou conter o desafio das guerrilhas africanas, que haviam entretanto aberto focos de luta armada também na Guiné (1963) e em Moçambique (1964), ao mesmo tempo que lançava ambiciosos programas de fomento económico e engenharia social. Os interesses económicos implicados nesse surto de crescimento, assim como o vasto aparato burocrático e de segurança vinculado ao esforço militar, criaram um número assinalável de veto-players, que ajudaram Salazar, e depois Caetano, a adiar quaisquer cenários de descolonização (Spruyt 2005).
Os portugueses puderam tirar partido de certas táticas de contrainsurreição que outras potências ocidentais tinham desenvolvido noutros contextos, da Malaia ao Vietname, da Argélia ao Quénia, assim como da condescendência dos seus parceiros da NATO no tocante ao desvio de equipamento desta organização para os teatros africanos. O seu entendimento com os regimes supremacistas brancos da Rodésia e da África do Sul evoluiu para modalidades de colaboração cada vez mais estreita, em domínios como a partilha de informações, a cooperação policial e militar e o intercâmbio económico. Tudo isto criou condições que levaram a um impasse que, no início da década de 1960, quando o fim do “ultracolonialismo” português era visto como iminente por não poucos observadores europeus, poucos teriam acreditado ser possível.
As divisões no campo dos nacionalistas foram também um fator não negligenciável no arrastamento da situação. Os apelos à unidade que vários líderes e entidades afro-asiáticas endereçavam raramente surtiram efeito, sobretudo no caso de Angola, onde os independentistas se dividiram em três partidos antagónicos; mesmo movimentos dotados de lideranças mais coesas, como a FRELIMO (Moçambique) e o PAIGC (Guiné-Bissau e Cabo Verde), ressentiram-se de cisões e de rivalidades internas, algumas delas facilitadas por desenvolvimentos como o cisma sino-soviético nos anos 1960, e acabaram por ver os seus líderes assassinados – Eduardo Mondlane em 1969, Amílcar Cabral em 1973 – em parte devido ao exacerbamento dessas divisões.
Na Guiné e em Moçambique, a guerrilha gozava de certa capacidade de iniciativa, sobretudo graças a algum equipamento militar moderno (artilharia ligeira em particular) e a quadros treinados em academias militares de países socialistas, de Cuba à China. No entanto, o grosso da atividade dos movimentos independentistas desenrolava-se no exílio, sob a forma de iniciativas diplomáticas (em especial na ONU) e de propaganda política (MacQueen 1997). Para isso, esses movimentos contavam com a solidariedade de dezenas de estados do chamado Sul Global e do bloco socialista, assim como de redes de ativistas anticoloniais em vários países do Ocidente.
O efeito cumulativo desta mobilização transnacional foi apreciável. Em 1973, a denúncia de atrocidades cometidas pelo exército português, como a de Wiriyamu, em Moçambique, deu uma nova visibilidade ao sofrimento que resultava do impasse militar na África dita portuguesa.
Em última análise, numa guerra de paciência e desgaste como são todas as guerras de guerrilha, os nacionalistas revelariam uma determinação superior, levando a que as forças armadas portuguesas, elas próprias um espelho das mudanças aceleradas vividas por Portugal nos anos 1960, começassem a questionar o sentido da resistência à descolonização.
Como alguns dos oficiais portugueses depois notariam, o efeito do golpe de Estado de 25 de abril de 1974, motivado essencialmente pela incapacidade do regime para superar o impasse ultramarino, foi em tudo semelhante ao impacto da queda do czarismo na vontade de lutar dos soldados russos em 1917.
Essa circunstância revelar-se-ia decisiva no desatar dos laços coloniais entre Lisboa e os seus territórios africanos. Uma tentativa de última hora do general António de Spínola, o presidente da Junta de Salvação Nacional, no sentido de relançar o projeto imperial em bases federativas (ou “neocoloniais”, como pretendiam os seus críticos) esbarrou na oposição determinada dos movimentos independentistas e dos seus aliados, bem como na dos oficiais do Movimento das Forças Armadas, que apostavam tudo num acordo amistoso com as guerrilhas.
Perante as tentativas de adiamento de Spínola, o recrudescimento das ações armadas e vários ultimatos das estruturas locais do MFA foram suficientes para que o antigo governador da Guiné tomasse consciência de que não havia alternativa à independência sob a égide dos movimentos nacionalistas reconhecidos pela ONU. Em 1958, no caso francês, o impasse argelino gerara também uma intervenção militar na política, que levou inclusivamente ao nascimento da V República, sob a liderança do general De Gaulle; o seu sentido, no entanto, foi o de tentar salvar a Argélia francesa, desígnio precisamente contrário ao que pretendia o MFA quando avançou para o derrube do Estado Novo.
A Lei 7/74, de 27 de julho, consagrou o reconhecimento imediato do direito das populações coloniais à autodeterminação, com todas as suas consequências, incluindo a independência, e foi recebida com júbilo pela população metropolitana e ultramarina, assim como pela generalidade das forças políticas portuguesas, para quem a descolonização era tida como uma premissa fundamental da evolução democrática do país.
Os processos de transferência do poder na Guiné, em Moçambique, em Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe não foram isentos de sobressaltos – sobretudo em Moçambique, após os motins provocados por uma parte da população branca hostil ao acordo de independência celebrado com a FRELIMO em 7 de setembro de 1974. Entretanto, isso não impediu que o momento fosse vivido de forma eufórica entre os sectores mais à esquerda da revolução portuguesa: Portugal e as suas antigas colónias estavam agora irmanados na “construção do socialismo” e Lisboa podia aspirar a tornar-se um intermediário-chave entre a Europa e a África, uma “ponte” entre o Norte capitalista e o Sul Global, superando a memória traumática do colonialismo e da guerra.
Este momento de euforia teve, porém, um tempo de vida muito curto. O principal fator a arrefecer o entusiasmo com a descolonização foi a afluência a Portugal, em grande número, dos nacionais portugueses de Angola e Moçambique (conhecidos como “retornados”, rótulo que muitos repudiavam), confrontando a antiga metrópole com a necessidade de acomodar e apoiar aproximadamente 550 000 indivíduos, num contexto de grave crise económica (Peralta 2022). A esmagadora maioria eram portugueses brancos, mas entre eles contavam-se também algumas dezenas de milhar de africanos, que contribuíram para tornar as cidades portuguesas um pouco mais multiculturais, ao mesmo tempo que punham à prova as ideias auto-complacentes do país em relação à sua capacidade para lidar com a diferença.
O segundo fator prendeu-se com a rápida deterioração da situação política nos antigos territórios ultramarinos. Dois deles, em particular – Angola e Timor –, converteram-se em palco de violentos conflitos entre facções nacionalistas desavindas, que propiciariam interferências externas de vários atores da Guerra Fria e, no último caso, uma invasão militar indonésia que estabeleceria um regime de ocupação brutal até à realização de um referendo de autodeterminação em 1999. Em ambos os casos, a incapacidade das autoridades portuguesas para exercerem um papel arbitral suscitou enormes controvérsias, influenciando muito negativamente, e por várias décadas, as perceções da opinião pública acerca da descolonização.
Como se comparou o fim do império lusitano com o de outras potências? E como se têm os portugueses relacionado com a memória de todo o processo? Mais uma vez, parece sensato matizarmos aqui a noção de “excepcionalidade” portuguesa. O facto de países como a Bélgica, a Holanda e a França serem governados por democracias liberais, que não eram indiferentes à maneira como eram olhadas pela opinião pública internacional, tornou possível compromissos negociados com forças independentistas – mas isso não poupou a erupção no Congo, na Indonésia, na Indochina e na Argélia de episódios de enorme violência, incluindo guerras travadas com extrema crueldade. Mesmo a descolonização britânica, durante tanto tempo apresentada como um modelo de razoabilidade e pragmatismo (num registo próximo da “versão whig da história”), tem sido alvo de um olhar mais crítico, que associa a procrastinação de Londres à imensa tragédia humana da partição da Índia e Paquistão, em 1947, ou enfatiza o recurso a medidas de exceção para cobrir toda a espécie de abusos nas campanhas de contrainsurgência travadas na Malaia ou no Quénia (Elkins 2022).
Tal como os seus congéneres europeus, Portugal tentaria encontrar um enquadramento institucional para tirar o máximo partido das suas relações pós-coloniais, designadamente com a criação, em 1996, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). À imagem de outras instituições diplomáticas pós-coloniais, como a Commonwealth ou a Francophonie, a CPLP poderá ter trazido alguns dividendos políticos à antiga potência colonial (como o apoio em certas votações na ONU), mas ela tem sido também uma arena onde a harmonização de interesses se tem revelado muitas vezes difícil, em parte devido ao ressentimento de alguns estados-membros diante daquilo que veem como manifestações de “paternalismo” da antiga metrópole, ou em domínios onde os compromissos portugueses no quadro da União Europeia (tais como os acordos de Schengen) colidem com as expectativas das antigas colónias africanas.
As consequências culturais e psicológicas da descolonização entre os ex-estados coloniais são também um laboratório de comparação interessante. Em 1999, um ano depois da Exposição de Lisboa dedicada à temática dos Oceanos, vista por alguns como uma manifestação do apego de Portugal ao seu imaginário imperial, o historiador Landeg White observou que em 1975 o país realizara a sua descolonização “física”, mas permanecia relutante em empreender uma verdadeira “descolonização mental” (White 1999: 54-55). Tal tarefa implicaria revisitar toda uma história imperial recheada de mitos benevolentes e, ao mesmo tempo, tirar ilações sobre os equívocos dessa história mítica e das suas manifestações no presente. As últimas duas décadas, porém, têm evidenciado alguma disposição de partes da sociedade portuguesa para realizar um ajuste de contas com o passado imperial, em boa medida graças à difusão, na academia e nos media, de uma agenda pós-colonial, bem como ao ativismo de indivíduos e organizações de afrodescendentes.
O apego português a uma representação mítica do passado tem matizes próprias, incluindo um forte envolvimento estatal na perpetuação de um imaginário de tonalidades luso-tropicalistas. Mas, uma vez mais, até que ponto o mesmo não sucederá noutros contextos, em função de idiossincrasias locais que também elas se têm revelado resistentes à mudança? Exemplos disto são as “guerras identitárias” alimentadas por incidentes associados a legados imperiais (das polémicas em torno de Zwarte Piet nos Países Baixos à campanha Rhodes Must Fall no Reino Unido), ou as memórias não apaziguadas de vários países em relação aos aspetos mais violentos do seu colonialismo, desde as atrocidades no Congo do Rei Leopoldo às violações de direitos humanos na Argélia francesa (Buettner 2016).
De certa forma, o último capítulo desta história europeia permanece ainda por concluir – e são cada vez mais aqueles que querem ter uma palavra a dizer nesse processo.
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Matias Tomé Upinde (1945-2024)
A pesquisa seguiu o caminho de uma abordagem “biográfico-narrativa”, que permite uma metodologia “ativa, interpretativa e reflexiva” (Thé 2022: 1) a partir da apresentação da história de vida de Matias Upinde, com os principais aspetos e os acontecimentos mais marcantes da sua trajetória. Trata-se de uma personalidade pouco conhecida, que se pretende divulgar, por se considerar que a história transnacional e conectada (Seigel 2005: 63), longe da história oficial, é tecida na malha dos sem voz e possibilita uma análise problematizante, para além das fronteiras das nações.
Matias Tomé Upinde nasceu em Cabo Delgado, no dia 25 de fevereiro de 1945, vivendo numa família alargada, com os pais e avós. Aos 7 e 8 anos frequentou a missão de S. João de Brito em Nambude (no planalto dos Macondes), tendo terminado a 4ª classe em 1962. Foi professor-catequista entre 1962 e 1964. Nessa altura, a maioria dos professores eram militantes clandestinos da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e, por esse motivo, Upinde escaparia para o Tanganica (atual Tanzânia), tendo passado por Mtwara, Dar-es-Salaam, Bagamoyo e Kongwa, onde chegou em 1965 e onde fez treinos militares. De volta a Dar-es-Salaam, preparado para ir trabalhar para a FRELIMO no exterior, foi “desviado” para Bagamoyo e, mais tarde, para Nachingwea, no sul do Tanganica, como instrutor no Centro de Preparação Político-Militar.
Daí seguiu para a União Soviética (URSS), com a intenção de cursar sabotagem, mas ficou na artilharia. De regresso a Nachingwea, fez um curso com instrutores chineses, após o que foi para o interior de Niassa, onde o primeiro grupo de artilharia deveria operar. Ali esteve, primeiro, como adjunto e, mais tarde, como chefe dos combatentes. Quando a FRELIMO se preparava para receber uma nova arma (a artilharia ligeira soviética B-11), Upinde seguiu para Dar-es-Salaam, e de lá para a URSS, onde treinou. De regresso a Nachingwea, passou a operar no interior de Moçambique: o seu grupo recebeu ordens para abrir a Frente de Manica e Sofala. Chegaram a 15 de agosto de 1974, já depois do golpe militar de 25 de abril de 1974 em Portugal. Chamado a chefiar um grupo que deveria seguir para a Rodésia do Sul (atual Zimbábue), partiu mais uma vez para Moscovo, a fim de ser preparado no quadro de forças especiais. Regressou a Moçambique em 1977, na altura do 3º Congresso da FRELIMO, sendo colocado em Quelimane, na província da Zambézia, como Comandante d Batalhão (1977-1978).
Em dezembro de 1978, entrou com o seu grupo em Manica, na companhia de Josiah Tongogara, comandante do Zimbabwean People’s Revolutionary Army (ZIPRA), braço armado do partido Zimbabwe African People's Union (ZAPU) no combate ao regime de minoria branca liderado por Ian Smith. “Não devíamos atacar até chegar à estrada Salisbúria (Harare)-África do Sul”. Criou então, entre janeiro e março de 1979, quatro grupos: um de reconhecimento; outro que atacou um hotel; um terceiro que ficou a defender a fronteira; e um quarto que permaneceu com o comandante no centro. Falavam sempre em Suaíli e, segundo o próprio Upinde, “dizíamos que éramos zimbabueanos”: “O meu nome era Eduardo Ngo”. Tinha o apoio do Destacamento Feminino (DF), que por diversas vezes transportou material, até que no dia 24 de maio de 1979 todo o grupo do DF foi dizimado num ataque. Apareceu um avião e três helicópteros, que fizeram um cerco: “Escondi-me das 14 às 18 h e caí numa cova”, relembra Upinde. Esconderam-se entre a população e ali ficaram. Isto aconteceu na época das conversações na Lancaster House, em Londres, que visavam o fim do conflito rodesiano e a futura independência do Zimbábue, num acordo que viria a ser assinado a 21 de dezembro de 1979. A ação da diplomacia moçambicana, chefiada por Samora Machel, junto da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher foi importante na solução encontrada para a transição no Zimbábue de colónia inglesa, sob um regime de minoria branca, a Estado independente.
“Como devo continuar a missão?”, perguntou então Upinde ao Presidente Samora Machel. Devia voltar. Através dos media, o Presidente deu notícia ao mundo da solidariedade moçambicana para com o povo do Zimbábue. Entretanto, um soldado zimbabueano foi capturado e “deu o meu nome aos bóeres”. Chegado a Umtali (atual Mutare), colocaram-nos na cadeia e começaram os interrogatórios: queriam saber qual tinha sido a missão do batalhão. “Ficámos uma semana e esperávamos duas coisas: ser ou libertados ou fuzilados”. Mas chegou um avião “com os nossos camaradas e polícia da Commonwealth. O plano nesse momento era regressar a casa, o que aconteceu a 7 de fevereiro 1980. Houve receção no aeroporto, cheio de gente”. “Fiz a apresentação do grupo e disse: ‘Missão cumprida!’” Preocupou-se com os camaradas falecidos, cujos corpos deviam regressar a Moçambique. “Escrevi duas vezes”. Até hoje, infelizmente, os familiares das vítimas desconhecem o respetivo paradeiro.
Teve outras missões, na Beira e em Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Desmobilizado com a patente de major, viveu com a família em Mocímboa da Praia. Em 2017, Mocímboa foi vítima de ataques dos insurgentes do grupo islamista radical Ahlu Sunnah Wal Jamaah. Segundo Upinde, “Foi tudo destruído… carro, motorizada e casa”; “A Mamã (Alda Saíde, organizadora da Conferência, conheceu o Comandante Matias através do General Mataruca, atual Comandante da Academia Militar em Nampula) é que me descobriu”. Agora, ninguém me chama,” lamentou-se no final da exposição da história da sua vida. A tranquilidade com que nos falou, aos setenta e oito anos, contrastava com a penúria a que se via reduzido, depois de tantos sacrifícios que ficaram esquecidos (Ricoeur 2007: 457). Faleceu em 2024, vítima de doença.
Existem fontes escritas – na documentação oficial (Machel 1974: 51), na imprensa (Machel 1976), em estudos académicos (Cabaço 2007: 405) – que dão conta da solidariedade moçambicana com outros movimentos de libertação, no contexto da África Austral. No entanto, as fontes orais e iconográficas dão o colorido do detalhe e, cruzadas com outros dados, possibilitam a compreensão do passado, dos conflitos militares em que a região se viu envolvida, face ao apartheid na África do Sul, ao regime de Ian Smith na Rodésia e ao colonialismo português. Por conseguinte, é necessário continuar a procurar os sem voz, de modo a dar-lhes visibilidade, pelo menos académica, para que os mais jovens se inspirem e façam o que os mais velhos começaram, para a construção de uma sociedade mais inclusiva e justa, num ambiente de Paz.
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