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Jardim do Príncipe Real
No início da década de 1880, o jardim do Príncipe Real era um dos endereços mais exclusivos de Lisboa. Os seus palacetes e os seus proprietários reproduziam a opulência que caracterizava a alta sociedade europeia da época. Este texto conta a história de três fenómenos entrelaçados: a emergência de um novo espaço público, o desenvolvimento de um novo tipo de arquitectura doméstica e a consolidação de uma nova classe social. Esta é também uma história que cruza a escala local, a nacional e a global.
Os “empresários” que moravam no Príncipe Real compunham um grupo social relativamente recente, um colectivo unido por ambições e comportamentos semelhantes. Quase todos partilhavam uma origem colonial comum: haviam enriquecido rapidamente com a extracção, a produção ou o comércio de mercadorias tropicais e haviam acumulado lucros avultados com um sistema baseado no trabalho escravo. A origem violenta das suas fortunas foi, no entanto, convenientemente esquecida quando o capital se aplicou em negócios metropolitanos, aparentemente mais civilizados, mas igualmente lucrativos: indústrias, empresas de transporte e de comunicação, e instituições financeiras. Hoje, seguir o rasto desse dinheiro torna-se ainda mais difícil, porque o capital acumulado no espaço do império, e colocado ao serviço de companhias metropolitanas, acabou investido na própria cidade. As mesmas instituições de crédito que financiaram a transformação da paisagem urbana de Lisboa no final do século XIX eram propriedade destes homens. E foi exactamente nas novas ecologias residenciais segregadas, que a banca produziu para a classe alta, que eles mandaram erguer os seus palacetes. Materializando um imaginário liberal específico, criado em torno de costumes e de cultura, gosto, educação e ideias de civilidade, estas casas sumptuosas ajudaram a afirmar a posição destes homens como membros da alta burguesia global.
Nos palacetes do Príncipe Real viviam personagens como Policarpo José Lopes dos Anjos, José Ribeiro da Cunha, Tomás de Nápoles Nogueira e Veiga (1º Visconde de Alenquer), Manuel Joaquim de Faria, António Pereira de Carvalho, Carlos Ferreira dos Santos Silva, José Rodrigues Penalva (1º Visconde de Penalva de Alva) e João Paulo Cordeiro. Alguns eram herdeiros ricos, mas outros haviam construído eles mesmos as suas fortunas e poder. Aqueles que tinham subido na escala social escondiam as suas origens humildes em cidades do interior do país, como Sertã, Vila Verde, Vizela ou Covilhã. A maioria tinha ganho muito dinheiro, directa ou indirectamente, com negócios no Atlântico: Penalva possuía plantações de cana-de-açúcar, engenhos e escravos em Campos dos Goytacazes, no Brasil; Cordeiro manteve homens e mulheres escravizados a trabalhar na sua grande fábrica de tabaco no Rio de Janeiro, até morrer em 1882; Faria construiu um império de dois mil contos de réis (o equivalente a 50 milhões de euros em 2024) com o comércio da borracha da Amazónia na província do Pará; Santos Silva lucrou também com a borracha, trabalhando com os seus parentes maternos La Rocque e casando-se com a família Gaudêncio da Costa, juntando assim dois dos clãs mais ricos de Belém do Pará; Anjos fez fortuna numa fábrica em Alcântara, que tecia panos de algodão para vestir os africanos do império português.
O poder económico e a influência desses homens cresceram com a expansão global do sistema financeiro. É possível usar a trajectória de Santos Silva como exemplo: ao regressar a Portugal após quase 15 anos no Brasil, aplicou o seu dinheiro na banca, um dos segmentos económicos mais promissores à época. Juntando-se aos irmãos Pinto da Fonseca, que enriqueceram com o tráfico ilegal de pessoas escravizadas, e a Francisco Izidoro Berganthi Gonçalves Amorim Vianna, herdeiro de uma fortuna antiga, fundou em 1861 o Banco Fonsecas, Santos e Vianna. Este banco mercantil negociava para a Europa fardos de algodão do Maranhão, volumes de borracha do Pará e sacas de café de São Tomé, mas rapidamente se ligou à alta finança, intermediando operações entre o Estado português e os bancos franceses, britânicos e alemães. A carteira de investimentos de Santos Silva reunia acções da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, da Brazilian Submarine Telegraph Company, da West of India Portuguese Guaranteed Railway Company ou da Compagnie du Sud-Est Africain da Bélgica, cruzando quatro continentes e diferentes impérios.
Assim como Santos Silva, outros capitalistas do Príncipe Real tinham participações em empresas que operavam internacionalmente. No entanto, a maioria do seu capital financiou projectos metropolitanos: parte desse dinheiro serviu para pagar os “melhoramentos materiais” do regime liberal, as novas infra-estruturas (ferrovias, linhas de telégrafo e portos) que no século XIX ajudaram a transformar a paisagem portuguesa e a criar o mercado interno nacional. O regime liberal, por sua vez, criou condições para que os negócios fossem lucrativos: os empresários beneficiaram de monopólios, de subsídios e de taxas de juros garantidas pelo Estado. Cordeiro, Penalva, Santos Silva e Ribeiro da Cunha, por exemplo, eram donos de um dos mais rentáveis monopólios privados portugueses, o da transformação e comércio do tabaco.
Em meados do século XIX, estes homens compreenderam que a própria cidade oferecia oportunidades para o emprego seguro das suas fortunas. Com o crescimento da população de Lisboa, o governo municipal foi forçado a planear a expansão do tecido urbano, a construir novas redes de esgotos, água, gás e transportes, e a pedir dinheiro emprestado para financiar tais operações de larga escala. Em resposta, surgiram instituições bancárias de perfil dedicado. A Companhia Geral do Crédito Predial Português (1864) – inspirada no Crédit Foncier francês – tinha como alvo primeiro o mercado das hipotecas sobre imóveis, mas, com o tempo, viria a especializar-se em empréstimos municipais. Os balancetes do Crédito Predial mostram que a década de 1880, coincidindo com o desenvolvimento urbano de Lisboa, foi a mais próspera na história do banco: de dividendos de 7% em 1868, o banco passou em 1886 a pagar juros de 10% aos seus accionistas, e de 12% em 1889. Ribeiro da Cunha, Anjos e Santos Silva estavam entre os portugueses e franceses que ocupavam lugares nos órgãos de direcção do Crédito Predial, sendo que Anjos era também vereador da Câmara Municipal de Lisboa.
A Avenida da Liberdade, construída durante a década de 1880, no auge da expansão urbana da capital, é muitas vezes apresentada como a quintessência da Lisboa europeia e moderna. Mas o jardim do Príncipe Real, inaugurado em 1869, antecipou em quase duas décadas as ambições e objectivos da Avenida. Em 1850, não havia nenhum jardim, nem mesmo uma praça, naquele local bastante marginal. O espaço servia sobretudo como depósito de lixo, e era usado como abrigo por “mendigos”, por “ladrões” e por “prostitutas de terceira classe”, que preocupavam as autoridades políticas, os técnicos (que haviam acabado de instalar a Escola Politécnica nas proximidades) e as elites económicas. Pensando nessas “classes perigosas”, as autoridades de Lisboa trabalharam diligentemente para limpar e sanear esta parte da cidade, despejando os “pobres”. O governo da cidade tinha grandes ambições económicas e sociais quando investiu na transformação física da área. Antecipando um futuro nobre, a praça recebeu o nome do filho primogénito da rainha D. Maria II, o Príncipe Real D. Pedro.
A primeira operação urbana centrou-se no nivelamento do terreno, abrindo caminho para o tão desejado jardim. De acordo com a teoria francesa, ensinada aos especialistas da Câmara Municipal de Lisboa nos livros e nas colecções de desenhos comprados em Paris, o papel civilizador exercido pela natureza domesticada era um importante correctivo para os problemas da vida urbana moderna. Dessa forma, os engenheiros da Câmara plantaram árvores em todos os “vazios” urbanos. Em junho de 1869, quando o jardim do Príncipe Real foi inaugurado, a cidade ganhou um novo espaço para actividades virtuosas ou frívolas durante o dia, mas também durante a noite, graças à iluminação a gás.
A luz artificial estava entre as tecnologias mais modernas do século XIX. Se, em alguns contextos, o gás serviu objectivos emancipadores, alimentando os sonhos do proletariado mundial que reivindicava a noite para a sua educação, no caso do Príncipe Real a iluminação serviu sobretudo para garantir a segurança das classes abastadas. Naquele espaço, a luz artificial não foi redentora, mas repressora, tendo ajudado a expulsar mulheres de reputação duvidosa. Quando o jardim foi apropriado por mães burguesas e pelos seus filhos, quando os “pobres” foram reintegrados como cocheiros e bonnes (criadas domésticas ao estilo francês), surgiram ainda novas dinâmicas de vigilância. Passeando pelo jardim, mulheres respeitáveis passaram a controlar-se mutuamente e a supervisionar os actos dos subordinados, policiando as virtudes colectivas da sua classe.
O jardim do Príncipe Real, mesmo sendo público e sem vedação, foi planeado com uma ideia clara em mente: a da exclusão socio-espacial de grupos específicos. Na verdade, o projecto de bairros socialmente homogéneos era uma das características modernas do urbanismo do século XIX. As ecologias urbanas segregadas, para além de ordenarem a paisagem social da cidade, também respondiam a objectivos económicos. É importante notar que o mercado imobiliário fazia parte das carteiras de investimento dos capitalistas lisboetas. Com a ajuda do Estado e dos seus engenheiros, banqueiros e “empresários”, o Príncipe Real foi transformado num espaço onde o valor da propriedade só poderia crescer. Eles haviam criado um bairro para cidadãos ricos, respeitáveis e merecedores – em resumo, para si próprios.
Na década de 1870, a propriedade dos terrenos à volta do jardim do Príncipe Real estava concentrada nas mãos de um grupo específico de capitalistas, todos homens na faixa dos 50 anos, com fortunas com origens coloniais semelhantes e com padrões idênticos de mobilidade social, ascendente e rápida. Ao longo da vida, tinham construído uma densa rede de contactos. Conheciam-se do tempo passado no convés de navios transatlânticos, nas luxuosas salas de reuniões de bancos, de empresas e de instituições de caridade, nos foyers de teatros e de óperas, em carruagens de comboio durante viagens de negócios ou de lazer pela Europa. Alguns – como Ribeiro da Cunha e Pereira de Carvalho – tinham laços familiares, mas os palacetes eram o seu empreendimento colectivo mais sólido, voltado para a consolidação de uma nova posição social.
Embora diferentes na forma e na estética, essas casas unifamiliares compartilhavam muitas características: todas tinham fachadas imponentes, que reflectiam um mesmo padrão de gosto; todas tinham grandes salões, para acolher uma infinidade de eventos sociais; todas tinham quartos esconsos, para os criados residentes que garantiam os níveis adequados de respeitabilidade burguesa; uns quantos ostentavam frontões ornamentados, que indicavam o enobrecimento de alguns daqueles homens.
No entanto, apesar dessas semelhanças, quando olhamos atentamente é possível encontrar diferenças importantes. Essas diferenças interessam porque os palacetes eram, em última instância, o retrato de seus proprietários. E alguns desses homens celebraram as suas realizações individuais de forma contrastante. Anjos, por exemplo, decidiu investir no prestígio de Giuseppe Cinatti, o arquitecto italiano famoso por desenhar os cenários do Teatro de São Carlos e por projectar os palacetes de membros estabelecidos da classe alta da capital. Anjos e Cinatti optaram pela gravidade e solenidade neoclássicas, levando os contemporâneos a classificar este palacete como uma das “casas mais harmónicas, mais nobremente correctas, mais agradavelmente proporcionais e elegantes” de Lisboa (Júlio de Castilho, citado por Leal 1996, vol 1, p. 246).
A abordagem de Ribeiro da Cunha foi bem distinta: contratou um arquitecto português menos famoso, Henrique Carlos Afonso, e optou por um estilo arquitectónico verdadeiramente revolucionário. Combinando várias linguagens, o seu palacete era uma mistura ecléctica de janelas e cúpulas de inspiração mourisca, uma escadaria nobre de estilo clássico, e salas com motivos de Pompeia. Os críticos não foram simpáticos, classificando a casa como uma anomalia estética e descrevendo com desprezo a sua “fachada ornada de melancias” (Almeida 1904, p. 102). Mas esse tipo de liberdade estilística, nova na história da arquitectura, espelhava melhor o carácter transgressor desses homens, desafiando limites rígidos de classe e de prestígio. Essa liberdade inspirou outros capitalistas e outras arquitecturas. No final do século XIX, uma réplica deste palacete foi construída a 6.000 km de Lisboa por um empresário português, numa das avenidas mais elegantes e modernas de Belém do Pará.
Desenhos de arquitectura eram apenas mais um item que cruzava o Atlântico. Na verdade, a história do Príncipe Real foi uma história de circulação de pessoas e bens, de capitais e ideias. Este espaço urbano, profundamente enraizado em Lisboa, emergiu de processos transnacionais de rápido crescimento económico, enorme concentração de riqueza, expropriação e pilhagem. Em conjunto, escravos africanos, borracha da amazónia, acções de empresas de caminho de ferro indianas, imaginário urbano parisiense, engenharia portuguesa e cultura italiana compuseram a história deste bairro. O Príncipe Real pode por isso ser visto como uma expressão das redes imperiais e globais que contruíram a nação e o capitalismo português do século XIX.
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Segunda Independência de Timor-Leste (1999-2002)
A invasão militar de Timor-Leste pela Indonésia, em Dezembro de 1975, suscitou a reacção de diversos agentes políticos. Em Timor, a FRETILIN procurou manter a resistência militar e popular, organizando a administração de “bases de apoio” que inicialmente gozaram de significativa expressão territorial. Portugal condenou a invasão e apresentou o caso na ONU, dando um passo decisivo para a internacionalização do problema, que evitara até ao último momento. A anterior passividade portuguesa agradara sobremaneira à Indonésia, que temia ver os países recém-independentes alinhar contra a sua posição, dificilmente compatível com o princípio da autodeterminação. A Indonésia instalou então um governo provisório, com base em políticos do que fora o Timor Português (nomeadamente da APODETI e da UDT), organizando, em Maio de 1976, um “acto de livre escolha” (logo crismado de “acto de não-escolha”) e arregimentando, sob coacção, líderes tradicionais, procurando dessa forma reproduzir o processo que anos antes havia conduzido na Papua Ocidental/Irian Jaya e que lograra obter reconhecimento da ONU. Através de uma resolução do seu parlamento, a Indonésia proclamou Timor como sua 27.ª província, sob a designação de Timor-Timur (Tim-Tim).
Ao longo do tempo, a ONU viria a assumir um papel relevante, mas oscilante. Ainda em Dezembro de 1975 o Conselho de Segurança (CS) se debruçou sobre o tema (com a Resolução 384, aprovada por unanimidade), enviando logo depois o diplomata Vittorio Winspeare Guicciardi ao território, em missão de reconhecimento. Uma segunda Resolução (389) foi aprovada em Abril de 1976, desta vez com a abstenção dos EUA e do Japão. Em ambos os casos, a Indonésia foi admoestada, tendo-lhe sido pedido que retirasse as suas forças militares; ao mesmo tempo, Portugal era repreendido por não conseguir manter a ordem na sua colónia. Até 1999, seria essa a última vez que o CS se debruçaria sobre o problema de Timor-Leste.
A Assembleia Geral (AG) da ONU também cedo se pronunciou em sentido crítico (Resolução 3485-XXX, 12 de Dezembro de 1975). Nos anos seguintes, viria a manifestar-se de maneira semelhante, mas o texto das resoluções seria cada vez mais moderado na crítica à Indonésia e nos remédios que propunha, enquanto o número de países que votavam a favor decrescia a olhos vistos. Em 1982, tentou-se um novo caminho: a resolução aprovada na AG solicitava ao Secretário Geral da ONU que procurasse obter um entendimento que incluísse Portugal e a Indonésia – países que pertenciam ambos à zona de influência dos EUA, não havendo por isso uma interferência directa dos problemas relacionados com a Guerra Fria. Javier Pérez de Cuéllar aceitou o encargo, sob condição de que a AG se abstivesse de se pronunciar sobre o caso enquanto durassem as suas diligências, exigência que foi cumprida.
Entretanto, entra em cena outra instância da ONU, a Comissão dos Direitos Humanos. No início da década de 1980, a questão do direito à autodeterminação – base da queixa apresentada por Portugal na ONU – havia perdido grande parte da aura moral de que disfrutara em décadas anteriores. Por um lado, a descolonização era agora vista como um processo quase concluído, subsistindo apenas um número reduzido de casos por resolver (como a Namíbia ou o Sahara Ocidental); por outro, a experiência das independências africanas da década de 1960, seguidas pela instalação de regimes cada vez mais vistos como corruptos, enfraquecera a dimensão moral associada à ideia de independência. A isto acrescia a convicção de que os casos pendentes se reportavam a territórios pequenos, pouco populosos, cuja viabilidade enquanto estados autónomos era questionável, segundo vários intervenientes ligados à própria ONU. Em contrapartida, com o alastramento da chamada “terceira vaga de democratização”, ganhavam força as reivindicações de respeito pelos direitos humanos, sendo que a Indonésia era susceptível de críticas severas nesse domínio, dado que a ocupação de Timor-Leste se revestia de uma extrema dureza. Neste contexto, a reivindicação do direito à autodeterminação passou a ser acompanhada pela exigência do respeito pelos direitos humanos, o que alargou a percepção da injustiça que se cometia em Timor-Leste e permitiu fazer chegar o drama a camadas cada vez mais amplas da opinião pública mundial.
Os esforços de dois sucessivos Secretários Gerais (Pérez de Cuéllar e Boutros Boutros-Ghali) no sentido de encontrar um entendimento entre Portugal e a Indonésia tiveram alcance limitado. Algumas hipóteses foram contempladas – como a de considerar as eleições legislativas indonésias de 1987 como uma espécie de referendo, mesmo que elas não incluíssem nenhuma pergunta específica sobre o destino do território –, mas não mereceram a concordância de Portugal; outras iniciativas, como a visita de uma delegação parlamentar portuguesa ao território, estiveram em preparação por vários anos (de 1987 a 1991), mas também não deram frutos. Só em 1997, com a eleição de Kofi Annan como Secretário Geral da ONU, o processo viria a desbloquear-se, depois da nomeação de um intermediário, o diplomata paquistanês Jamsheed Marker, amigo do ministro dos Negócios Estrangeiros indonésio, Ali Alatas, mas também muçulmano, o que contribuía para afastar o espectro de uma “guerra religiosa”. Seria neste contexto que viria então a estabelecer-se o acordo de 5 de Maio de 1999, a que voltaremos adiante.
A situação vivida no território durante o período de ocupação indonésia era de grande repressão. No período de administração transitória da ONU (1999-2002), seria instituída uma Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR), destinada a fazer um levantamento imparcial e internacionalmente supervisionado dos acontecimentos ocorridos entre 25 de Abril de 1974 e 17 de Outubro de 1999. As suas conclusões são devastadoras: a litania de atos de violência compreende detenções ilegais, tortura, violação, escravidão sexual, casamentos forçados, julgamentos injustos, recrutamento e trabalho sob coação, destruição de casas, culturas e gados, e deslocamentos massivos de populações. Mais impressionante é o número de mortes, quer as directamente provocadas por meios bélicos, quer as indirectamente induzidas, com especial incidência nos anos entre 1975 e 1980, quando a Indonésia usou, por exemplo, aviões OV-10 Bronco (fornecidos pelos EUA) para lançar sobre populações indefesas napalm fabricado na Suíça. O número de vítimas foi estimado entre 102 800 e 186 000. No entanto, dado o carácter parcelar das informações objectivas recolhidas, a própria CAVR admitiu que o número real pudesse ultrapassar as 200 mil pessoas que o Comité Internacional da Cruz Vermelha referiu – o que, em termos relativos, poria Timor-Leste a par dos “killing fields” dos Khmer Rouge do Camboja, onde mais de um quarto da população foi chacinada. Autores como Clinton Fernandes (2023) argumentam mesmo que o comportamento da Indonésia deve ser classificado como genocídio.
Além disso, o “desenvolvimento” que os indonésios se gabavam de ter proporcionado, contrastando-o com o marasmo da administração colonial portuguesa, traduziu-se na manutenção de um “estado de neo-subsistência”, em que “um conjunto de variáveis [...] mostra que apesar de elevados níveis de despesa pública, o resultado global da modernização social e económica efectivamente realizada em Timor-Leste foi mínimo” (Nixon 2012: 100). Em 2004, enquanto a República da Indonésia exibia um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) calculado pelo PNUD de 0,692 (111.º país em 177), Timor-Leste não passava de 0,436 (o que punha o território em 158.º lugar, o mais baixo de toda a Ásia). O fosso entre o nível de vida dos ocupantes e o das populações ocupadas era, pois, enorme.
A população timorense resistiu como pôde. Numa primeira fase, como já se disse, a FRETILIN organizou a administração de “bases de apoio”. As forças indonésias montaram as operações “Cerco e Aniquilação” – título sintomático do propósito de eliminação física de um grupo étnico-cultural – e “Cerca de Pernas”, em que se colocavam civis (incluindo mulheres e crianças) em frente a unidades militares que faziam cerco aos resistentes; expostos dessa maneira, muitos civis eram abatidos. Graças a esse tipo de tácticas, os indonésios conseguiram estabelecer controlo efectivo sobre o território. A última base da resistência, no Monte Matebian, caiu em Novembro de 1978, e, a 31 de Dezembro do mesmo ano, o líder timorense Nicolau Lobato foi morto em combate.
Seguiu-se um longo e penoso processo de reorganização, que viria a ser chefiado por Xanana Gusmão e passaria pela consolidação de uma estrutura tripartida. Contava, em primeiro lugar, com uma frente militar, que se encarregou de prosseguir uma guerra de guerrilha em condições particularmente adversas, visto que não dispunha de nenhum país limítrofe onde pudesse estabelecer “santuário”, nem contava com muitas vias para se reforçar em equipamento. Numa segunda frente, diplomática, sobressai o nome de José Ramos-Horta, conduzindo várias campanhas de sensibilização de governos e da opinião pública internacional, em parte apoiado numa extensa rede de organizações de solidariedade ancoradas nas sociedades civis que estruturavam uma “diplomacia cidadã”. Existia, por fim, uma frente clandestina, que por todo o território enquadrava a crescente oposição ao domínio estrangeiro, animando tanto sectores emergentes (como o movimento estudantil, fruto paradoxal do incremento da escolarização) como outros que inicialmente haviam encarado com simpatia a chegada dos indonésios. A resistência, e o seu reforço com o concomitante alargamento da sua base social e política, constituiu a base mais sólida para a continuada campanha pelo reconhecimento do direito à autodeterminação do território. Este alargamento paulatino viria a ter culminação institucional na constituição do Conselho Nacional da Resistência Timorense (CNRT), numa conferência realizada em Peniche em Abril de 1998 em que foi aprovada a sua Magna Carta, na qual se defendia um nacionalismo democrático e pluralista.
A presidência do CNRT foi então atribuída a Xanana Gusmão, detido desde 1992 na prisão de Cipinang, na província de Jacarta. Outros lugares cimeiros couberam a personalidades como José Ramos-Horta ou Mari Alkatiri, que se tinham distinguido desde o início do processo, a par de individualidades que inicialmente haviam colaborado com os indonésios (como Mário Viegas Carrascalão, governador entre 1982 e 1992), ou que eram tidas como próximas da Igreja Católica Timorense. A eleição de 1998 dos corpos dirigentes do CNRT constituiu o culminar de um processo iniciado por volta de 1982.
Naquele ano de 1982, Xanana Gusmão, então líder da FRETILIN (que se afirmava como partido marxista-leninista e havia efetuado purgas internas, entre as quais foi vítima o primeiro presidente da República Democrática de Timor-Leste, Francisco Xavier do Amaral), encontrou-se com o administrador apostólico de Díli, Monsenhor Martinho da Costa Lopes, que em 1977 havia substituído o bispo D. José Joaquim Ribeiro à frente da diocese, quando aquele prelado, vergado pelo peso do erro que havia cometido ao saudar a invasão indonésia, resignou ao cargo. A Igreja Católica havia sido um esteio da administração colonial portuguesa, tendo o próprio D. Martinho sido deputado na Assembleia Nacional, em Lisboa, entre 1957 e 1961. D. José Joaquim referira-se aos paraquedistas indonésios como “anjos vindos do céu para nos libertar”, para mais tarde se dar conta de que eram “piores que os demónios do inferno”. Entretanto, a partir da II Guerra Mundial a Igreja local havia procedido à “timorização” dos seus quadros, fazendo recrutamento local de padres, e por isso acompanhava com proximidade o sofrimento das populações.
O encontro entre Xanana e D. Martinho trouxe uma novidade: o prelado apelou ao guerrilheiro para que “abandonasse o marxismo” e “abraçasse a causa de todos os timorenses”, via que, anos mais tarde, Xanana haveria de seguir, quando em 1987 recusou continuar a liderar a FRETILIN e transformou as FALINTIL (até aí o braço armado do partido) em forças armadas apartidárias, assumindo-se, portanto, como chefe de uma Resistência pluralista. Esse gesto projectou-o como líder nacional e contribuiu para a emergência de um nacionalismo pluralista, com contornos inéditos.
Por sua vez, a Igreja Católica Timorense não perdeu tempo em afirmar a sua autonomia em relação à sua congénere indonésia e mesmo, em certa medida, em relação ao Vaticano, cujas posições tinham uma dose de ambiguidade, alegadamente para não alienar os seus cinco milhões de devotos no grande arquipélago indonésio. Graças a isso, a Igreja Católica Timorense veio a assumir um papel de relevo, não só na colaboração com as estruturas formais da Resistência Timorense, como sobretudo no cimento cultural de uma identidade nacional renovada.
Era este o panorama quando, a 5 de Maio de 1999, sob o alto patrocínio de Kofi Annan, foi assinado em Nova Iorque um acordo entre Portugal e a Indonésia. A crise financeira asiática de 1997 havia feito cair o ditador Suharto, abrindo as portas a um processo de democratização da Indonésia, sob a batuta do anterior vice-presidente, B. J. Habibie. Também os ecos do fim da Guerra Fria se faziam sentir: desaparecida a “ameaça comunista”, a manutenção sob proteção norte-americana de regimes abertamente autoritários vinha sendo cada vez mais posta em causa. O isolamento indonésio só não era maior porque o país continuava a dispor de importantes apoios no seio da ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático), onde a realpolitik de países comunistas – como o Laos e o Vietname – garantia uma estranha unanimidade. O acordo firmado em Nova Iorque em Maio de 1999 previa a realização de uma “consulta popular”, em que se perguntaria aos timorenses se aceitavam ou não dispor de uma “autonomia especial” no seio da República Indonésia. O artigo 6.º do acordo determinava o seguinte:
Se o Secretário-Geral apurar, com base no resultado da consulta popular e em conformidade com o presente acordo, que o enquadramento constitucional para uma autonomia especial proposto não é aceite pelo povo de Timor Leste, o Governo da Indonésia dará todos os passos necessários, em termos constitucionais, para pôr termo ao seu vínculo com Timor Leste, restaurando desse modo, nos termos da lei indonésia, o estatuto detido por Timor Leste antes de 17 de Julho de 1976, e os Governos da Indonésia e de Portugal e o Secretário-Geral acordarão os moldes de uma transferência pacífica e ordeira da autoridade em Timor Leste para as Nações Unidas.
O Secretário-Geral dará início, nos termos de mandato legislativo apropriado desde que disponha de mandato legislativo para esse fim, ao procedimento que irá permitir a Timor Leste iniciar um processo de transição para a independência.
A 30 de Agosto de 1999 teve lugar a “consulta popular” prevista. Organizado sob a égide da ONU e da sua UNAMET (United Nations Mission in East Timor, criada pela Resolução 1246, de 11 de Junho), precedido de um amplo recenseamento que garantisse um verdadeiro sufrágio universal de adultos e que resultou no registo – em Timor-Leste e na diáspora – de um total de 446 953 indivíduos, este referendo contou com uma elevada participação cívica: 96,4% de votantes. O resultado foi anunciado em Nova Iorque, a 4 de Setembro, pelo Secretário Geral Kofi Annan: 94 338 votos (21,5%) a favor do estatuto de “autonomia alargada” no seio da República Indonésia, e 344 580 (78,5%) contra essa proposta. Dificilmente um resultado poderia ser mais expressivo.
As autoridades de Jacarta foram apanhadas de surpresa. O seu aparelho administrativo, essencialmente repressivo, não tinha sido capaz de interpretar cabalmente o sentimento de repúdio que grassava em Timor-Leste. Nas suas memórias, Ali Alatas revelou que, no momento da assinatura do acordo, no círculo mais próximo de Suharto se acreditava que o resultado seria amplamente favorável à proposta de “autonomia alargada”, numa ordem de 80% para 20%. Com o avançar dos dias, essa margem haveria de encolher perante a evidência do seu irrealismo, para se situar na ideia de uma vitória pouco mais do que tangencial: 55% para 45%. Ainda assim, o espectro da derrota não parecia ser encarado (Alatas 2006: 211).
Porém, no comando militar havia quem se tivesse precavido, incitando partidários da integração a formar milícias, que foram apoiadas politicamente no decurso da campanha eleitoral, e ainda treinadas e armadas para eventuais ações violentas. Logo que o resultado foi anunciado, desencadeou-se uma onda de ataques que em duas semanas – apelidadas de “Setembro Negro” – provocaram mais de duas mil mortes, com a destruição de cerca de três quartos das infraestruturas físicas (desde edifícios da administração pública a pontes, passando pelo sistema de distribuição de energia eléctrica), resultando na fuga de cerca de 200 mil pessoas para a metade ocidental da ilha e o abandono dos seus postos pela esmagadora maioria dos quadros administrativos (muitos deles indonésios). O embaixador britânico na ONU, Sir Jeremy Greenstock, que visitou Díli em meados de Setembro daquele ano, declarou que “o inferno desceu à Terra”.
Xanana Gusmão foi finalmente libertado da prisão domiciliária e usou o seu imenso prestígio para reclamar do grupo de guerrilheiros das FALINTIL – então com cerca de 1500 homens, chefiados por Taur Matan Ruak, acantonados em quatro campos, incluindo no quartel general de Uaimori, no centro do país – que não ripostassem: fazê-lo poderia dar pretexto para se apresentar o caso como uma nova guerra civil, quando na realidade apenas uma parte estava em clara violação dos compromissos assumidos em Nova Iorque. Foi um preço elevado o que Xanana pagou para manter de pé o caminho da independência.
Perante o descalabro, que parecia escapar mesmo ao círculo próximo do presidente B. J. Habibie, o Conselho de Segurança da ONU aprovou, pela Resolução 1264, de 15 de Setembro, a constituição de uma força multinacional – a INTERFET (International Force for East Timor) – com o intuito de restabelecer um módico de tranquilidade no território. A Austrália forneceu o comandante (general Peter Cosgrove) bem como o grosso dos efetivos para esta força, que começou a chegar a Díli a 20 de Setembro.
Reposta a segurança, o parlamento indonésio foi chamado a cumprir o que estava estipulado, e a 17 de Outubro aprovou uma deliberação que dava cumprimento ao acordo. Ainda assim, a margem de vitória na votação parlamentar foi curta: 355 contra 322 deputados. Desaparecia Timor-Timur (Tim-Tim), 27.ª província da República Indonésia, e surgia um “território não autónomo”, formalmente ainda sob administração portuguesa, mas de facto diretamente tutelado pelo Conselho de Segurança da ONU. Rapidamente este órgão estabeleceu uma nova missão, a UNTAET (United Nations Transitional Administration for East Timor), criada pela Resolução 1272, de 25 de Outubro. Daí em diante, seria a ONU, através da articulação entre o Conselho de Segurança e a UNTAET, a pilotar o processo (MacQueen 2015; Pereira & Feijó 2023, cap. 13).
A missão da UNTAET – “preparar Timor-Leste para o autogoverno” – terá sido a de maior fôlego que a ONU desenhou até então (Tansey 2009). Esse propósito compreendia dois aspectos críticos: (re)construir as bases da administração pública, que colapsara no “Setembro Negro”, e dotá-la de princípios compatíveis com a construção de um estado de direito democrático. Para a ONU, chamuscada pelas sucessivas crises internacionais da década de 1990 (Ruanda, Balcãs) que haviam custado a Boutros-Ghali a reeleição, e ainda a braços com uma situação complicada no Kosovo, o tempo era de montar uma “missão exemplar” que resgatasse o seu prestígio. Não poupou esforços, desde logo nos recursos disponibilizados: a UNTAET teve orçamentos anuais superiores a 500 milhões de dólares (mais do que Timor-Leste viria a dispor nos seus orçamentos de estado dos primeiros anos pós-independência) e um significativo quadro de pessoal, tanto civil (2700) quanto militar (9150) e policial (1640) – cerca de seis vezes mais gente do que em 1974 havia de colonos e administradores coloniais (ao todo, cerca de 300) e militares. À frente da missão, foi colocado, como Representante Especial do Secretário Geral (RESG), um experiente diplomata e funcionário superior da ONU, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que combinava sob a sua alçada a totalidade dos poderes – executivo, legislativo e judicial. Haveria de ser comparado a um monarca pré-constitucional e o paradoxal modelo montado para o efeito descrito como “autocracia” (Chestermann 2004), “despotismo” (Beauvais 2001) ou “ditadura” (Powell 2008), embora de cariz benévolo. Não escapou aos observadores que afluíam a Díli a contradição de procurar criar as bases funcionais de uma democracia por métodos que em tudo lhe eram antitéticos.
O desenho político da missão coube, em primeira linha, ao Departamento de Operações de Manutenção da Paz da ONU (DPKO, na sigla em inglês), e não ao Departamento de Assuntos Políticos (DPA), que ao longo de décadas havia acompanhado o processo. Aplicou-se uma fórmula testada em contextos diversos: as partes “beligerantes” deviam ser tratadas como iguais (desvalorizando o facto de um referendo internacionalmente sancionado ter ditado uma inequívoca vitória de uma delas) e colocadas em plano de entidades consultivas. Vieira de Mello cedo se deu conta da crescente frustração da liderança timorense perante este cenário, e convenceu a sede a flexibilizar os termos de referência. Primeiro, retirou a designação “consultivo” do nome do conselho que reunia representantes de todas as forças sociais e políticas; em seguida, admitiu timorenses no governo de transição. As pressões locais para acelerar o processo de independência – que chegou a estar previsto para um horizonte de cinco a dez anos – foram-se intensificando. Um ponto de equilíbrio foi encontrado no início de 2001, com a proposta de elaborar a Constituição do futuro estado. Mais uma vez, uma imposição externa – sobretudo associada a Peter Galbraith, representante da ONU no governo de transição – conduziu a um processo acelerado de formalização de partidos políticos, algo que líderes como Xanana Gusmão ou Ramos-Horta tentavam evitar, por temerem o regresso dos fantasmas de 1975; em vez disso, teriam preferindo soluções baseadas no consenso, como as que presidiam ao funcionamento do CNRT. Foi também por imposição da ONU que, exatamente dois anos passados sobre a data do referendo, se realizou uma “eleição especial”. O governo de transição foi remodelado, para melhor reflectir a nova correlação entre as várias forças, e a Assembleia eleita pôde elaborar a Constituição da República Democrática de Timor-Leste, mesmo que para isso não tivesse podido contar com importantes líderes que recusaram o modus operandi e, em particular, os termos propostos para a sua eleição. O texto final mereceu o voto favorável de mais de dois terços dos deputados (condição necessária para a sua aprovação) apesar da maioria dos (pequenos) partidos com assento na Assembleia ter votado contra. O calendário foi então acelerado, o que na sede da ONU não suscitou objeções, dado o volume de recursos afetos a esta missão. A declaração de “restauração de independência” (tal como a Assembleia definiu o acto) ficou marcada para 20 de Maio de 2002. Entretanto, a Assembleia deliberou por maioria – e com grande contestação dentro e fora de portas – transformar-se na primeira legislatura do Parlamento Nacional, estabelecendo para si própria um mandato de cinco anos, e foram organizadas eleições presidenciais. Rotuladas de “eleições da amizade” (Smith 2004), dadas as relações cordiais entre os dois candidatos (Xanana Gusmão, líder da Resistência, e Francisco Xavier do Amaral, presidente da efémera República a partir de 29 de Novembro de 1975), estas eleições saldaram-se por uma retumbante vitória do primeiro, com 83,7% dos votos. Para resguardar o seu estatuto de personalidade independente, Xanana fez questão de não se apresentar sob a bandeira de nenhum dos partidos até então formados, embora tenha aceitado o apoio que muitos deles lhe manifestaram; por seu lado, a FRETILIN, partido maioritário no parlamento, deu liberdade de voto aos seus simpatizantes.
À meia-noite de 20 de Maio de 2002, na localidade de Tasi Tolu, nos arredores de Díli, uma enorme multidão assistiu ao hastear da bandeira, ao hino nacional e à tomada de posse de Xanana Gusmão como Presidente da República. O acto foi testemunhado por Kofi Annan, pelo presidente português, Jorge Sampaio (acompanhado de diversas personalidades de relevo associadas à “questão de Timor”), pela presidente indonésia, Megawati Sukarnoputri, pelo primeiro-ministro australiano, John Howard, pelo ex-presidente americano Bill Clinton e por um representante especial do Papa João Paulo II.
Chegava ao fim um tardio, longo e penoso processo de autodeterminação, com vários traços originais, quer no contexto da descolonização portuguesa, quer no processo político mundial. Meses mais tarde, em inícios de Setembro, a Assembleia Geral das Nações Unidas votaria por unanimidade acolher a República Democrática de Timor-Leste como seu 191.º membro de pleno direito, sinalizando a aceitação internacional e sem reservas da solução encontrada pelo próprio povo de Timor-Leste.
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Primeira Proclamação da Independência de Timor-Leste (1975)
Seguindo os preceitos definidos na Conferência de Berlim, que haveriam de moldar as relações entre a Europa e as suas dependências até à segunda metade do século XX, o Terceiro Império colonial português foi um complexo histórico-geográfico centrado em África, com um lugar marginal – embora simbolicamente poderoso – reservado às possessões asiáticas. Quando a Revolução dos Cravos colocou na ordem do dia o processo de descolonização – o mais tardio entre as potências europeias – já a União Indiana havia resolvido de facto a questão do “Estado Português da Índia”, situação prontamente reconhecida ainda em 1974, e a República Popular da China, que desde 1966 detinha um controle informal mas substancial sobre Macau, havia diligenciado junto da ONU para retirar esse território da lista de entidades “não autónomas sob administração portuguesa” (Resolução 1542 (XV) da Assembleia Geral, Dezembro 1960) e fazer o seu registo como “território chinês sob administração portuguesa”, situação singular a requerer solução diferenciada. Da lista de territórios asiáticos a descolonizar por Portugal, restava Timor.
Reocupado pela potência colonial europeia quando o fim da Guerra do Pacífico ditou a retirada do Japão, e apesar da afirmação do Ministro das Colónias Marcello Caetano que Portugal voltava como “amigo rico”, o “Timor Português” não participou no processo de “desenvolvimento repressivo” (Bandeira Jerónimo 2023) que, no pós-II Guerra Mundial, tocou Angola e Moçambique. Em 1974, continuava a ser “uma colónia sem colonos”, como lhe chamara, na década de 1930, o capitão Armando Pinto Corrêa, então administrador do território.
Tal como os outros dois domínios asiáticos portugueses, Timor era um pequeno território – 15 mil km2, com pouco mais de meio milhão de habitantes – rodeado por um enorme vizinho. A Indonésia é uma potência regional composta por um vasto arquipélago, com cerca de 17 mil ilhas e, na altura, mais de 150 milhões de habitantes, que tinha além disso ambições territoriais associadas a uma retórica anticolonial. Timor apresentava outro significativo contraste com as colónias africanas: à data da revolução portuguesa, não possuía nenhum movimento nacionalista significativo (a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas nunca teve um membro timorense), nem era palco de guerra. A articulação entre as entidades que integravam a CONCP e actores fortes, quer da então Oposição Democrática portuguesa, quer da arena internacional, estava também ausente no caso que estamos a tratar, com excepção da relação que viria a desenvolver-se, alguns meses mais tarde, entre a Indonésia e movimentos locais. Por isso, o processo de autodeterminação do “Timor Português” não recebeu honras de prioridade, tardando a definir os seus contornos.
Quem não demorou em se manifestar foi a Indonésia. Ainda antes de o general Spínola tomar posse como Presidente da República, e da nomeação do I Governo Provisório do pós-25 de Abril, desembarcou em Lisboa um diplomata e político de primeira linha (Franciscus Xaverius “Frans” Seda) com uma mensagem de Suharto. A Indonésia felicitava Portugal pela decisão de encetar a descolonização, e admitia duas soluções para o caso do “Timor Português”: ou a continuação da soberania portuguesa num novo quadro institucional, ou a integração dessa colónia na nação vizinha. Argumentando com “necessidades de segurança”, afastava a hipótese da independência. Esta não era uma posição consensual entre a elite de Jacarta, uma vez que algumas personalidades defendiam um alinhamento estratégico com a agenda descolonizadora do Movimento dos Não Alinhados, cuja origem remonta à Conferência de Bandung em 1955, iniciativa estruturante do posicionamento indonésio. Segundo estas vozes, tal alinhamento poderia sair debilitado caso a solução encontrada para Timor não fosse clara, ou derivasse do uso da força. O então Ministro dos Negócios Estrangeiros indonésio, Adam Malik, dirigiu em Junho de 1974 uma carta ao timorense José Ramos-Horta em que afirmava reconhecer a todos os povos o direito à independência, não havendo razões para excluir Timor desse direito. Sabemos hoje que as várias facções do poder político e militar em Jacarta foram jogando as suas cartas, incluindo o lançamento de uma operação secreta de desestabilização (Operasi Komodo), sob o comando de Ali Murtopo, general próximo do presidente Suharto e membro do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, influente think tank com uma forte componente de católicos indonésios. Suharto reservou para si a arbitragem dessas manobras. até se decidir por uma das partes e lançar a Operasi Seroja, que levaria à intervenção militar (Durand & Dovert 2016). A Indonésia apareceu, pois, desde o início, como um elemento crítico na descolonização de Timor, exigindo a Portugal a definição de uma resposta à sua posição, suportada num poderio militar tão forte que era impossível tanto de ignorar como de enfrentar.
Em Timor, o mês de Maio de 1974 viu nascer três organizações, cada uma delas representando uma versão distinta do nacionalismo político. A União Democrática Timorense (UDT) começou por defender a manutenção do território num quadro de autonomia no seio de um Portugal federal, fazendo eco da posição veiculada por Spínola em Portugal e o Futuro. Depois da derrota desta tese, com a demissão do Presidente da República português, a UDT inclinou-se para uma independência a prazo, vindo mais tarde, em Agosto de 1975, a abraçar a defesa da integração na Indonésia. Essa era, desde o início, a linha estratégica da Associação Popular Democrática de Timor (APODETI), formada em finais de Maio de 1974. Portugal garantiu a legitimidade deste movimento, a possibilidade de ser apoiado abertamente pela Indonésia, e condições de expressão do seu ideário idênticas aos demais. Em 20 de Maio de 1974 surge também a Associação Social-Democrática Timorense (ASDT), que defendia uma independência negociada. Em Setembro, este grupo viria a redenominar-se Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN), radicalizando a sua linha política, sob a influência do retorno de Lisboa de um grupo de estudantes ligados à extrema-esquerda. O quadro das forças políticas sofreria ainda alguns ajustes, com o nascimento do Partido Trabalhista, do “monárquico” KOTA e de um efémero grupo que era partidário da integração na Austrália (prontamente desautorizado por todo o espectro político desse país). As três primeiras forças corporizavam as principais opções estratégicas alternativas. Qualquer uma delas apresentava uma solução compatível com o quadro desenhado pela ONU para a descolonização, nomeadamente pela Resolução 1541(XV) da AG (Dezembro de 1960).
Contrariamente ao que se passava nas colónias africanas, onde havia uma quase perfeita coincidência entre nacionalismo e independentismo, a situação em Timor assemelhava-se à dos outros territórios portugueses na Ásia, onde a restauração de uma alegada unidade pré-colonial, por via da integração em nações que haviam sacudido o jugo colonial (Índia) ou realizado uma revolução anticapitalista e antiocidental (China), apresentava credenciais nacionalistas e anticoloniais.
Como já se disse, Portugal tardou em definir um quadro de referência para a situação de Timor. Em princípio, a Lei 7/74, que definiu os contornos da descolonização, deveria aplicar-se também a esse território. Mas sucederam-se declarações de responsáveis políticos que colocavam o processo em termos específicos, que ora o dilatavam no tempo, ora assumiam que ele deveria seguir uma via própria. Em Outubro de 1974, depois de proferir declarações em Lisboa sobre a inviabilidade a curto prazo da independência de Timor, mas sublinhando também o encargo resultante para Portugal de manter aquela colónia – que impactaram negativamente na opinião das associações políticas timorenses –, Almeida Santos deslocou-se a Timor e constatou ser impossível travar o processo de descolonização em pé de igualdade com as restantes colónias. Em Novembro, o coronel Mário Lemos Pires foi nomeado novo governador e encarregado de diligenciar, junto das forças políticas mais implantadas no terreno, os termos de um roteiro para a descolonização. Seguiram-se intensas conversações entre Díli e Lisboa, de que a parte portuguesa dava também conta a delegações indonésias. A Indonésia insistia no que pode ser chamado de “descolonização sem autodeterminação”, isto é, numa negociação directa com Portugal, com exclusão de qualquer consulta ou envolvimento dos timorenses. Embora mostrando abertura para a continuação dos contactos, Portugal ripostou insistindo que a última palavra teria de ser dada às populações locais.
Na sequência de diversas iniciativas de contacto e diálogo com a UDT, a APODETI e a FRETILIN, que ocuparam boa parte da primeira metade de 1975 e nas quais se trabalhou num roteiro desenhado por Almeida Santos, Portugal convocou a Cimeira de Macau (realizada a 25 e 26 de Junho), com o intuito de levar essas três entidades a assinar um acordo global de descolonização. A UDT e a APODETI compareceram, discutiram, obtiveram resposta a pequenos ajustes que propuseram, e assinaram uma declaração de concordância; a FRETILIN decidiu não comparecer, sem, porém, mostrar, em momento algum, uma atitude de antagonismo em relação à solução que estava em cima da mesa. Neste quadro, Portugal promulgou a Lei de Descolonização de Timor (Lei 7/75, de 17 de Julho), que previa a constituição de uma autoridade transitória, composta por um Alto-Comissário coadjuvado por dois secretários portugueses e por um representante de cada movimento nacionalista. Previa-se também que fosse formada, no terceiro domingo de Outubro de 1976, uma Assembleia Constituinte, “por meio de eleição directa, secreta e universal com inteiro acatamento dos princípios inscritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem”, estabelecendo-se o compromisso de acatar a deliberação dessa Assembleia, que disporia de um prazo de dois anos para concluir os seus trabalhos. Trata-se de uma solução parecida com a que fora desenhada para Cabo Verde e para São Tomé e Príncipe, desta feita alargada aos três movimentos que Portugal reconhecia como legítimos representantes do povo timorense (na senda do que sucedia em Angola com o MPLA, a FNLA e a UNITA, todos subscritores dos Acordos de Alvor), mas com prazos mais alargados.
O tempo e as manobras desestabilizadoras de sectores relevantes da elite indonésia viriam a conspirar contra esta solução, que tinha como ponto forte seguir o estipulado nas resoluções relevantes da ONU e nas proclamações dos respetivos comités dedicados ao tema. Não dispondo de capacidade bélica para se opor a eventuais tentativas indonésias de subverter o processo, restava a Portugal desenhar uma solução com base no direito internacional. Qualquer tentativa indonésia para interferir ou desvirtuar o sentido imprimido por este modelo deveria conduzir esse país ao isolamento diplomático – como Portugal experimentara durante duas décadas – e ao seu enfraquecimento junto dos parceiros de luta anticolonial.
No entanto, na noite de 10 para 11 de Agosto de 1975, em Díli, tudo se precipitou. A UDT levou a cabo um golpe de estado, sob o nome de Movimento Anti-Comunista (na tentativa de articular sectores que escapavam ao seu controlo direto), e denunciou o quadro desenhado pela Lei 7/75. O objectivo do golpe era confuso, mas foi o suficiente para quebrar o quadro de referência em vigor. O governador, não querendo antagonizar o movimento político que entendia ter melhores relações com Portugal, optou por não ripostar, mesmo se dispunha de força suficiente (cerca de 70 paraquedistas) para o fazer; em vez disso, procurou – sem êxito – a interlocução. Perante a ameaça a que ficou submetida, a FRETILIN proclamou uma “insurreição popular” e, apoiando-se num número elevado de militares timorenses do exército português, constituiu, a 20 de Agosto, as Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste (FALINTIL). Começou assim uma breve, mas sangrenta guerra civil, e com ela o espectro de que a solução militar pudesse vir a sobrepor-se aos esforços para encontrar uma saída política para a descolonização do território.
Esse espectro tinha outra face: uma intervenção indonésia, a pretexto da inexistência de condições mínimas de estabilidade e segurança. Sem forças militares em número suficiente para o impedir, Portugal procurou a via diplomática. O Presidente da República, Costa Gomes, encarregou Almeida Santos de diligências em Nova Iorque, Jacarta, Camberra e Ataúro, um ilhéu próximo de Díli onde o governador português de Timor se refugiara. A hipótese de constituir uma força internacional de interposição, sob comando da ONU, com uma missão humanitária e transitória, não recebeu à época o apoio de ninguém.
No início de Setembro de 1975, a guerra terminou, com a vitória da FRETILIN, que passou a dominar o território, com excepção da fronteira oeste, onde prosseguiam escaramuças com os indonésios. Portugal lançou sucessivos e veementes apelos a novas negociações, no quadro da Lei 7/75, que admitia poder ser pontualmente revista.
De Díli, a FRETILIN reivindicava o regresso do governador (para responder aos argumentos indonésios de que Portugal havia abandonado as suas responsabilidades), mas exigia ser reconhecida como “único e legítimo representante” do povo timorense, não autorizando a presença da UDT ou da APODETI, que Portugal continuava a ver como movimentos com legítimas pretensões a participar no processo previsto pela Lei 7/75. Para a FRETILIN, o único ponto a discutir com Portugal era a negociação – bilateral – da “independência total e imediata”. Tirando uma hesitação, ao tempo do V Governo Provisório, quando se encarou tal hipótese (argumentando que o cenário da descolonização africana parecia ter-se imposto também em Timor), as autoridades portuguesas recusaram-se sempre a aceitar tais exigências, certas de que tal redundaria, inevitavelmente, numa intervenção indonésia, sem que o direito internacional desse cobertura à posição de Timor-Leste.
O outono europeu assistiu ao arrastar de infrutíferas tentativas de marcar rondas de negociação com os três movimentos, admitindo-se que pudessem acontecer em separado. No início de Novembro, Melo Antunes reúne em Roma, pela última vez, com o seu homólogo indonésio Adam Malik, sem que o encontro resultasse em qualquer avanço, para além da reafirmação de posições já conhecidas. Num último esforço, o Ministro dos Negócios Estrangeiros português vai ainda a Nova Iorque discursar na ONU, apelando ao retomar de conversações com os nacionalistas timorenses.
No dia 28 de Novembro, a FRETILIN proclama unilateralmente a independência da República Democrática de Timor-Leste. Portugal recusa-se a reconhecer o fait accompli. Praticamente nenhum país reconhece a nova república – facto curioso, que sinaliza o relativo isolamento deste caso em relação ao confronto entre blocos antagónicos a que chamamos Guerra Fria. Mas a Indonésia reage como esperado: a 7 de Dezembro, lança um ataque com forças aerotransportadas, meios anfíbios e corpos terrestres. É apoiada internacionalmente pelos EUA (Simpson 2005), pela Austrália (Job 2021) e por vários vizinhos da ASEAN, sem que o campo oposto seja capaz de mobilizar qualquer contestação. Como disse José Ramos-Horta (1996) na sua alocução por ocasião da atribuição do Prémio Nobel da Paz, Timor-Leste não passou de uma nota de rodapé na saga da Guerra Fria.
Gabando-se de que iriam tomar o pequeno-almoço em Batugadé (na fronteira oeste), almoçar em Díli e jantar em Lospalos (na ponta leste), os indonésios viriam, no entanto, a enganar-se: a ocupação demorou muito mais tempo do que o previsto, enfrentando uma tenaz oposição popular.
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Que se Lixe a Troika
O movimento Que se Lixe a Troika (QSLT) surgiu em Portugal no verão de 2012, num contexto marcado pelo maior nível de contestação verificado em Portugal desde os anos da revolução de Abril. Tal mobilização insere-se num quadro internacional marcado pela Grande Recessão e pela crise da Zona Euro, em que movimentos de protesto contestaram as políticas de austeridade e suas consequências sociais, políticas e económicas no sul da Europa. Tais políticas seguiam os ditames de redução da despesa estatal e liberalização do Estado Providência, privatizações e desregulação do mercado de trabalho. Em Portugal, essas políticas foram iniciadas em 2010 pelo então governo do Partido Socialista (PS, de centro-esquerda), por pressão dos mercados financeiros e da União Europeia, e prosseguidas pelo governo de coligação entre o Partido Social Democrata e o Centro Democrático Social (PSD e CDS/PP, de centro-direita) a partir de meados de 2011, já com monitorização da Troika formada pelo Banco Central Europeu, pela Comissão Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional.
O QSLT foi criado na sequência da mobilização anti-austeridade e da interação entre diferentes atores que se iniciou em meados de 2010. As primeiras reações foram lideradas por sindicatos através de greves gerais (em março e em novembro de 2010), seguidas em 2011 por movimentos como a “Geração à Rasca” (GàR, em março), a Acampada do Rossio (em maio) e a manifestação de 15 de outubro (15O), iniciativas que acompanhavam processos semelhantes a nível global. O GàR foi uma das primeiras mobilizações europeias na sequência da Primavera Árabe, tendo inspirado o protesto de 15 de maio (15M) em Madrid; em contrapartida, a Acampada de Lisboa replicou os eventos na capital espanhola, enquanto as manifestações de outubro se inseriram numa mobilização europeia destinada a assinalar os seis meses do 15M espanhol.
Após estas mobilizações, a unidade em torno do 15O desfaz-se. Com o início do ano de 2012 marcado por fraca mobilização, os sindicatos assumem protagonismo renovado através de novas greves gerais. Dado este retraimento, no verão, vários dos grupos que tinham deixado o 15O iniciam a preparação do QSLT. Agendada para 12 de setembro, a primeira manifestação promovida pelo QSLT foi impulsionada pelo anúncio de novas medidas de austeridade pelo então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, nomeadamente o aumento da contribuição dos trabalhadores para a taxa social única, que era acompanhado da sua diminuição por parte dos empregadores. Acirradas as tensões políticas e sociais, as estimativas apontaram para um milhão de pessoas na rua, em todo o país.
Com base numa análise das anteriores mobilizações, o QSLT procurou redefinir a sua oposição à austeridade. Por um lado, procurou maior politização da sua mensagem; por outro, estruturou-se numa forma de organização mais fechada, de modo a garantir uma direção sólida e a evitar conflitos entre grupos (Carvalho 2022). A sua ação dava-se em tabuleiros distintos: em relação a anteriores grupos, tinha maior proximidade com partidos e sindicatos, assim como com o município de Lisboa (Accornero e Ramos Pinto 2020); ao mesmo tempo, mantinha uma atividade típica de um movimento social.
O nome adotado tinha como objetivo exprimir a divisão política entre os que assinaram o Memorando de Entendimento com a Troika (PS, PSD e CDS/PP), e que como tal subscreviam as medidas de austeridade, e os que se situavam no campo oposto. Estabelecia-se, assim, não só uma linha de demarcação ideológica e política, mas também social, que afirmaria na rua a rejeição de tais políticas. Contudo, apesar do contexto de crise internacional e da condicionalidade imposta pela Troika, o QSLT não se opunha de forma clara à União Europeia, antes apontando o dedo aos responsáveis nacionais pelas políticas implementadas. Assim, um dos seus slogans era o de “governo para a rua”: alegava-se a falta de legitimidade de um programa que não tinha sido votado nas eleições de 2011 (Accornero e Kousis 2023; Carvalho 2022).
Ainda assim, o QSLT procurou inserir as suas atividades no contexto das lutas internacionais. Por exemplo, havia contactos próximos com Espanha, via internet, bem como visitas e contactos pessoais (Baumgarten e Díez García 2017). Procurou-se também replicar formas de organização de sucesso em Espanha: na manifestação de 2 de março (também com cerca de 1 milhão de pessoas), organizaram-se “marés” que se focavam na defesa de interesses e direitos sectoriais, tais como a saúde e educação. Porém, estas não chegaram a implantar-se com o mesmo sucesso que tinham obtido em Espanha. Outro exemplo foi a manifestação de junho de 2013: apesar de gerar menor participação em Portugal, ela tinha como lema “Povos Unidos contra a Troika”, integrando um esforço concertado em mais de 100 cidades da Europa.
A linguagem e os símbolos do QSLT alicerçavam-se numa defesa dos direitos sociais enquanto herança do 25 de Abril, num contexto em que a austeridade os punha em causa. Para isso, o legado da Revolução foi reinterpretado (Baumgarten 2017). O exemplo mais claro disso é o da canção Grândola, Vila Morena: nos estandartes do QSLT, era habitual a inscrição “O povo é quem mais ordena”, da canção de Zeca Afonso, pela sua evocação dos princípios de igualdade e justiça associados ao 25 de Abril. Com a preparação do protesto de março de 2013, esta canção foi várias vezes utilizada para interromper ministros em eventos públicos.
É importante notar que, dada a defesa da herança do regime instituído no período revolucionário, este grupo não contestava o regime em si mesmo, mas antes os atores que, no poder, pretendiam desfazer esse legado. Neste sentido, nunca se deu uma crítica ao regime, ou reivindicações de renovação democrática, mas antes a defesa do legado do período revolucionário. Este cenário é distinto do verificado, por exemplo, em Espanha, que também implementou medidas de austeridade fortemente contestadas. Em Espanha, a transição pactuada entre as elites partidárias foi criticada pelo seu alcance limitado, que não teria permitido uma rutura completa com o passado ditatorial, o que teria tido consequências para o funcionamento da democracia (Accornero 2015). Este discurso enquadrava-se numa crítica transversal, que reclamava uma renovação democrática e maior inclusão cidadã. Em Portugal, pelo contrário, a memória da transição é positiva, sendo vista como um legado a defender e a aprofundar. Neste sentido, a democracia concretiza-se através dos direitos estabelecidos durante aquele período.
O QSLT foi responsável por uma das maiores mobilizações de protesto desde os anos de Abril, colocando sob pressão o governo e as instituições políticas portuguesas. Em Portugal, deixou uma herança particularmente importante no imaginário dos movimentos sociais nos anos seguintes, reforçando um ideário de defesa dos direitos sociais inscritos na Constituição.
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Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do Movimento das Forças Armadas
As Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do Movimento das Forças Armadas (MFA) foram uma das iniciativas mais singulares que ocorreram na conjuntura revolucionária do 25 de Abril de 1974. Foram organizadas pela Comissão Dinamizadora Central (CODICE), estrutura da 5.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA), em colaboração com alguns organismos do Estado, nomeadamente a Direcção-Geral da Cultura Popular e Espectáculos, aliando diferentes sectores da sociedade portuguesa em torno de um novo projecto político.
A sua formalização ocorreu no dia 25 de Outubro de 1974, através de uma conferência de imprensa realizada no Palácio Foz, em Lisboa, no âmbito da qual foi apresentado o Programa de Dinamização Cultural e Esclarecimento Político, documento que clarificou os principais objectivos: “preencher o vácuo cultural e de informação política existente em todo o país, com maior incidência em certas zonas” (Correia et al. s/d: 21); a “luta anti-fascista”; o “esclarecimento do Programa do MFA”; e a criação de uma abrangente “rede cultural” em todo o país, através de uma descentralização cultural. Deste modo, a dinamização cultural tornou evidente a viragem cultural da como demonstraram Fishman & Lizardo (2013), no âmbito do processo mais vasto de aprendizagem da prática democrática (Fishman 2019).
As Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do MFA resultaram de uma pluralidade de experiências individuais e colectivas, que configuraram diferentes modelos inspiradores (ver Almeida 2019). Foram reformuladas ao longo da sua vigência, de acordo com o conhecimento das realidades que procuraram transformar, e em função também do rumo da revolução. As campanhas não apenas reflectiram a experiência da Guerra Colonial, especialmente da acção psico-social realizada pelos militares portugueses, mas também foram inspiradas por modelos internacionais, que incluíram desde os projetos pedagógicos de Paulo Freire até à experiência da revolução cubana, em particular as brigadas de alfabetização e os Comités de Defesa da Revolução (Sánchez Cervelló 1996: 263-264).
Prevendo o Programa de Dinamização Cultural e Esclarecimento Político uma actuação em todo o território, através do trabalho de equipas constituídas por militares e civis, as Campanhas actuaram privilegiadamente nas zonas rurais do norte e centro de Portugal. No entanto, desde o início, foi perceptível uma preocupação transnacional reflectida na deslocação de equipas para os países de acolhimento da emigração portuguesa na Europa (França, Alemanha, Bélgica Luxemburgo, Holanda, Inglaterra e Suíça), colaborando a CODICE, em alguns casos, com a Secretaria de Estado da Emigração.
De acordo com o Livro Branco da 5ª Divisão 1974-1975 (1984), entre 1974 e 1975 foi realizado um total de 10 mil sessões de esclarecimento. As Campanhas percorreram as populações rurais do interior norte e centro, intervindo em campos tão diversificados como o das infra-estruturas, da medicina, da veterinária, da agricultura ou do desporto. Foram construídos acessos, edificados recintos desportivos, promoveu-se o saneamento básico e a electrificação, e prestaram-se consultas médicas gratuitas. A par destas acções, a dinamização cultural integrou áreas como o teatro, as artes plásticas, o cinema, a dança, a música e o circo, coordenadas pelo sector cultural da CODICE. Neste âmbito, as áreas do teatro e das artes visuais tiveram uma actividade muito expressiva. Para os artistas que aderiram à proposta do MFA, as Campanhas foram um laboratório para a experimentação de novas relações com os públicos, contrariando uma arte apartada do real (Almeida, 2024).
Até 11 de Março de 1975, a Dinamização Cultural obedeceu a um modelo itinerante, em que as equipas procediam ao diagnóstico das principais necessidades das populações. O modo privilegiado de actuação eram sessões de esclarecimento que integravam a representação de uma peça de teatro, um concerto, ou a projecção de um filme. Neste modelo itinerante, foram realizadas as acções no distrito da Guarda (de 25 de Novembro de 1974 a 7 de Dezembro de 1974) e nas regiões de Bragança, Vila Real, Lamego e Viseu, numa campanha que assumiu a designação de “Operação Nortada” (de 6 de Janeiro de 1975 a 21 de Janeiro de 1975).
No mês de Janeiro de 1975 têm início duas outras campanhas: a primeira, entre 24 de Janeiro e 2 de Fevereiro, tem como destino o distrito de Castelo Branco; a segunda, denominada “Operação Verdade”, foi realizada no Alto Minho, de 31 de Janeiro a 9 de Fevereiro. Durante o mês de Fevereiro, a CODICE e as suas estruturas regionais e distritais continuam a promover sessões de esclarecimento em todo o país, nas quais se destacam a “Operação Alvorada”, nos concelhos de Ponte de Lima, Caminha, Vila Nova de Cerveira e Paredes de Coura, e a “Operação Povo Culto”, nos concelhos de Tavira, Castro Marim e Alcoutim.
No primeiro dia de Março de 1975, inicia-se a “Acção Atlântida”, no arquipélago dos Açores. Com duração prevista até dia 17, viria a ser suspensa devido aos acontecimentos do 11 de Março. A última campanha a ser realizada sob égide do modelo itinerante foi a “Operação Cávado”, que se propôs percorrer o concelho de Barcelos entre os dias 10 e 16 de Março.
A partir da “Operação Nortada”, o modelo itinerante e a tipologia de actuação são reavaliados. O 11 de Março de 1975 viria a desencadear a reestruturação das Campanhas de Dinamização Cultural, às quais é acrescentada uma nova dimensão: a Acção Cívica. No testemunho e na análise de Correia et al. (s/d), esta nova etapa baseia-se na experiência das acções anteriores, fazendo-se agora a apologia das campanhas de longa permanência, caracterizadas pela fixação de meios técnicos e culturais, dotando-se a CODICE de mais valências, que ampliam e fortalecem o seu campo de intervenção (ver Almeida 2009).
As campanhas realizadas sob a égide da “acção cívica” desenvolveram-se em várias fases, permanecendo no terreno por períodos mais prolongados. Por exemplo, a acção realizada no distrito de Viseu estará em curso durante um ano (de 20 de Março de 1975 até ao primeiro trimestre de 1976). A campanha “Maio-Nordeste”, realizada no distrito de Bragança, decorrerá durante cinco meses (tem início a 17 de Maio de 1975 e é interrompida em Outubro).
Visando democratizar o mundo rural por meio de iniciativas culturais dedicadas a denunciar o passado repressivo e a promover a participação cívica, as Campanhas enfrentaram fortes reações no norte rural, alimentadas pela Igreja conservadora e pelas elites locais. Na sequência do 25 de Novembro de 1975, a CODICE seria extinta no dia seguinte, embora algumas equipas tenham permanecido no terreno até ao início de 1976.
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Sabão
O corpo socialmente aceite teve, na Europa Ocidental e durante alguns séculos, cheiros excessivamente fortes. Esta realidade, transversal a diferentes grupos sociais, começou a alterar-se apenas em finais do século XVIII, de forma muito lenta e progressiva, através da generalização do uso do sabão, associada ao surgimento de novas ideias a respeito do corpo e da higiene.
Uma substância muito semelhante ao sabão, sem a saponificação das gorduras com soda cáustica, era há muito conhecida como agente de limpeza, mas a sua utilização parece ter diminuído em alguns períodos históricos, sendo o asseio muito dificultado pelas condições dos espaços habitacionais, pelos hábitos e pela convivência entre pessoas e animais.
No século XVII, e depois também no século XVIII, há diversas descrições de que a higiene se fazia “a seco”, por fricção. Para aqueles que tinham maiores posses, o vestuário utilizado substituía a limpeza das zonas cobertas: “mudar de roupa [era], no fundo, lavar-se” (Vigarello 1988: 54), o que fazia desse ritual uma verdadeira forma de comunicação não-verbal, que permitia identificar facilmente o estatuto social daqueles que podiam mudar a roupa que ficava em contacto com a pele.
A forma como a água e o sabão eram utilizados permite-nos também pensar na generalização de alguns objetos de limpeza, como por exemplo as escovas tipo viola, muito utilizadas para esfregar soalhos mas não só, ou ainda as pequenas vassourinhas sanitárias, também em fibra de piaçaba, que acabaram por ter uma enorme relevância no quotidiano (Chiazza 2012). Estes e outros objetos permitem-nos viajar através das práticas de higiene, das considerações sobre a saúde, das regulamentações sobre o corpo e o vestuário, bem como entrar em contacto com certas obsessões e alguns estereótipos.
Os cuidados com o corpo podem também perceber-se através das mudanças na arquitetura, no mobiliário, ou em utensílios banais, de uso comum, relacionados com lavagens íntimas, purgas e abluções diversas. O século XIX assistiu a uma higiene progressivamente mais pragmática: não estavam apenas em causa as políticas de higiene pública, a imposição de um discurso higienista (Barreiros 2016), mas também o reforço da imagem de corpos padronizados e disciplinados, mais saudáveis e mais fortes.
Foi por via de uma preocupação política cada vez mais higienista que a saúde pública foi ganhando adeptos e impondo práticas generalizadas (Porter 1998). Na medida em que a assepsia era mais desejada, a água, o seu transporte para cada casa e o seu escoamento obrigaram a importantes alterações urbanas, a diferentes configurações dos espaços interiores e a novas rotinas.
O sabão, que, do fabrico caseiro com gorduras vegetais (sobretudo azeite) ou animais (sebo, óleo de peixe ou de baleia) e cinzas, evoluiu para um produto com eficácia de detergente, concebido através de um processo industrial cada vez mais complexo e diversificado, começou a alimentar um comércio relevante, à medida que a publicidade seduzia a população com ideais estéticos que simultaneamente impunham permanentes “cuidados e desassossegos” (Crespo 1990: 7).
Em Portugal, a evolução foi em tudo semelhante ao panorama aqui traçado. Como noutros países europeus, ao longo do século XIX as saboarias adquiriram uma importância cada vez mais significativa (Barata 1974). O sabão, sobretudo o azul e branco, ia chegando lentamente às zonas rurais, vendido em mercearias e em algumas feiras.
Em meados do século XX, o acesso a este produto de higiene era ainda muito condicionado, sobretudo em aldeias mais recônditas, como referem alguns testemunhos orais (Samara e Henriques 2013). O sabão era usado na lavagem da roupa, dos soalhos e até da loiça. Porém, era um produto escasso, que se usava com parcimónia; também por isso, era comum o seu fabrico a partir do sebo e das cinzas, mistura que se fervia e moldava. Na barrela da roupa colocavam-se pedaços de sabão com água quente, a que por vezes se misturava urina guardada para o efeito e cinzas envolvidas num pano. Situação diferente se verificava nos centros urbanos, onde, na década de 1870, iam surgindo sabões de diferentes tipos, vendidos em tabernas, em mercearias ou pelos petrolinos.
À semelhança do perfume, o sabão que se utiliza permite olhar para uma evolução que é também olfativa: o sabão de origem animal foi sendo substituído por outros de origem exclusivamente vegetal, alguns com notas florais, mais delicados. A beleza foi-se associando progressivamente à limpeza, ao prazer, ao conforto e até à saúde.
A pele branca e o cabelo louro, que ganharam grande notoriedade no princípio do século XX – através de imagens muito divulgadas, sobretudo pelo cinema americano e pelas fotografias de moda –, foram progressivamente perdendo relevância em relação ao bem-estar. Ainda assim, nunca deixou de haver uma preocupação com os cuidados com um corpo implacavelmente controlado, cuidado ou “leve”, como refere Gilles Lipovetsky (2016).
Em termos publicitários, estamos atualmente muito longe das propostas da empresa inglesa A. & F. Pears, que no início do século XIX começou a produção de um sabão menos agressivo, que pudesse ser usado nas barbearias ou com crianças e em diferentes necessidades pessoais e domésticas. Esta empresa produziu diversos cartazes publicitários sobre os benefícios da utilização do sabão que fabricava e, em muitos deles, acentuava-se o conforto que se poderia sentir com uma pele mais protegida dos germes, mais requintada, expurgada dos odores já considerados socialmente desagradáveis. No entanto, algumas dessas imagens anunciavam também que o sabão Pears era útil para branquear a pele, reforçando o estereótipo racista de que a pele negra deveria ser alterada. Se olharmos para as representações corporais dessa época – e que de diferentes formas foram chegando até hoje –, branquear e descolorir tornaram-se efetivamente temas de consumo banais.
Se o olhar para com a pele negra se manteve muitas vezes ambivalente – ora alvo de fascínio, ora de interesse predatório –, ele foi ao mesmo tempo adquirindo um significado político cada vez mais relevante (Nouschi 2009: 162-193). Hoje, os corpos publicitados são tendencialmente menos padronizados no que diz respeito à cor, embora, de uma maneira geral, permaneçam harmoniosos no sentido clássico e estético do termo e, por isso, pressuponham uma normalização e repressão contínuas.
A partir de meados do século XX, foi-se tornando cada vez mais simples aceder aos ideais estéticos divulgados de forma profissional e intensiva pela publicidade. Individualmente, cada pessoa passou a poder comunicar de forma mais eficaz as suas opções ideológicas ou simbólicas através das peças de roupa que usa (Eco 1989), mas também através de uma multiplicidade de cores e cheiros com os quais se apresenta publicamente, com os quais se integra socialmente.
A industrialização, a comercialização generalizada e a venda em grandes superfícies praticamente acabaram com a produção artesanal de produtos para a limpeza da casa, das roupas e do corpo. Substituídos por muitas outras opções, os sabões e outros produtos de beleza (incluindo os cosméticos) democratizaram-se, ao mesmo tempo que as imagens corporais continuam a ser controladas e uniformizadas. Entre a discrição e a ostentação, o corpo traduz diferentes códigos de conduta, ideologias políticas e educativas, opções estéticas, ambientais e outras.
Independentemente da época, a aparência mostrou ser sempre um elemento essencial para uma hierarquização e, também, para uma integração entre os pares. Nesse processo de integração/exclusão, o sabão foi um dos objetos quotidianos que contribuiu, entre muitos outros, para a celebração de um corpo mais saudável, mas também para a dimensão política e cultural do corpo.
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Béla Guttmann
O futebol tornou-se ao longo do século XX num dos principais terrenos de produção e banalização de identificações nacionais. Da discussão sobre os estilos de jogo aos debates sobre a utilização de jogadores naturalizados, passando pela organização de grandes eventos desportivos, são múltiplos os canais através das quais os discursos e as práticas de diferentes agentes e instituições do mundo do futebol comunicam com projetos ideológicos e políticos de caracterização de um povo enquanto totalidade mítica. A esta demanda identitária, que procura transformar o particular e o contingente – a forma como onze homens se organizam num dado momento dentro de um campo relvado – no símbolo da essência intemporal e imutável de um coletivo, uma história migrante do futebol pode responder com o recenseamento da diversidade das formas de o jogar e com o reconhecimento das interconexões entre elas. Se é impossível compreender a introdução do futebol em Portugal sem olhar para as trajetórias dos jovens das elites nacionais que estudaram em Inglaterra ou para o contributo dos representantes dos interesses comerciais britânicos aqui, também é difícil pensar o desenvolvimento do jogo sem considerar a sua inserção noutras redes internacionais. O estudo da profissionalização do futebol português e da sua transformação em espetáculo popular não pode ignorar o papel desempenhado por um conjunto de técnicos e atletas provenientes de contextos muito diversos. Entre eles, destaca-se o caso de Béla Guttmann.
A partir de meados da década de 1920, o aumento da competitividade desportiva levou os clubes portugueses de futebol a procurarem treinadores estrangeiros, originários de países onde o profissionalismo já se encontrava institucionalizado. Entre eles, destacaram-se os técnicos húngaros. Muitos chegaram a Portugal fugindo de perseguições religiosas e políticas, ou da guerra; alguns procuravam apenas melhores condições de trabalho e reconhecimento profissional. Entre 1924, quando Akös Tezler iniciou funções no Futebol Clube do Porto, e 1962, quando Béla Guttmann conduziu o Benfica à conquista da sua segunda Taça dos Campeões Europeus consecutiva, dezenas de treinadores provenientes daquela região da Europa dirigiram equipas portuguesas. Józseph Szabó, Mihaly Syska, Magyar Ferenc, Lippo Hertzka, János Biri, Julius Lelovtic ou Rudolf Jenny, entre outros, transformaram decisivamente a forma de jogar futebol em Portugal no período de entreguerras. Consigo não traziam apenas o que, por facilidade de expressão, se designou como “estilo húngaro”. Muitos deles haviam aprendido sobre sistemas táticos ou métodos de treino com os “mestres escoceses” que, por não encontrarem nas ilhas britânicas as condições necessárias para desenvolver o seu métier, no final da I Guerra Mundial trabalharam em Viena, Budapeste ou Praga. Antes de chegarem a Portugal, quase todos os membros desse grupo de húngaros tinham passado, como jogadores e treinadores, por diversos campeonatos europeus. Foi o conhecimento acumulado por essa experiência que tentaram adaptar às condições de trabalho que encontraram nos clubes portugueses.
Béla Guttmann nasceu a 27 de Janeiro de 1899 em Budapeste, uma das capitais do Império Austro-Húngaro, e morreu no dia 28 de Agosto de 1981 em Viena, capital da Áustria. Foi um dos grandes jogadores húngaros e um dos mais importantes treinadores de futebol do século XX. Filho de um casal de professores de dança (Abraham e Eszter Guttmann), Béla encontrou no futebol terreno para a construção de uma trajetória de mobilidade social ascendente e para a integração na sociedade húngara pós-emancipação, em processo de modernização cultural.
Ao longo da sua carreira como atleta, que se estendeu de 1917 a 1934, jogou em clubes como o Törekvés e o MTK de Budapeste (Hungria) ou o Hakoah de Viena (Áustria), além de, durante a primeira grande vaga de crescimento do futebol nos Estados Unidos da América, ainda na década de 1920, ter também representado o New York Giants e o New York Hakoah. Ao serviço de outra equipa americana, o Hakoah All Stars, encetou a sua primeira grande tournée pela América do Sul, desempenhando uma variedade de funções: jogador, mas também treinador e organizador da digressão. As filiações dos vários clubes por onde passou eram muito diversas: se o MTK, o Círculo Húngaro dos Educadores da Cultura do Corpo, fundado em 1888, era uma instituição da burguesia liberal de Budapeste, que aspirava a uma “hungaridade universal”, o Hakoah de Viena e o Hakoah de Nova Iorque, pelo contrário, representavam o projeto sionista de um “judaísmo muscular”. Assim, as escolhas de carreira de Béla Guttmann enquanto jogador não podem ser lidas como simples expressão de uma orientação política, mas devem também, ou sobretudo, ser interpretadas como parte de um projeto de afirmação profissional e de busca de segurança pessoal. A mudança de Budapeste para Viena acontece quando o profissionalismo já havia sido instituído na Áustria, ao contrário do que sucedia na Hungria. A emigração para a América do Norte resulta das enormes diferenças salariais observadas entre os clubes da Europa e dos Estados Unidos, onde o futebol era organizado segundo as regras das indústrias culturais. Nos EUA, Guttmann conheceu a fortuna, mas também a ruína financeira: terá perdido todas as suas poupanças e investimentos após o crash de 1929, o que contribuiu, a par da falência do primeiro campeonato americano de futebol, para o seu regresso à Europa no início dos anos 1930.
Enquanto jogador, destacou-se como um médio-centro completo, com excelente condição física, com capacidade para defender e atacar, recuperar, passar e transportar a bola, ajudando a transformar os padrões de desempenho daquela posição específica, no quadro da divisão do trabalho de equipas organizadas segundo o modelo da pirâmide escocesa, 2-3-5. Foi seis vezes internacional húngaro, tendo ainda muito jovem abdicado de jogar pela seleção do seu país, como consequência de conflitos com dirigentes federativos, suscitados pela má organização da participação húngara nos Jogos Olímpicos de Paris de 1924, e em particular pelo descaso demonstrado em relação às necessidades dos atletas.
Iniciou o seu percurso no Hakoah de Viena, em 1934-35, ainda com o estatuto de jogador-treinador. Logo depois, assumiu o seu primeiro cargo a tempo inteiro como treinador no Enschede (hoje Twente), dos Países Baixos, para mais tarde regressar ao Hakoah de Viena. Quando começou a II Guerra Mundial, era treinador do Újpest, clube ao serviço do qual conquistou a mais importante competição europeia da época, a Taça Mitropa.
Apesar de quase nunca o ter referido em entrevistas e intervenções públicas, entre 1939 e 1945 esteve na clandestinidade. Foi nesse período que, escondido em Budapeste, conheceu a sua esposa Mariann, que o acompanhou pelo resto da vida. Em 1944 foi internado num campo de trabalho dos fascistas húngaros do Partido da Cruz de Flechas, de onde encetou uma fuga com o seu colega e amigo Ernö Erbstein, outro grande treinador da escola húngara que se destacou ao serviço do Torino, de Itália. Depois da Guerra, num tempo de escassez de bens, inflação e mercado negro, Guttmann incluiu no seu contrato com o Vasas de Budapeste, um clube liderado à época por empresários do sector alimentar, uma cláusula que incluía o pagamento de uma percentagem do salário em géneros: batatas, farinha, banha, açúcar, entre outros bens essenciais.
Entre 1945 e 1974, mudou de país 15 vezes, e 21 vezes de clube. Números impressionantes, talvez até inéditos, mas não totalmente invulgares entre os grandes treinadores da época. Dirigiu grandes e pequenas equipas na Holanda, na Jugoslávia, na Hungria, na Roménia, em Itália, na Argentina, em Chipre, no Brasil, em Portugal, no Uruguai, na Suíça e na Grécia. É considerado um dos mais brilhantes elementos de uma geração de treinadores húngaros – entre os quais se encontram também Márton Bukovi ou Gusztáv Sebes – cujo trabalho conjunto ajudou a criar uma das grandes equipas da história do futebol, a Aranycsapat, a “equipa de ouro”, nome pelo qual ficou conhecida a seleção húngara na década de 1950. Este grupo de treinadores impulsionou também mudanças táticas e técnicas no futebol mundial, ao introduzir dinâmicas ainda inexploradas no modelo WM, até então o sistema de referência no plano internacional, que tinha sido implementado por Herbert Chapman no Arsenal de Londres na segunda metade da década de 1920. No final dos anos 1940, no Kispest (mais tarde Honvéd), Guttmann treinou muitos dos jogadores que fizeram a fama do futebol daquele país, como Ferenc Puskás ou József Bozsik. Após o termo deste contrato, não regressou à Hungria. Sagrou-se campeão em Itália, com o AC Milan, onde também trabalhou com jogadores de nível mundial, tendo aí conhecido em detalhe os sistemas defensivos das equipas italianas, que ganhariam reconhecimento próprio na ideia de catenaccio. O ano de 1956 foi crucial no seu percurso: adquiriu nacionalidade austríaca, com o apoio dos dirigentes federativos daquele país, e, depois da revolta húngara, dirigiu no exílio a equipa do Honvéd, numa digressão pela América do Sul que lhe abriria a possibilidade de treinar o São Paulo. Terá sido um dos responsáveis pela implementação do sistema 4-2-4 naquele clube brasileiro, esquema tático que acabou por ser adotado pela seleção campeã do mundo em 1958. O ponto alto da sua carreira foi vivido ao serviço de um clube português, o Sport Lisboa e Benfica, que treinou pela primeira vez entre 1959 e 1962.Não obstante o lugar central de Guttmann na história do futebol mundial, resultado desta trajetória singular, na imaginação portuguesa o seu nome evoca habitualmente duas histórias: a conquista de duas Taças dos Clubes Campeões Europeus consecutivas pelo Benfica, nas épocas de 1960-61 e 1961-62, em finais disputadas contra o Barcelona e o Real Madrid, poderosas equipas espanholas cujo estilo de jogo também foi moldado por jogadores e técnicos húngaros; e o mito da maldição que teria lançado sobre a equipa da Luz depois de ser despedido – em conflito, como tantas vezes ao longo da sua carreira, com dirigentes cuja gestão autoritária, patrimonialista e clientelar chocava com o seu projeto de profissionalização do desporto –, profetizando que nem em 100 anos o clube voltaria a vencer uma competição europeia. Para quebrar a maldição, e depois de mais uma final perdida em 2013, em fevereiro de 2014 o Sport Lisboa e Benfica inaugurou uma estátua de dois metros do seu antigo treinador. Três meses mais tarde, voltou a perder uma final europeia, desta feita frente ao Chelsea.
Deixando estes episódios de lado, a longa história deste treinador de futebol permite-nos considerar o desenvolvimento do futebol e a profissionalização do jogo a nível planetário. Ao mesmo tempo, o estudo do seu percurso em Portugal, inserido no quadro de uma prosopografia de uma geração de treinadores húngaros, vem questionar a relação entre estilos de jogo e representações da identidade nacional: talvez se possa argumentar que o futebol português foi inventado por treinadores húngaros. Ou talvez seja possível ir ainda mais longe e dizer que, quando chegou a Portugal, Guttmann, tal como outros seus compatriotas antes dele, nem seria já um treinador húngaro. Nas suas próprias palavras: “Durante a minha longa carreira estive em muitos países e trabalhei em alguns deles. Sempre que via uma boa ideia de jogo roubava-a e guardava-a para mim. Ao fim de algum tempo, fazia um cocktail com esses ingredientes surripiados“ (Claussen 2015: 131). O futebol português, tal como o futebol húngaro, austríaco ou brasileiro, ou qualquer outro, emerge como o resultado dessa mistura de influências, intrinsecamente transnacional.
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Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de Coimbra
A 20 de Junho de 1957, o Diário de Coimbra noticiava na primeira página: “O Dr. Armando de Lacerda regressa amanhã do Brasil onde instalou o primeiro Laboratório de Fonética da América do Sul”. Refere-se esta notícia à criação do Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de São Salvador da Bahia, para a qual o foneticista português Armando de Lacerda (1902-1984), fundador e director do Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra, contou com a colaboração do seu discípulo Nelson Rossi (1927-2014). Este laboratório brasileiro, equipado com cromógrafos – inovadores instrumentos para a investigação fonética que Lacerda desenvolvia desde 1932 –, produz em 1960-1963 o primeiro atlas linguístico do Brasil, o Atlas prévio dos falares baianos, no qual se recorre à transcrição fonética de Armando de Lacerda e de Göran Hammarström (1922-2019). Esse empreendimento, no qual intervieram Nelson Rossi e alguns dos seus colaboradores, foi vital no despontar da dialectologia no Brasil, promovendo a emergência de atlas linguísticos noutros estados. Exemplificativos são o Atlas lingüístico de Sergipe, também desenvolvido pela equipa da Universidade de São Salvador da Bahia e concluído em 1973 (embora publicado somente em 1987); o Esboço de um atlas lingüístico de Minas Gerais (1977); o Atlas lingüístico da Paraíba (1984); o Atlas lingüístico do Paraná (1994); e o Atlas lingüístico de Sergipe II (2005).
Nos EUA, a influência do Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra também se repercute. O apetrechamento deste espaço laboratorial com cromógrafos, associado ao prestígio internacional de Lacerda, é fundamental para atrair para Coimbra o doutorando Francis Millet Rogers (1914-1989). Detentor de uma bolsa de estudo da Universidade de Harvard, Rogers especializa-se em 1939, sob a supervisão de Lacerda, no uso da cromografia. Depois de regressar a Harvard, onde se doutora em 1940, a carreira de Rogers culminará na criação nessa universidade da primeira cátedra de Estudos Portugueses nos EUA (cátedra “Nancy Clark Smith”, de Língua e Literatura Portuguesas). Nesse percurso, Rogers, que entendia Lacerda como seu mestre, consegue integrar os estudos de português no programa de “General Education”. Nas suas aulas, recorre aos métodos de registo da fala apreendidos no laboratório dirigido por Lacerda. Entre outras inovações, esta prática potencia o interesse pela língua portuguesa a níveis dignos de o inscrever nas suas memórias, onde refere que, a partir de 1960, com a actualização e melhoria do curso de língua portuguesa, frequentemente lhe chegavam rumores de que as duas línguas de maior prestígio para os estudantes da Universidade de Harvard eram o árabe e o português.
Na mesma época, em 1965, mas do outro lado do globo, em Melbourne, um outro discípulo de Lacerda e colaborador do Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra assume a posição de primeiro professor catedrático de Linguística na Austrália. Referimo-nos a Göran Hammarström, o foneticista sueco que já em 1955 havia criado o Departamento de Fonética da Universidade de Uppsala. À imagem do ocorrido com Francis M. Rogers e com Nelson Rossi, também na base desta carreira académica se encontra o Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra, onde Hammarström preparara o seu doutoramento, que defendera em seguida em Uppsala em 1953. A importância da colaboração com Lacerda no laboratório dirigido por este sobressai em 1957, quando Georges Straka (1910-1993), director do Instituto de Fonética da Universidade de Estrasburgo, elabora um parecer sobre as competências científicas de Hammarström, a pedido do director da Faculdade de Letras de Uppsala. Nesse documento, Straka defende que o estudo de Hammarström sobre a duração dos fonemas em sueco é de grande interesse para a linguística, excedendo largamente os resultados previamente alcançados por outros investigadores. Na sua opinião, isso resultava de Hammarström ter usado em Coimbra o “excelente método cromográfico”.
Brasil, EUA, Escandinávia e Austrália: a criação em várias universidades estrangeiras de laboratórios que se apropriam das técnicas de investigação aplicadas no Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra são alguns exemplos da influência global deste centro de investigação. Os ensinamentos obtidos em Coimbra contribuíram para desencadear uma “mentalidade dialectológica” na América do Sul, assim como para a criação de cadeiras de fonética, de cursos de português ou para o seu uso em aulas de Línguas Românicas em Harvard.
O director do Laboratório, Armando de Lacerda, desempenhou um papel fundamental na obtenção deste estatuto. Lacerda beneficiara da existência, desde 1929, da Junta de Educação Nacional, instituição que planificava e financiava a investigação científica em Portugal, seguida, a partir de 1936, do Instituto para a Alta Cultura. É como bolseiro de investigação da Junta de Educação Nacional que Lacerda se especializa em fonética experimental em Hamburgo e em Bona, em 1930-1933. Nos institutos de fonética destas universidades adquire prestígio internacional, nomeadamente pela criação, em 1932, do policromógrafo, equipamento que torna obsoleto o quimógrafo, até então o principal instrumento aplicado nos laboratórios de fonética experimental. Digna de nota é também a publicação em 1933, em co-autoria com o seu mestre Paul Menzerath (1883-1954), da obra Koartikulation, Steuerung und Lautabgrenzung, trabalho que cria o conceito-chave de coarticulação (as influências exercidas entre si pelos sons contíguos da fala), que a partir daí desempenha um papel central na teoria fonética.
Regressando a Portugal em 1933, Lacerda instala na Universidade de Coimbra, como já foi referido, o primeiro laboratório de fonética experimental do país. Considerado por diversos linguistas estrangeiros, em meados do século XX, o melhor laboratório de fonética experimental da Europa, este espaço laboratorial, como exemplificámos com alguns casos, atrairá inúmeros cientistas da Europa, da América do Norte, da América do Sul e de África. Em comum, os investigadores estrangeiros partilham a procura de especialização que lhes permita dar início a prestigiadas carreiras académicas internacionais.
Nos anos 1960 os apoios do Estado português ao laboratório dirigido por Lacerda diminuem e, a partir de 1972, com a sua jubilação, e na ausência de um sucessor na direcção do instituto, inicia-se a ocupação para novos fins das dez salas que o Laboratório até então ocupava na Faculdade de Letras de Coimbra. Reduzido a uma única sala, o Laboratório encerra em 1979 a sua actividade. Nesse mesmo ano, Lacerda ocupava ainda a posição de membro honorário do Conselho Permanente para a Organização de Congressos Internacionais de Ciências Fonéticas, ombreando em exclusivo com Roman Jakobson (Cambridge, EUA) e Eberhard Zwirner (Colónia, República Federal da Alemanha), distinção compaginável, no ocaso da sua vida, com a história da sua carreira académica. Se a sua escola de investigação, por intermédio dos seus discípulos, se difundiu nos mais diversos países e continentes, já no nosso país aquele que é um dos raros cientistas portugueses inscritos na história de uma disciplina científica foi remetido ao esquecimento, realidade para a qual terá concorrido o facto de a Universidade de Coimbra o ter sistematicamente considerado membro do “pessoal técnico, auxiliar e menor”.
A (in)visibilidade historiográfica do Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de Coimbra e de Armando de Lacerda assume, deste modo, um particular interesse na história da ciência mundial, ao mostrar como um espaço laboratorial na periferia da Europa chegou a assumir uma atractividade científica mais própria dos tradicionais centros científicos; ao mesmo tempo, o seu fundador e director, sendo embora um dos nomes maiores da disciplina, era oficialmente remetido à condição de “técnico invisível”. Estes são motivos que mais do que justificam a recuperação desta história, em curso pelo projecto PHONLAB (2022.06811.PTDC) “Laboratório de Fonética: Coimbra – Harvard. Repensar centros e periferias científicas no século XX”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. A recuperação historiográfica em curso conduziu a Real Academia das Ciências da Suécia a dedicar um dia ao foneticista português (Armando de Lacerda: A pioneer of Experimental Phonetics - Kungl. Vetenskapsakademien (kva.se), além de em 2022 ter levado a rede internacional focada na história da investigação em comunicação de fala a, pela primeira vez, dedicar um dos seus workshops bianuais a um cientista (LACERDA 120 – 5th International Workshop on the History of Speech Communication Research (HSCR) (wordpress.com).
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D. Maria Constança da Câmara, sétima marquesa de Fronteira
Filha de D. Luís Gonçalves da Câmara Coutinho Pereira de Sande e de D. Maria de Noronha, D. Maria Constança nasceu a 13 de Julho de 1801, de acordo com o assento de baptismo. A família paterna, não titular, descendia dos senhores das Ilhas Desertas, Regalados e da Casa da Taipa. A família materna, pelo contrário, pertencia à aristocracia de corte, descendendo dos condes dos Arcos e dos marqueses de Marialva. Sétima dos nove filhos do casal, pouco se sabe acerca da sua instrução, a não ser que recebeu educação literária, religiosa e musical (em canto, piano e harpa). Teve provavelmente uma educação doméstica, como era habitual nas elites aristocráticas femininas do seu tempo, com recurso a diversos mestres.
A casa ascendeu à titulação na sua geração. Os seus irmãos tornaram-se sucessivamente o 1º, 2º e 3º condes da Taipa. A sua irmã mais velha entrou no grupo da aristocracia ao casar com o 6º marquês de Angeja, o que sucedeu também a D. Maria Constança por casamento com D. José Trasimundo Mascarenhas Barreto, 7º marquês de Fronteira, 8º conde da Torre e de Coculim, 10º conde de Assumar e representante do título de marquês de Alorna. A frequência por D. José Trasimundo das partidas e saraus típicos da aristocracia europeia nos séculos XVIII e XIX, realizados no palácio dos pais de D. Maria Constança, favoreceu o consórcio, ocorrido a 14 de Fevereiro de 1821. Deste enlace nasceria, no ano seguinte, D. Maria Mascarenhas, a única filha do casal.
Na sequência do golpe absolutista de Abril de 1824, o alinhamento político do marquês pelas ideias liberais levou-o à prisão. Depois de ser libertado, ele e a sua mulher abandonaram o Reino, percorrendo diversos países da Europa, em particular França, Bélgica, Holanda e a península itálica. Neste contexto, assistiram em Paris à sagração de Carlos X, em 1825, e às cerimónias do Jubileu Santo, em Roma, no mesmo ano. Nesta última cidade, D. Maria Constança desempenharia oficiosamente, em diversas cerimónias, as funções de embaixatriz, a pedido do embaixador português, por este ser solteiro.
O diário inicia-se em 1826, na viagem de regresso a Portugal. Ao contrário de outros países europeus, que desde a Idade Moderna cultivam uma tradição neste género literário, a produção diarística em Portugal é considerada incipiente, sendo escassos os diários anteriores ao século XX conhecidos. Tal pode dever-se à pouca atenção dada aos arquivos de família, muitos dos quais permanecem até hoje privados e desconhecidos do público. Esta realidade é ainda mais significativa se vista por uma perspectiva de género: o número conhecido de mulheres diaristas é baixo (Urbano 2023). Ao desconhecimento das fontes, junta-se o menor grau de alfabetização e de acesso à cultura letrada por parte das mulheres, mas também um conjunto significativo de questões que ao longo dos séculos invisibilizaram a escrita de autoria feminina.
Nessa viagem de regresso, o casal passou por Inglaterra, visitando Londres, Oxford, Hampton Court, Newark e Portsmouth, e contactando com diversos membros da aristocracia, portugueses e estrangeiros, nomeadamente com os marqueses de Salisbury, com o conde de Flavigny, com os barões de Heytesbury e com o futuro barão Francis Godolphin Osborne.
Entre Novembro de 1826 e o início de 1828, D. Maria Constança esteve em Lisboa. Neste período, as entradas do diário são escassas, vindo a tornar-se regulares a partir do final de Julho de 1829, na estância balnear de Dieppe, já durante o segundo exílio do casal, provocado pela ascensão de D. Miguel ao trono português, período em que mais de 13 mil liberais deixaram o país (Isabella 2023: 217). Esta emigração insere-se em movimentos migratórios similares ocorridos por toda a Europa, decorrentes das revoluções e da instabilidade política vivida em países como França, Itália, Espanha e Grécia, mobilizando elites aristocráticas, terratenentes e militares. Neste período, os marqueses de Fronteira conviveram com outros aristocratas, tais como as duquesas de Angoulême, Berry, Noialles e Poix, o conde Demidoff, os viscondes de Castelbajac e diversos membros da família Bombelles. Em Agosto, o casal regressou a Paris, onde encontraria outros aristocratas portugueses emigrados, travando também conhecimento com vários titulares estrangeiros.
Em Junho de 1830, iniciaram um périplo até à região de Como, através de Pouilly-sur-Loire, Vichy, Lyon, Nantua, Genebra, Lauzen, Aber, Sion, Briga, Domo D’assola, Baveno e Milão; nessa ocasião, conviveram com a marquesa de Vence, o conde de Borromeu, a viscondessa da Pedra Branca e o general espanhol Miguel de Álava y Esquível. A temporada em Como, em Julho e Agosto de 1830, foi socialmente menos intensa, mas ainda assim pô-los em contacto com os condes de Tanzi e com a cantora lírica Giuditta Pasta. Posteriormente, o casal instalou-se em Florença, após um périplo por Milão, Génova, Rapallo, Sestri, Borghetto di Vara, Sarzana, Luca e Livorno, estabelecendo redes de sociabilidade com membros da família Strogonoff, com o diplomata Carlo Andrea Pozzo di Borgo e com os príncipes Dolgarukov. Em Florença, foram apresentados aos grão-duques da Toscana e ao dei da Argélia, exilado nesta corte, bem como a diversos aristocratas e diplomatas europeus.
No final de Maio de 1831, os marqueses deixaram Florença, passando por Bolonha, Modena, San Benedetto Po, Mântua, Verona, Borghetto sull’Adige, Roveredo, Trento, Inha, Colma, Vipiteno, Innsbruck e Munique, onde se demoraram alguns dias. A viagem prosseguiu para Augsburgo, Ulm e Estugarda, seguindo-se Karlsruhe e Baden-Baden. Aqui, travaram conhecimento com os príncipes de Tarante, com Lobanov-Rostovsky, com de la Tremouille, com a condessa Lage de Volude e com os barões von Mengden, reencontrando ainda outros aristocratas, como o príncipe Golitsyn ou o barão von Ende. Em meados de Agosto retomaram viagem, passando por Karlsruhe, Heidelberg, Frankfurt, Mainz, Koblenz, Colónia e Aachen.
O diário é omisso entre Setembro de 1831 e Fevereiro de 1832, data em que os marqueses já se encontravam em Paris. Aqui, recuperaram relações com aristocratas portugueses e estrangeiros, como a marquesa d’Agrain, com Jean-Guillaume Hyde de Neuville ou com Susan Euphemia Beckford. A estadia em Paris foi interrompida em Maio de 1833 para dar lugar a uma temporada de banhos em Boulogne-sur-mer, tendo o casal regressado à capital francesa em Agosto e retomado então contacto com o marquês de La Valette e com a Madame de Flahaut.
O regresso de D. Maria Constança a Portugal deu-se a partir de Boulogne-sur-mer, a 9 de Outubro, através de Dover e com paragem em Londres. O diário é reiniciado a 1 de Abril de 1834, em Lisboa, prolongando-se, com bastantes intervalos, até 1842. Neste período, a 1 de Janeiro de 1836, foi agraciada por D. Maria II com a ordem de Santa Isabel.
Embora exilados e em situação económica precária, contornada com recurso a empréstimos de banqueiros estrangeiros, os marqueses de Fronteira mantiveram um nível de vida condizente com o seu estatuto social, estabelecendo redes de sociabilidade com a aristocracia europeia e norte-africana que igualmente se deslocava, tanto por razões de exílio (como no caso já referido do dei da Argélia), quanto profissionais (como no caso do corpo diplomático) e de lazer. Este quotidiano cosmopolita, que o diário permite acompanhar, é comparável ao da aristocracia norte-europeia de finais do século XVIII e assenta na partilha da mesma esfera social, favorecida pela existência de códigos de sociabilidade comuns (Wolff 2015: 84-88), que consistiam na realização de visitas, na frequência de bailes e saraus, nos quais se jogava ou tocava e se cantavam os êxitos musicais da época. Ia-se a banhos nas estâncias termais em voga, passeava-se nos parques públicos, visitavam-se locais de interesse – fossem igrejas, palácios ou museus –, onde os grandes mestres da pintura europeia eram apreciados: artistas como Rafael, Guido Reni, Rubens, Domenico Zampieri, Anthony Van Dick ou Bartolomé Esteban Murillo.
Outro elemento significativo do estilo de vida aristocrático era a frequência do teatro, especialmente de ópera. Além de ser um espaço privilegiado de aprofundamento das redes sociais, a frequência da ópera permite-nos conhecer os consumos culturais deste grupo e o próprio gosto da marquesa de Fronteira, que referencia os principais compositores do seu tempo, incluindo alguns atualmente menos conhecidos (como Peter von Winter, Simon Mayr, ou François-Adrien Boieldieu), a par de outros que continuam a figurar no cânone operático, como Rossini, Mercadante ou Bellini. Os marqueses tiveram ocasião de assistir a atuações dos principais artistas internacionais do seu tempo, em especial de cantores líricos e de bailarinas.
De resto, a descrição dos consumos culturais da marquesa de Fronteira não se fica pelas artes de palco. D. Maria Constança alude a algumas leituras – desde o clássico Homero, aos franceses Charles-Victor Prévot, Marie des Heures (Clotilde-Marie Collin de Plancy), Alphonse Marie Louis de Prat de Lamartine e George Sand, passando pelo italiano Alessandro Manzoni, pela inglesa Ann Radcliffe e até pelo norte-americano James Fenimore Cooper. A prática da leitura incluía também a imprensa periódica nacional e estrangeira. Através dela, e da correspondência recebida dos seus familiares e amigos, a marquesa mantinha-se atualizada relativamente à situação política do seu país e dos principais acontecimentos europeus, nomeadamente as guerras de independência da Grécia e a travada entre a Rússia e o Império Otomano (1828-1829). Acompanhou também a revolução de Julho de 1830 em França e, no mesmo ano, a de Varsóvia, bem como a tentativa de revolução em Modena, perpetrada por Ciro Menotti.
Desde a conclusão do diário em 1842 até à sua morte, pouco se sabe, à excepção de ter sido directora de um dos colégios de Infância Desvalida, instituído pela duquesa de Bragança, e vogal da Sociedade Protetora dos Órfãos Desvalidos das Vítimas da Cólera Morbus, em 1856, e da Febre Amarela, em 1857. Nas memórias do seu marido, D. Maria Constança é referida apenas pontualmente. Morreu a 11 de Setembro de 1860 no seu palácio de Benfica, tendo sido sepultada na igreja do convento de S. Domingos de Benfica.
Finalmente, importa realçar que a participação da marquesa de Fronteira nas sociabilidades europeias, demonstrada pelo seu diário, sobretudo após a ascensão de D. Miguel ao trono, para além de testemunhar a partilha de códigos sociais, deverá ser entendida como uma estratégia de mobilização política internacional levada a cabo pelos emigrados portugueses liberais. O desenvolvimento de uma diplomacia informal visou a promoção de redes de solidariedade transnacional entre os partidários do constitucionalismo e a adesão à causa liberal portuguesa.
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