Béla Guttmann
- Title
- Béla Guttmann
- Abstract
- Ao longo do século XX, o futebol foi um dos principais campos de produção e reprodução de um imaginário nacional português. A trajectória de Béla Guttmann - um judeu nascido em 1899 na Hungria e o treinador que levou o Benfica a vencer por duas vezes a Taça dos Clubes Campeões Europeus - permite contar uma nova história do futebol, centrada na circulação transnacional de agentes, ideias e instituições.
- Description
- O futebol tornou-se ao longo do século XX num dos principais terrenos de produção e banalização de identificações nacionais. Da discussão sobre os estilos de jogo aos debates sobre a utilização de jogadores naturalizados, passando pela organização de grandes eventos desportivos, são múltiplos os canais através das quais os discursos e as práticas de diferentes agentes e instituições do mundo do futebol comunicam com projetos ideológicos e políticos de caracterização de um povo enquanto totalidade mítica. A esta demanda identitária, que procura transformar o particular e o contingente – a forma como onze homens se organizam num dado momento dentro de um campo relvado – no símbolo da essência intemporal e imutável de um coletivo, uma história migrante do futebol pode responder com o recenseamento da diversidade das formas de o jogar e com o reconhecimento das interconexões entre elas. Se é impossível compreender a introdução do futebol em Portugal sem olhar para as trajetórias dos jovens das elites nacionais que estudaram em Inglaterra ou para o contributo dos representantes dos interesses comerciais britânicos aqui, também é difícil pensar o desenvolvimento do jogo sem considerar a sua inserção noutras redes internacionais. O estudo da profissionalização do futebol português e da sua transformação em espetáculo popular não pode ignorar o papel desempenhado por um conjunto de técnicos e atletas provenientes de contextos muito diversos. Entre eles, destaca-se o caso de Béla Guttmann.
A partir de meados da década de 1920, o aumento da competitividade desportiva levou os clubes portugueses de futebol a procurarem treinadores estrangeiros, originários de países onde o profissionalismo já se encontrava institucionalizado. Entre eles, destacaram-se os técnicos húngaros. Muitos chegaram a Portugal fugindo de perseguições religiosas e políticas, ou da guerra; alguns procuravam apenas melhores condições de trabalho e reconhecimento profissional. Entre 1924, quando Akös Tezler iniciou funções no Futebol Clube do Porto, e 1962, quando Béla Guttmann conduziu o Benfica à conquista da sua segunda Taça dos Campeões Europeus consecutiva, dezenas de treinadores provenientes daquela região da Europa dirigiram equipas portuguesas. Józseph Szabó, Mihaly Syska, Magyar Ferenc, Lippo Hertzka, János Biri, Julius Lelovtic ou Rudolf Jenny, entre outros, transformaram decisivamente a forma de jogar futebol em Portugal no período de entreguerras. Consigo não traziam apenas o que, por facilidade de expressão, se designou como “estilo húngaro”. Muitos deles haviam aprendido sobre sistemas táticos ou métodos de treino com os “mestres escoceses” que, por não encontrarem nas ilhas britânicas as condições necessárias para desenvolver o seu métier, no final da I Guerra Mundial trabalharam em Viena, Budapeste ou Praga. Antes de chegarem a Portugal, quase todos os membros desse grupo de húngaros tinham passado, como jogadores e treinadores, por diversos campeonatos europeus. Foi o conhecimento acumulado por essa experiência que tentaram adaptar às condições de trabalho que encontraram nos clubes portugueses.
Béla Guttmann nasceu a 27 de Janeiro de 1899 em Budapeste, uma das capitais do Império Austro-Húngaro, e morreu no dia 28 de Agosto de 1981 em Viena, capital da Áustria. Foi um dos grandes jogadores húngaros e um dos mais importantes treinadores de futebol do século XX. Filho de um casal de professores de dança (Abraham e Eszter Guttmann), Béla encontrou no futebol terreno para a construção de uma trajetória de mobilidade social ascendente e para a integração na sociedade húngara pós-emancipação, em processo de modernização cultural.
Ao longo da sua carreira como atleta, que se estendeu de 1917 a 1934, jogou em clubes como o Törekvés e o MTK de Budapeste (Hungria) ou o Hakoah de Viena (Áustria), além de, durante a primeira grande vaga de crescimento do futebol nos Estados Unidos da América, ainda na década de 1920, ter também representado o New York Giants e o New York Hakoah. Ao serviço de outra equipa americana, o Hakoah All Stars, encetou a sua primeira grande tournée pela América do Sul, desempenhando uma variedade de funções: jogador, mas também treinador e organizador da digressão. As filiações dos vários clubes por onde passou eram muito diversas: se o MTK, o Círculo Húngaro dos Educadores da Cultura do Corpo, fundado em 1888, era uma instituição da burguesia liberal de Budapeste, que aspirava a uma “hungaridade universal”, o Hakoah de Viena e o Hakoah de Nova Iorque, pelo contrário, representavam o projeto sionista de um “judaísmo muscular”. Assim, as escolhas de carreira de Béla Guttmann enquanto jogador não podem ser lidas como simples expressão de uma orientação política, mas devem também, ou sobretudo, ser interpretadas como parte de um projeto de afirmação profissional e de busca de segurança pessoal. A mudança de Budapeste para Viena acontece quando o profissionalismo já havia sido instituído na Áustria, ao contrário do que sucedia na Hungria. A emigração para a América do Norte resulta das enormes diferenças salariais observadas entre os clubes da Europa e dos Estados Unidos, onde o futebol era organizado segundo as regras das indústrias culturais. Nos EUA, Guttmann conheceu a fortuna, mas também a ruína financeira: terá perdido todas as suas poupanças e investimentos após o crash de 1929, o que contribuiu, a par da falência do primeiro campeonato americano de futebol, para o seu regresso à Europa no início dos anos 1930.
Enquanto jogador, destacou-se como um médio-centro completo, com excelente condição física, com capacidade para defender e atacar, recuperar, passar e transportar a bola, ajudando a transformar os padrões de desempenho daquela posição específica, no quadro da divisão do trabalho de equipas organizadas segundo o modelo da pirâmide escocesa, 2-3-5. Foi seis vezes internacional húngaro, tendo ainda muito jovem abdicado de jogar pela seleção do seu país, como consequência de conflitos com dirigentes federativos, suscitados pela má organização da participação húngara nos Jogos Olímpicos de Paris de 1924, e em particular pelo descaso demonstrado em relação às necessidades dos atletas.
Iniciou o seu percurso no Hakoah de Viena, em 1934-35, ainda com o estatuto de jogador-treinador. Logo depois, assumiu o seu primeiro cargo a tempo inteiro como treinador no Enschede (hoje Twente), dos Países Baixos, para mais tarde regressar ao Hakoah de Viena. Quando começou a II Guerra Mundial, era treinador do Újpest, clube ao serviço do qual conquistou a mais importante competição europeia da época, a Taça Mitropa.
Apesar de quase nunca o ter referido em entrevistas e intervenções públicas, entre 1939 e 1945 esteve na clandestinidade. Foi nesse período que, escondido em Budapeste, conheceu a sua esposa Mariann, que o acompanhou pelo resto da vida. Em 1944 foi internado num campo de trabalho dos fascistas húngaros do Partido da Cruz de Flechas, de onde encetou uma fuga com o seu colega e amigo Ernö Erbstein, outro grande treinador da escola húngara que se destacou ao serviço do Torino, de Itália. Depois da Guerra, num tempo de escassez de bens, inflação e mercado negro, Guttmann incluiu no seu contrato com o Vasas de Budapeste, um clube liderado à época por empresários do sector alimentar, uma cláusula que incluía o pagamento de uma percentagem do salário em géneros: batatas, farinha, banha, açúcar, entre outros bens essenciais.
Entre 1945 e 1974, mudou de país 15 vezes, e 21 vezes de clube. Números impressionantes, talvez até inéditos, mas não totalmente invulgares entre os grandes treinadores da época. Dirigiu grandes e pequenas equipas na Holanda, na Jugoslávia, na Hungria, na Roménia, em Itália, na Argentina, em Chipre, no Brasil, em Portugal, no Uruguai, na Suíça e na Grécia. É considerado um dos mais brilhantes elementos de uma geração de treinadores húngaros – entre os quais se encontram também Márton Bukovi ou Gusztáv Sebes – cujo trabalho conjunto ajudou a criar uma das grandes equipas da história do futebol, a Aranycsapat, a “equipa de ouro”, nome pelo qual ficou conhecida a seleção húngara na década de 1950. Este grupo de treinadores impulsionou também mudanças táticas e técnicas no futebol mundial, ao introduzir dinâmicas ainda inexploradas no modelo WM, até então o sistema de referência no plano internacional, que tinha sido implementado por Herbert Chapman no Arsenal de Londres na segunda metade da década de 1920. No final dos anos 1940, no Kispest (mais tarde Honvéd), Guttmann treinou muitos dos jogadores que fizeram a fama do futebol daquele país, como Ferenc Puskás ou József Bozsik. Após o termo deste contrato, não regressou à Hungria. Sagrou-se campeão em Itália, com o AC Milan, onde também trabalhou com jogadores de nível mundial, tendo aí conhecido em detalhe os sistemas defensivos das equipas italianas, que ganhariam reconhecimento próprio na ideia de catenaccio. O ano de 1956 foi crucial no seu percurso: adquiriu nacionalidade austríaca, com o apoio dos dirigentes federativos daquele país, e, depois da revolta húngara, dirigiu no exílio a equipa do Honvéd, numa digressão pela América do Sul que lhe abriria a possibilidade de treinar o São Paulo. Terá sido um dos responsáveis pela implementação do sistema 4-2-4 naquele clube brasileiro, esquema tático que acabou por ser adotado pela seleção campeã do mundo em 1958. O ponto alto da sua carreira foi vivido ao serviço de um clube português, o Sport Lisboa e Benfica, que treinou pela primeira vez entre 1959 e 1962.Não obstante o lugar central de Guttmann na história do futebol mundial, resultado desta trajetória singular, na imaginação portuguesa o seu nome evoca habitualmente duas histórias: a conquista de duas Taças dos Clubes Campeões Europeus consecutivas pelo Benfica, nas épocas de 1960-61 e 1961-62, em finais disputadas contra o Barcelona e o Real Madrid, poderosas equipas espanholas cujo estilo de jogo também foi moldado por jogadores e técnicos húngaros; e o mito da maldição que teria lançado sobre a equipa da Luz depois de ser despedido – em conflito, como tantas vezes ao longo da sua carreira, com dirigentes cuja gestão autoritária, patrimonialista e clientelar chocava com o seu projeto de profissionalização do desporto –, profetizando que nem em 100 anos o clube voltaria a vencer uma competição europeia. Para quebrar a maldição, e depois de mais uma final perdida em 2013, em fevereiro de 2014 o Sport Lisboa e Benfica inaugurou uma estátua de dois metros do seu antigo treinador. Três meses mais tarde, voltou a perder uma final europeia, desta feita frente ao Chelsea.
Deixando estes episódios de lado, a longa história deste treinador de futebol permite-nos considerar o desenvolvimento do futebol e a profissionalização do jogo a nível planetário. Ao mesmo tempo, o estudo do seu percurso em Portugal, inserido no quadro de uma prosopografia de uma geração de treinadores húngaros, vem questionar a relação entre estilos de jogo e representações da identidade nacional: talvez se possa argumentar que o futebol português foi inventado por treinadores húngaros. Ou talvez seja possível ir ainda mais longe e dizer que, quando chegou a Portugal, Guttmann, tal como outros seus compatriotas antes dele, nem seria já um treinador húngaro. Nas suas próprias palavras: “Durante a minha longa carreira estive em muitos países e trabalhei em alguns deles. Sempre que via uma boa ideia de jogo roubava-a e guardava-a para mim. Ao fim de algum tempo, fazia um cocktail com esses ingredientes surripiados“ (Claussen 2015: 131). O futebol português, tal como o futebol húngaro, austríaco ou brasileiro, ou qualquer outro, emerge como o resultado dessa mistura de influências, intrinsecamente transnacional.
- Creator
- Kumar, Rahul
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Date Issued
- 12-11-2024
- References
- Bolchover, David (2018). Béla Guttmann: de sobrevivente do holocausto a glória do Benfica. Alfragide: Oficina do Livro.
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Citation
Kumar, Rahul, “Béla Guttmann,” Connecting Portuguese History, accessed December 12, 2024, http://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/39.