Jardim do Príncipe Real
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- Jardim do Príncipe Real
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- No início da década de 1880, o jardim do Príncipe Real era um dos endereços mais exclusivos de Lisboa. Os seus palacetes e os seus proprietários reproduziam a opulência que caracterizava a alta sociedade europeia da época. Este texto conta a história de três fenómenos entrelaçados: a emergência de um novo espaço público, o desenvolvimento de um novo tipo de arquitectura doméstica e a consolidação de uma nova classe social. Esta é também uma história que cruza a escala local, a nacional e a global.
- Description
- No início da década de 1880, o jardim do Príncipe Real era um dos endereços mais exclusivos de Lisboa. Os seus palacetes e os seus proprietários reproduziam a opulência que caracterizava a alta sociedade europeia da época. Este texto conta a história de três fenómenos entrelaçados: a emergência de um novo espaço público, o desenvolvimento de um novo tipo de arquitectura doméstica e a consolidação de uma nova classe social. Esta é também uma história que cruza a escala local, a nacional e a global.
Os “empresários” que moravam no Príncipe Real compunham um grupo social relativamente recente, um colectivo unido por ambições e comportamentos semelhantes. Quase todos partilhavam uma origem colonial comum: haviam enriquecido rapidamente com a extracção, a produção ou o comércio de mercadorias tropicais e haviam acumulado lucros avultados com um sistema baseado no trabalho escravo. A origem violenta das suas fortunas foi, no entanto, convenientemente esquecida quando o capital se aplicou em negócios metropolitanos, aparentemente mais civilizados, mas igualmente lucrativos: indústrias, empresas de transporte e de comunicação, e instituições financeiras. Hoje, seguir o rasto desse dinheiro torna-se ainda mais difícil, porque o capital acumulado no espaço do império, e colocado ao serviço de companhias metropolitanas, acabou investido na própria cidade. As mesmas instituições de crédito que financiaram a transformação da paisagem urbana de Lisboa no final do século XIX eram propriedade destes homens. E foi exactamente nas novas ecologias residenciais segregadas, que a banca produziu para a classe alta, que eles mandaram erguer os seus palacetes. Materializando um imaginário liberal específico, criado em torno de costumes e de cultura, gosto, educação e ideias de civilidade, estas casas sumptuosas ajudaram a afirmar a posição destes homens como membros da alta burguesia global.
Nos palacetes do Príncipe Real viviam personagens como Policarpo José Lopes dos Anjos, José Ribeiro da Cunha, Tomás de Nápoles Nogueira e Veiga (1º Visconde de Alenquer), Manuel Joaquim de Faria, António Pereira de Carvalho, Carlos Ferreira dos Santos Silva, José Rodrigues Penalva (1º Visconde de Penalva de Alva) e João Paulo Cordeiro. Alguns eram herdeiros ricos, mas outros haviam construído eles mesmos as suas fortunas e poder. Aqueles que tinham subido na escala social escondiam as suas origens humildes em cidades do interior do país, como Sertã, Vila Verde, Vizela ou Covilhã. A maioria tinha ganho muito dinheiro, directa ou indirectamente, com negócios no Atlântico: Penalva possuía plantações de cana-de-açúcar, engenhos e escravos em Campos dos Goytacazes, no Brasil; Cordeiro manteve homens e mulheres escravizados a trabalhar na sua grande fábrica de tabaco no Rio de Janeiro, até morrer em 1882; Faria construiu um império de dois mil contos de réis (o equivalente a 50 milhões de euros em 2024) com o comércio da borracha da Amazónia na província do Pará; Santos Silva lucrou também com a borracha, trabalhando com os seus parentes maternos La Rocque e casando-se com a família Gaudêncio da Costa, juntando assim dois dos clãs mais ricos de Belém do Pará; Anjos fez fortuna numa fábrica em Alcântara, que tecia panos de algodão para vestir os africanos do império português.
O poder económico e a influência desses homens cresceram com a expansão global do sistema financeiro. É possível usar a trajectória de Santos Silva como exemplo: ao regressar a Portugal após quase 15 anos no Brasil, aplicou o seu dinheiro na banca, um dos segmentos económicos mais promissores à época. Juntando-se aos irmãos Pinto da Fonseca, que enriqueceram com o tráfico ilegal de pessoas escravizadas, e a Francisco Izidoro Berganthi Gonçalves Amorim Vianna, herdeiro de uma fortuna antiga, fundou em 1861 o Banco Fonsecas, Santos e Vianna. Este banco mercantil negociava para a Europa fardos de algodão do Maranhão, volumes de borracha do Pará e sacas de café de São Tomé, mas rapidamente se ligou à alta finança, intermediando operações entre o Estado português e os bancos franceses, britânicos e alemães. A carteira de investimentos de Santos Silva reunia acções da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, da Brazilian Submarine Telegraph Company, da West of India Portuguese Guaranteed Railway Company ou da Compagnie du Sud-Est Africain da Bélgica, cruzando quatro continentes e diferentes impérios.
Assim como Santos Silva, outros capitalistas do Príncipe Real tinham participações em empresas que operavam internacionalmente. No entanto, a maioria do seu capital financiou projectos metropolitanos: parte desse dinheiro serviu para pagar os “melhoramentos materiais” do regime liberal, as novas infra-estruturas (ferrovias, linhas de telégrafo e portos) que no século XIX ajudaram a transformar a paisagem portuguesa e a criar o mercado interno nacional. O regime liberal, por sua vez, criou condições para que os negócios fossem lucrativos: os empresários beneficiaram de monopólios, de subsídios e de taxas de juros garantidas pelo Estado. Cordeiro, Penalva, Santos Silva e Ribeiro da Cunha, por exemplo, eram donos de um dos mais rentáveis monopólios privados portugueses, o da transformação e comércio do tabaco.
Em meados do século XIX, estes homens compreenderam que a própria cidade oferecia oportunidades para o emprego seguro das suas fortunas. Com o crescimento da população de Lisboa, o governo municipal foi forçado a planear a expansão do tecido urbano, a construir novas redes de esgotos, água, gás e transportes, e a pedir dinheiro emprestado para financiar tais operações de larga escala. Em resposta, surgiram instituições bancárias de perfil dedicado. A Companhia Geral do Crédito Predial Português (1864) – inspirada no Crédit Foncier francês – tinha como alvo primeiro o mercado das hipotecas sobre imóveis, mas, com o tempo, viria a especializar-se em empréstimos municipais. Os balancetes do Crédito Predial mostram que a década de 1880, coincidindo com o desenvolvimento urbano de Lisboa, foi a mais próspera na história do banco: de dividendos de 7% em 1868, o banco passou em 1886 a pagar juros de 10% aos seus accionistas, e de 12% em 1889. Ribeiro da Cunha, Anjos e Santos Silva estavam entre os portugueses e franceses que ocupavam lugares nos órgãos de direcção do Crédito Predial, sendo que Anjos era também vereador da Câmara Municipal de Lisboa.
A Avenida da Liberdade, construída durante a década de 1880, no auge da expansão urbana da capital, é muitas vezes apresentada como a quintessência da Lisboa europeia e moderna. Mas o jardim do Príncipe Real, inaugurado em 1869, antecipou em quase duas décadas as ambições e objectivos da Avenida. Em 1850, não havia nenhum jardim, nem mesmo uma praça, naquele local bastante marginal. O espaço servia sobretudo como depósito de lixo, e era usado como abrigo por “mendigos”, por “ladrões” e por “prostitutas de terceira classe”, que preocupavam as autoridades políticas, os técnicos (que haviam acabado de instalar a Escola Politécnica nas proximidades) e as elites económicas. Pensando nessas “classes perigosas”, as autoridades de Lisboa trabalharam diligentemente para limpar e sanear esta parte da cidade, despejando os “pobres”. O governo da cidade tinha grandes ambições económicas e sociais quando investiu na transformação física da área. Antecipando um futuro nobre, a praça recebeu o nome do filho primogénito da rainha D. Maria II, o Príncipe Real D. Pedro.
A primeira operação urbana centrou-se no nivelamento do terreno, abrindo caminho para o tão desejado jardim. De acordo com a teoria francesa, ensinada aos especialistas da Câmara Municipal de Lisboa nos livros e nas colecções de desenhos comprados em Paris, o papel civilizador exercido pela natureza domesticada era um importante correctivo para os problemas da vida urbana moderna. Dessa forma, os engenheiros da Câmara plantaram árvores em todos os “vazios” urbanos. Em junho de 1869, quando o jardim do Príncipe Real foi inaugurado, a cidade ganhou um novo espaço para actividades virtuosas ou frívolas durante o dia, mas também durante a noite, graças à iluminação a gás.
A luz artificial estava entre as tecnologias mais modernas do século XIX. Se, em alguns contextos, o gás serviu objectivos emancipadores, alimentando os sonhos do proletariado mundial que reivindicava a noite para a sua educação, no caso do Príncipe Real a iluminação serviu sobretudo para garantir a segurança das classes abastadas. Naquele espaço, a luz artificial não foi redentora, mas repressora, tendo ajudado a expulsar mulheres de reputação duvidosa. Quando o jardim foi apropriado por mães burguesas e pelos seus filhos, quando os “pobres” foram reintegrados como cocheiros e bonnes (criadas domésticas ao estilo francês), surgiram ainda novas dinâmicas de vigilância. Passeando pelo jardim, mulheres respeitáveis passaram a controlar-se mutuamente e a supervisionar os actos dos subordinados, policiando as virtudes colectivas da sua classe.
O jardim do Príncipe Real, mesmo sendo público e sem vedação, foi planeado com uma ideia clara em mente: a da exclusão socio-espacial de grupos específicos. Na verdade, o projecto de bairros socialmente homogéneos era uma das características modernas do urbanismo do século XIX. As ecologias urbanas segregadas, para além de ordenarem a paisagem social da cidade, também respondiam a objectivos económicos. É importante notar que o mercado imobiliário fazia parte das carteiras de investimento dos capitalistas lisboetas. Com a ajuda do Estado e dos seus engenheiros, banqueiros e “empresários”, o Príncipe Real foi transformado num espaço onde o valor da propriedade só poderia crescer. Eles haviam criado um bairro para cidadãos ricos, respeitáveis e merecedores – em resumo, para si próprios.
Na década de 1870, a propriedade dos terrenos à volta do jardim do Príncipe Real estava concentrada nas mãos de um grupo específico de capitalistas, todos homens na faixa dos 50 anos, com fortunas com origens coloniais semelhantes e com padrões idênticos de mobilidade social, ascendente e rápida. Ao longo da vida, tinham construído uma densa rede de contactos. Conheciam-se do tempo passado no convés de navios transatlânticos, nas luxuosas salas de reuniões de bancos, de empresas e de instituições de caridade, nos foyers de teatros e de óperas, em carruagens de comboio durante viagens de negócios ou de lazer pela Europa. Alguns – como Ribeiro da Cunha e Pereira de Carvalho – tinham laços familiares, mas os palacetes eram o seu empreendimento colectivo mais sólido, voltado para a consolidação de uma nova posição social.
Embora diferentes na forma e na estética, essas casas unifamiliares compartilhavam muitas características: todas tinham fachadas imponentes, que reflectiam um mesmo padrão de gosto; todas tinham grandes salões, para acolher uma infinidade de eventos sociais; todas tinham quartos esconsos, para os criados residentes que garantiam os níveis adequados de respeitabilidade burguesa; uns quantos ostentavam frontões ornamentados, que indicavam o enobrecimento de alguns daqueles homens.
No entanto, apesar dessas semelhanças, quando olhamos atentamente é possível encontrar diferenças importantes. Essas diferenças interessam porque os palacetes eram, em última instância, o retrato de seus proprietários. E alguns desses homens celebraram as suas realizações individuais de forma contrastante. Anjos, por exemplo, decidiu investir no prestígio de Giuseppe Cinatti, o arquitecto italiano famoso por desenhar os cenários do Teatro de São Carlos e por projectar os palacetes de membros estabelecidos da classe alta da capital. Anjos e Cinatti optaram pela gravidade e solenidade neoclássicas, levando os contemporâneos a classificar este palacete como uma das “casas mais harmónicas, mais nobremente correctas, mais agradavelmente proporcionais e elegantes” de Lisboa (Júlio de Castilho, citado por Leal 1996, vol 1, p. 246).
A abordagem de Ribeiro da Cunha foi bem distinta: contratou um arquitecto português menos famoso, Henrique Carlos Afonso, e optou por um estilo arquitectónico verdadeiramente revolucionário. Combinando várias linguagens, o seu palacete era uma mistura ecléctica de janelas e cúpulas de inspiração mourisca, uma escadaria nobre de estilo clássico, e salas com motivos de Pompeia. Os críticos não foram simpáticos, classificando a casa como uma anomalia estética e descrevendo com desprezo a sua “fachada ornada de melancias” (Almeida 1904, p. 102). Mas esse tipo de liberdade estilística, nova na história da arquitectura, espelhava melhor o carácter transgressor desses homens, desafiando limites rígidos de classe e de prestígio. Essa liberdade inspirou outros capitalistas e outras arquitecturas. No final do século XIX, uma réplica deste palacete foi construída a 6.000 km de Lisboa por um empresário português, numa das avenidas mais elegantes e modernas de Belém do Pará.
Desenhos de arquitectura eram apenas mais um item que cruzava o Atlântico. Na verdade, a história do Príncipe Real foi uma história de circulação de pessoas e bens, de capitais e ideias. Este espaço urbano, profundamente enraizado em Lisboa, emergiu de processos transnacionais de rápido crescimento económico, enorme concentração de riqueza, expropriação e pilhagem. Em conjunto, escravos africanos, borracha da amazónia, acções de empresas de caminho de ferro indianas, imaginário urbano parisiense, engenharia portuguesa e cultura italiana compuseram a história deste bairro. O Príncipe Real pode por isso ser visto como uma expressão das redes imperiais e globais que contruíram a nação e o capitalismo português do século XIX.
- Creator
- Macedo, Marta
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Date Issued
- 29-11-2024
- References
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Dublin Core
Collection
Citation
Macedo, Marta, “Jardim do Príncipe Real,” Connecting Portuguese History, accessed December 26, 2024, http://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/47.
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