Agências de passagens e passaportes

- Title
- Agências de passagens e passaportes
- Abstract
- As agências de passagens e passaporte foram agentes intermediários privilegiados no estímulo às migrações portuguesas contemporâneas transatlânticas. Nesta entrada podemos compreender os seus perfis socioprofissionais e, a partir de Portugal, o seu modus operandi realizado a partir das suas conexões transnacionais.
- Description
- A análise dos movimentos migratórios internacionais dos séculos XIX e XX exige que eles sejam pensados à luz dos agentes intermediários que os estimularam. A crescente procura de trabalhadores migrantes no século XIX, a modernização dos meios de transporte e a intensificação das conexões transnacionais com os indivíduos migrantes ajudaram a densificar a figura dos intermediários (Feys 2012; Keeling 2013; Gonçalves 2008). Através de uma atividade desenvolvida em rede entre os locais de saída, de trânsito e de chegada, os intermediários transcenderam as barreiras nacionais.De agentes bancários, empregados comerciais, donos de pensões, recrutadores e companhias de transporte (marítimas, áreas ou terrestres) a armadores ou a industriais (para citar somente alguns), eles caracterizavam-se pela grande diversidade dos seus perfis socioeconómicos e profissionais, pelas funções que desempenhavam no negócio transnacional da emigração e pelas suas capacidades para influenciar os comportamentos migratórios e as políticas migratórias. Os intermediários também se definiam pela capacidade para reter ou/e fazer circular conhecimento sobre as oportunidades e as condições migratórias junto dos migrantes.
Tal como noutros países que possuem uma longa tradição emigratória transatlântica e europeia, as saídas a partir de Portugal foram sustentadas por agentes intermediários privados, dentro de um negócio cada vez mais regulamentado (Santos 2023). De entre os intermediários, desde o século XIX até 1947 destacaram-se as agências de passagens e passaportes. Segundo a definição oficial de 1919, estas agências tinham a função de vender bilhetes de passagem para o estrangeiro em nome das companhias de navegação inglesas, francesas, holandesas ou alemãs, assim como de disponibilizar passagens gratuitas a famílias e indivíduos no âmbito da emigração subsidiada para o Brasil. A atividade das agências de passagens e passaportes também contemplava pedidos de documentação junto das autoridades locais nacionais (governadores civis), no estrangeiro (consulados) e nas colónias. A natureza transnacional da atividade das agências de passagens e passaportes facilitava a conexão direta ou por meio de outros intermediários (como companhias de navegação, ou homens de negócios). A partir do trabalho quotidiano, estes agentes faziam parte da rede transnacional que envolvia entidades públicas nacionais e estrangeiras (polícias, consulados, funcionários públicos) e que estava intrinsecamente conectada com a esfera privada.
As agências de passagens e passaportes atuaram em três regimes políticos diferentes (Monarquia Constitucional, Primeira República e Estado Novo) e no quadro de políticas emigratórias cada vez mais seletivas na organização das saídas legais. Por isso, a intervenção estatal centrou-se também na regulação de toda a atividade ligada à emigração, inclusive das agências. Depois de 1947, data em que o governo ditatorial português lhes retirou a função de organizar a emigração, as agências foram obrigadas a direcionar a sua estratégia empresarial para o negócio do turismo, através da abertura de agências de viagens. Este referencial legislativo não significou, contudo, que deixassem de se envolver na emigração irregular. Pelo contrário, o caráter transnacional da sua atividade e dos movimentos migratórios, as contradições das regulamentações migratórias e os limites na sua aplicação proporcionaram uma certa continuidade.
Repartidas pelo território nacional, as agências de passagens e passaportes multiplicaram-se com as oportunidades de lucro que a emigração oferecia. Sediaram-se primeiro nas cidades portuárias (Porto, Aveiro, Braga, Lisboa) e seus arredores, e em seguida no interior norte e centro do país, de maneira a acompanhar a extensão do fenómeno migratório. De acordo com as estatísticas oficiais disponíveis, entre 1919 e 1948, o número de agências de passagens e passaportes legalmente registadas passou em 1924 de 50 para 279, em 1937 para 85 e, finalmente, em 1948 para 37 agências. As flutuações dos números explicam-se principalmente pelo encerramento progressivo das portas à entrada de migrantes pelos países de acolhimento (como o Brasil e os EUA), um encerramento que se acelerou durante a Grande Depressão e que provocou, consequentemente, desinteresse das agências no negócio da emigração pela falta de lucro.
Não obstante a diversidade dos perfis socioeconómicos e profissionais dos agentes que as dirigiam, a acumulação de conhecimento sobre o modus operandi, sobre as regulamentações nacionais e sobre a indústria da emigração em geral fez com que a atividade desenvolvida pelos agentes de passagens e passaportes sediados em Portugal tivesse um caráter transnacional. Os agentes de passagens e passaportes podiam ser antigos agentes policiais de emigração, antigos militares, guarda-livros ou funcionários públicos, os quais viam na emigração uma oportunidade para lucrar e assim melhorarem as suas condições de vida. A ligação ao setor do comércio local e internacional (Brasil, EUA, Inglaterra, França, Espanha, Argentina) e/ou ao setor financeiro e político talvez seja uma das características mais comuns das agências de passagens e passaportes, em particular as localizadas nas principais cidades portuárias (Lisboa e Porto). As agências podiam ser casas comerciais que se caracterizavam pela diversidade dos negócios em que estavam envolvidas. Algumas delas chegaram a especializar-se no transporte de emigrantes e de turistas, tornando-se negócios familiares duradouros, como a Agência Abreu.
A prática de organizar a emigração multiplicou as ligações destas agências em Portugal e no estrangeiro, na esfera pública e privada, e reforçou a sua representatividade na indústria da emigração e a sua influência neste ramo, nomeadamente junto das empresas marítimas de transporte. Ao mesmo tempo, levou a que elas acumulassem um capital informacional transnacional que as tornou, em Portugal, experts em operacionalizar as saídas, dentro ou fora das regulamentações nacionais sobre a mobilidade, e independentemente do ciclo migratório.Com acesso privilegiado ao conhecimento sobre as modalidades da emigração, as agências definiam-se ainda pelo seu envolvimento em práticas irregulares. Foram capazes de construir e aplicar estratégias para contornar a regulamentação legal e as dificuldades impostas à mobilidade internacional. A partir de um trabalho em rede, recrutavam trabalhadores por conta de empresas privadas estrangeiras e forneciam documentação falsa, capaz de ludibriar a vigilância administrativa e policial local.
A sua intervenção na emigração legal e irregular não significou, contudo, que as agências de passagens e passaportes fossem os únicos atores detentores de um savoir-faire para agenciar as saídas. Os próprios emigrantes construíram, mediante redes sociais tecidas entre cá e lá, um conhecimento próprio, complementar ou oposto ao das agências, sobre as oportunidades e modalidades de saída, dando também aos indivíduos certos meios para negociar as condições de emigração. - Creator
- Santos, Yvette dos
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Date Issued
- 3-01-2025
- References
- Feys, Torsten (2012). The Battle for the Migrants: The Introduction of Steam shipping on the North Atlantic and Its Impact on the European Exodus (Research in Maritime History). Liverpool: Liverpool University Press.
Gonçalves, Paulo César (2008). Mercadores de braços: riqueza e acumulação na organização da emigração européia para o novo mundo. Tese de doutoramento em História Económica na Universidade de São Paulo.
Keeling, Drew (2013). The Business of Transatlantic Migration between Europe and the United States, 1900-1914: Mass migration as a transnational business in long distance travel. Zurique: Chronos.
Santos, Yvette (2023). Ditadura portuguesa e política emigratória: Criação, pensamento e ação da Junta da Emigração. Imprensa de Ciências Sociais.
Collection
Citation
Santos, Yvette dos, “Agências de passagens e passaportes,” Connecting Portuguese History, accessed March 6, 2025, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/82.
Item Relations
Item: Santos, Yvette dos | dcterms:creator | This Item |