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MedievalismosMedievalismosIdade Média
Historiografia
Comemorações
Usos do passado
Património
Subject:Idade Média
Historiografia
Comemorações
Usos do passado
Património
Description:Vista como uma idade de trevas, violência e superstição ou, alternativamente, de civilização e valores cavalheirescos e comunitários, o período histórico habitualmente designado como “Idade Média” exerce desde há muitos séculos um fascínio enorme que se perpetua até aos nossos dias e se estendeu às mais diferentes geografias. O termo “medievalismo” pode ser simultaneamente entendido como o estudo da “Idade Média” num contexto académico ou como a representação ou uso de eventos, temas, conceitos, obras e figuras consideradas “medievais” em épocas posteriores à Idade Média. O conceito remonta à década de 1830 no contexto britânico, tendo sido popularizado em 1853 pelo escritor, filósofo e crítico de arte John Ruskin, que assim descreveu uma das três épocas da história da arquitetura europeia, em contraposição com o que chamou de “classicismo” e “modernismo” (Workman 1986, p.378). Esta entrada centra-se nos vários “medievalismos”, entendidos como os diferentes estudos, narrati-vas, representações e usos da Idade Média em Portugal entre o início do século XIX e a década de 1940. Por Idade Média entender-se-á o período tradicionalmente considerado entre o século V d.C. e a primeira metade do século XV. O texto focar-se-á em três campos: a historiografia – ou seja, o que se escreveu sobre o período medieval; as representações e práticas patrimoniais – como o património material da Idade Média foi entendido, preservado restaurado; e as comemorações – como figuras e eventos do passado medieval português foram comemoradas no espaço público. A história dos medievalismos em Portugal está indelevelmente ligada a acontecimentos políticos, transformações socioeconómicas e correntes culturais que marcaram outros países ao longo da época contemporânea. Um dos fenómenos que maior impacto teve no contexto português foram as Invasões Francesas de 1807-1811. À semelhança de outras partes da Europa, a destruição de várias obras de arte de ori-gem medieval (e não só) no contexto das Guerras Napoleónicas suscitou um interesse específico pelas tradições consideradas nacionais, em específico as da Idade Média (Geary e Klaniczay 2013, pp.1-2). Por outro lado, a independência do Brasil em 1822 levou as elites portuguesas a virarem-se para a história nacional, em busca de modelos políticos capazes de inspirar uma futura regeneração. A Idade Média era representada como a época fundadora e diferenciadora da história de Portugal, aquela na qual as supostas caraterísticas da nação haviam adquirido o seu cariz mais puro e original, antes da sua alegada decadência. No entanto este fenómeno estava longe de ser único à realidade portuguesa. Na realidade, pela mesma altura, as elites doutras nações europeias, apesar dos seus diferentes processos históricos, partilhavam uma visão semelhante do seu próprio passado medieval, demonstrando assim o cariz profunda-mente paradoxal dos medievalismos enquanto fenómeno transnacional. À semelhança do que sucedeu em países como o Reino Unido, a década de 1840 constituiu um marco significativo ao nível da produção literária, historiográfica e artística de inspiração medievalista em Portugal (Matthews 2015, p.xi). Data deste período a publicação das primeiras obras literárias ambientadas na Idade Média por parte autores identificados com o Romantismo como Alexandre Herculano e Almeida Garrett, parcialmente inspirados nos trabalhos de escritores como o escocês Walter Scott e o francês Victor Hugo. O próprio Herculano iniciou a escrita dos seus principais estudos historiográficos neste período, tendo como época de maior enfoque o período medieval. Influenciado por autores ligados ao liberalismo francês, notavelmente os histo-riadores François Guizot e Augustin Thierry, Herculano imaginava a Idade Média como uma época de conquista de liberdades cívicas, em contraste com o despotismo que alegadamente havia caracterizado as épocas antiga e moderna (Groebner 2008, pp.91-92; Martins 2020, pp.456-457). Do mesmo modo, e à semelhança de historiadores românticos contemporâneos como o espanhol Modesto Lafuente, o autor português concebia a época medieval do seu país como um período com características políticas e sociais singulares, marcado pela ausência de feudalismo e pelo poder dos concelhos e das Cortes (López-Vela 2004, pp.221-224). Este interesse por tudo o que respeita à Idade Média deixou profundas marcas na cultura portuguesa desde então. Na realidade, não eram apenas a historiografia sobre as instituições políticas e a sociedade no Portugal medieval que conhecia um importante avanço na década de 1840. Produzidos em grande medida como uma res-posta nacionalista aos trabalhos de autores estrangeiros como o geógrafo e naturalis-ta alemão Alexander von Humboldt e o político e historiador francês Louis Estancelin, os principais estudos de historiadores como o Cardeal Saraiva e o Segundo Visconde de Santarém em torno da primazia portuguesa nos chamados “Descobrimentos” foram publicados também neste período. Ao nível da produção artística e da intervenção patrimonial, os anos de 1840 são ainda marcados pelo início de dois grandes projetos de inspiração medievalista sob o patrocínio do rei consorte D. Fernando II, príncipe da Casa de Saxe-Coburgo-Gota: o restauro do Mosteiro da Batalha – um dos maiores e considerado o mais emblemático edifício gótico português; e a construção do Palácio da Pena em Sintra, concebido pelo também alemão Wilhelm Ludwig von Eschwege num estilo revivalista largamente influenciado pela arquitetura dos castelos renanos. Na realidade, a Alemanha foi, a par do Reino Unido e da França, um dos centros a partir dos quais o medievalismo romântico irradiou pelo resto da Europa oitocentista, tendo um grande impacto em contextos como o português. Entre a segunda metade do século XIX e o início do XX o interesse pelo passado medieval não parou de crescer em Portugal. É nesta altura que o adjetivo “medieval”, que já era amplamente empregue nos meios académicos britânicos desde pelo menos a década de 1830, passou a ser também utilizado por autores nacionais (Matthews 2015, p.52). De facto, um conjunto de fatores socioeconómicos e políticos favorecia a manutenção do interesse pela Idade Média por parte das elites nacionais. À semelhança de que sucedia noutros países europeus, fenómenos como a urbanização e a industrialização geraram uma nostalgia romântica pelo passado pré-moderno, em especial pelo medieval. No caso especificamente português, as dificuldades em criar um “Terceiro Império” em África face à competição de várias potências europeias – cuja face mais visível foi o célebre Ultimato Britânico de 1890 – incentivavam visões decadentistas da história nacional, nas quais a Idade Média era frequentemente re-presentada como um contraponto idealizado ao suposto declínio que havia marcado o percurso da nação desde Época Moderna. São vários os paralelismos entre a visão sobre a Idade Média produzida por autores portugueses neste período e a historiografia estrangeira sobre esta época histórica. Em figuras como Teófilo Braga, nomeadamente a sua tese sobre aquilo que ele designou como a “raça moçárabe”, é possível identificarmos uma forte influência da obra do escritor e diplomata Arthur de Gobineau, dos debates sobre as origens raciais do povo francês e da historiografia em torno da alegada origem anglo-saxónica das instituições democráticas britânicas (Emery e Morowitz 2003, p.18; Alexander 2007, pp.131-132). Ecos de discursos de dualismo racial com origens no período medieval remetendo para contextos como a Grã-Bretanha, a França, a Espanha ou a Itália podem também ser encontrados na obra de autores contemporâneos como Alberto Sampaio ou Basílio Teles (López-Vela 2004, p.222). Já a famosa conferência de Antero de Quental, Causas da decadencia dos povos peninsulares nos ultimos tres seculos (1871), uma das mais marcantes apologias do período medieval produzidas em Portu-gal no século XIX, deve muito aos ideais iberistas então em voga. Igualmente na obra de Oliveira Martins é possível identificar paralelismos com autores estrangeiros de inspiração medievalista. Por exemplo, o seu Projecto de Lei de Fomento Rural (1887) baseava-se numa conceção idílica da estrutura agrária de Portugal na Idade Média com fortes semelhanças à que havia inspirado, na década anterior, as medidas legis-lativas do primeiro-ministro britânico Benjamin Disraeli neste campo (Chandler 1971, 182; Martins 2020, pp.458-463). Por outro lado, a descrição feita por Oliveira Martins das transformações políticas operadas pela crise de 1383-85 assemelhava-se às interpretações de vários historiadores espanhóis oitocentistas sobre o reinado dos Reis Católicos (López-Vela 2004, p.227) e revelava simultaneamente a influência do histori-ador suíço Jacob Burckhardt, cuja obra Die Kultur der Renaissance in Italien (1860) fi-gurava na biblioteca pessoal de Martins, em versão em língua inglesa. O autor portu-guês foi ainda um dos responsáveis pela difusão do mito em torno da figura do Infante D. Henrique, para o qual o geógrafo inglês Richard Henry Major, com a sua obra The life of Prince Henry of Portugal, surnamed the Navigator – publicada em 1868 e tradu-zida para português em 1876 –, também muito contribuiu. Na realidade, o infante quatrocentista tornar-se-ia uma das figuras mais marcantes do medievalismo portu-guês, muito graças ao quinto centenário do seu nascimento, celebrado no Porto em 1894, e que, tal como eventos idênticos realizados noutros países europeus pela mesma altura, profundamente contribuiu para a criação e consolidação de uma iden-tidade nacional em torno de uma história comum (Figura 1). No campo da historiografia da arte e das intervenções no património medieval, é possível identificar também fortes influências externas. O contraste entre a aparente nobreza e espiritualidade da arquitetura medieval e o carácter supostamente artificial e utilitário das construções modernas, salientado por autores ligados ao medievalismo inglês como Augustus Welby Pugin, Ruskin e William Morris (Alexander 2007, 88-90), pode ser encontrado em obras como O Culto da Arte em Portugal (1896), de Ramalho Ortigão. De facto, a admiração de Ortigão pela arte medieval não o impedia de concordar com a ideia partilhada por vários intelectuais e artistas franceses, ingleses e alemães oitocentistas de acordo com a qual o estilo gótico era o que melhor encarnava o “génio” destas nações (Emery e Morowitz 2003, p.92; Alexander 2007, pp.78-81). A preferência do autor português ia assim para o estilo manuelino, considerado o ver-dadeiro “estilo nacional” e uma expressão local do gótico numa fase de expansão da arquitetura renascentista. No que toca às teorias de restauro, o pensamento do arqui-teto francês Eugène Viollet-le-Duc, responsável por intervenções em edifícios icónicos como a Sainte-Chapelle e a Catedral de Notre-Dame em Paris, exerceu um grande impacto nos trabalhos levados a cabo em monumentos medievais portugueses como a Sé Velha de Coimbra, a Sé da Guarda ou o Castelo de Leiria. Neste último caso, o projeto de restauro, da autoria do arquiteto suíço Ernesto Korrodi, acabaria por não ser concretizado na sua totalidade. Já no caso da intervenção na Sé Velha de Coimbra, o responsável pelos trabalhos, o historiador de arte e arqueólogo António Augusto Gon-çalves, procurou inspiração na arquitetura românica das catedrais de Ávila e Zamora para algumas das alterações introduzidas (Figura 2). Durante a primeira metade do século XX, a historiografia portuguesa sobre a Idade Média intensificou as suas relações com trabalhos produzidos no estrangeiro. Na senda de autores espanhóis como José Amador de los Ríos, José Ortega y Gasset e Claudio Sánchez-Albornoz, António Sérgio procurou as causas do alegado declínio das nações ibéricas nas condições políticas e socioeconómicas que supostamente haviam condicionado a sua formação durante o período medieval (López-Vela 2004, p.225). Já nas décadas de 1920 e 1930, Sérgio, juntamente com outros historiadores como Jaime Cortesão e Alberto da Veiga Simões, usou as teses do historiador belga Henri Pirenne para explicar não apenas o surgimento do reino de Portugal no século XII, mas também as transformações socioeconómicas geradas pela crise de 1383-85. Simultaneamente, certas ideias sobre a Idade Média nacional continuavam a ser um motivo de instrumentalização política. Na década de 1910, e à semelhança do que faria Sánchez-Albornoz durante a Segunda República Espanhola, o engenheiro, deputado e futuro Ministro da Agricultura Ezequiel de Campos fundamentava os seus projetos de reforma agrária com base na ideia de que o país possuía vastas e estagnadas regiões rurais cujo modo de vida e produtividade permaneciam praticamente inalterados desde o período medieval. Pela mesma altura e num campo político totalmente oposto, os integralistas portugueses, notavelmente António Sardinha, baseavam os seus modelos políticos numa visão da Idade Média inspirada por autores franceses como Pierre Guil-laume Frédéric Le Play, Fustel de Coulanges ou Charles Maurras (Martins 2020, pp.465-468). A influência do pensamento conservador e católico francês pode ainda ser encontrada num autor como o jornalista, escritor e historiador João Ameal. Figuras como François-René de La Tour du Pin, Jacques Maritain, Henri Massis ou ainda o russo Nikolai Berdiaev deixaram uma profunda marca nos discursos de Ameal em torno da ideia de uma Idade Média espiritual, ordeira e unida face à desagregação, individualismo e materialismo alegadamente trazidos pela modernidade (Workman 1986, p.280). Esta ideia serviria em grande medida de base ideológica legitimadora para a ditadura militar implantada em 1926 e sobretudo para o regime do Estado Novo a partir de 1933. Também no que toca ao património material os medievalismos portugueses da primeira metade do século XX foram marcados por inúmeros influxos e paralelismos com outros países europeus. A título de exemplo, a atitude de uma boa parte das eli-tes nacionais face à arte eclesiástica depois da promulgação da Lei de Separação do Estado das igrejas de 1911 em muito se assemelhou à observada em França na se-quência do diploma análogo de 1905 (Emery e Morowitz 2003, p.6). Durante a Primeira República, figuras como os historiadores de arte José de Figueiredo e Manuel Agui-ar Barreiros, o poeta Afonso Lopes Vieira ou o escritor Manuel Ribeiro buscaram inspi-ração nos escritos de Viollet-le-Duc, Ruskin e William Morris para descrever o alegado contraste entre a arte e o estilo de vida dos artistas medievais e os seus congéneres modernos. Motivado pelo restauro dos chamados “Painéis de São Vicente”, José de Figueiredo, juntamente com outros historiadores de arte como José Pessanha, procu-rou legitimar a existência de uma escola de pintura primitiva portuguesa, semelhante à que existira em locais como a Flandres e a Itália. Pouco depois, o Estado português ia desenvolvendo a ideia de promover turisticamente o seu património material medieval, um processo exemplificado pela publicação por parte da Repartição de Turismo do guia em língua inglesa Castles of Portugal (1925), da autoria do historiador, presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa e oficial da marinha Vicente Almeida d’Eça. O interesse pela arquitetura militar da Idade Média, de resto partilhado por outros países como Espanha (Nuñez-Herrador e Villena Espinosa 2022, pp.193-194), foi consubstanciado pela ação da Direção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) a partir da década de 1930 (Figura 3). Na realidade, os dirigentes e técnicos que trabalharam sob este organismo absorveram muitas das ideias oitocentistas em torno da arte e do restauro e que então continuavam a ter eco no seio dos sectores políticos mais à direita em países como a Alemanha e a Itália. Estas ideias incluíam a profunda admiração pela arte medieval no seu todo, o desprezo pela arte maneirista e barroca e o princípio da “unidade de estilo”, que fora aplicado em diversos edifícios europeus durante o século XIX (Ordieres Díez 1995, pp.118-119). Este princípio, fortemente seguido nas primeiras décadas de intervenções da DGEMN, seria alvo de con-testação interna por figuras como Raul Lino, partidário dos princípios de conservação postulados por autores como Ruskin e William Morris. No que respeita às comemorações do passado medieval, Portugal seguiu proces-sos semelhantes aos registados noutros países europeus durante a primeira metade do século XX. Um dos casos mais paradigmáticos foi, em 1920, a criação pela Primeira República da “Festa de Nuno Álvares Pereira”, claramente inspirada na Fête nationale de Jeanne d’Arc promulgada pela Terceira República Francesa uns meses antes. De facto, à semelhança do que sucedeu com a sua congénere francesa, a figura do con-destável português tornou-se um elemento nacional agregador no contexto da Primei-ra Guerra Mundial (Emery e Morowitz 2003, pp.22-25). Já durante o período do Estado Novo, e da mesma forma que o regime fascista em Itália fez em relação a outras figu-ras da Idade Média como Francesco Petrarca, o nobre português foi identificado com a mensagem de “ressurgimento nacional” que o novo regime pretendia transmitir (Martin 2005, pp.199-200). Um dos exemplos mais espetaculares da apropriação do passado medieval pela ditadura portuguesa, porém, foram as várias encenações histó-ricas organizadas nas décadas de 1930 e 1940 e que, tal como em eventos análogos organizados em países como a Alemanha ou o Luxemburgo pela mesma altura, representavam esta época em tons fortemente triunfalistas (Schweizer 2007, pp.142-162; Groebner 2008, p.108; Péporté 2011, pp.128-130 e 276). Nalguns destas recriações, foram utilizadas cópias de armaduras localizadas em museus estrangeiros, assim demonstrando como os organizadores destes eventos se preocupavam mais com uma ideia estereotipada do que era considerado “medieval” do que propriamente com uma noção de veracidade histórica (Figura 4). No contexto das comemorações do duplo centenário de 1940 e do oitavo centenário da conquista de Lisboa em 1947, o carácter transnacional destes eventos estava plasmado na forma como acontecimentos da Ida-de Média foram celebrados. No primeiro caso, a Batalha do Salado foi representada como um momento premonitório da aliança entre Salazar e Franco no contexto da Guerra Civil de Espanha e do chamado “Pacto Ibérico” de 1939. No segundo caso, os cruzados que participaram na conquista de Lisboa em 1147 foram apresentados como um sinal auspicioso das relações diplomáticas entre Portugal e outras nações europei-as como a Inglaterra, a Bélgica ou a Alemanha (Martins 2022). Apesar do aparente declínio dos usos políticos do passado medieval no pós-Segunda Guerra Mundial, este continuou a ser objeto de estudos importantes e de instrumentalizações várias. No contexto português, à semelhança do que sucedeu noutros países europeus, a democratização não representou uma rutura completa com muitos dos pressupostos nacionalistas que influíam nas representações da Idade Média. A época medieval continua hoje a gerar interesse popular e a ser uma base significativa para discursos identitários e apropriações ideológicas várias. [show more]
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