Colonização interna
- Title
- Colonização interna
- Abstract
- A colonização interna foi um conjunto de ideias, políticas e técnicas que visaram promover conjugadamente a agricultura e a ocupação humana de regiões consideradas desertas ou pouco produtivas de Portugal, em particular os baldios e os “incultos” dos latifúndios do Sul. Durante o Estado Novo, e especialmente durante a década de 1950, o projecto colonizador foi desenvolvido em articulação internacional, nomeadamente com a Espanha franquista e a democracia cristã italiana.
- Description
- Remontando ao século XIX, a colonização interna foi um conjunto de ideias, políticas e técnicas que visaram promover conjugadamente a agricultura e a ocupação humana de regiões consideradas desertas ou pouco produtivas de Portugal. No ambiente intelectual finissecular, as ideias modernas de colonização interna foram avançadas por reformistas agrários, no âmbito de ambiciosos programas de fomento ligados à agricultura (em particular através da reforma das estruturas agrárias) e, de maneira mais lata, à regeneração económica do Estado-nação, semelhante nos seus contornos a outros agrarismos europeus. Oliveira Martins foi o intelectual e político que ofereceu consistência doutrinal a propostas mais ou menos dispersas de povoamento do país, no seu muito citado «Projecto de Lei de Fomento Rural» (1887), apresentado – e nunca discutido – na Câmara dos Deputados, mas que se tornaria matriz do pensamento colonizador das décadas seguintes. Mais tarde, este e outros intelectuais, como o conservador católico Basílio Teles e o modernista Ezequiel de Campos, procuraram filiar-se, em diferentes modalidades, numa longa tradição intelectual de promoção da pequena agricultura e do povoamento na região das grandes propriedades do sul de Portugal.
Noutros países do sul da Europa, instituições, intelectuais e técnicos formularam ideias e planos colonizadores relacionados com o controlo das águas, de que são exemplo o caso italiano, em que se fez o saneamento de pântanos infestados de malária, e o caso espanhol, em que se planearam colonizações em terras beneficiadas pela irrigação (Monclús e Oyón 1988). Pela mesma altura, nos impérios continentais procurou-se estender e intensificar a soberania política e a exploração económica através da promoção da pequena propriedade: nos Estados Unidos da América, o povoamento europeu foi levado a cabo através de homesteads cultivados por colonos que se deslocavam para Oeste; na Europa, agricultores impulsionados pelas autoridades da Prússia e da República de Weimar fixaram-se nas fronteiras alemãs. Estas e as colonizações ultramarinas devem ser entendidas como parte dos repertórios do colonialismo no final do século XIX. Na época dos impérios, instituições estatais, empresas privadas (em especial de caminhos de ferro), intelectuais, técnicos, pioneiros e agricultores participaram na expansão territorial através da colonização, justificada pela conquista imaginária da última fronteira. Ideologicamente, estes processos tinham em comum a crença em que as práticas de aproveitamento, de divisão de terras e de instalação de colonos se legitimavam por uma missão civilizadora do Outro, humano e não-humano. A privatização das terras comuns, a agricultura intensiva, a multiplicação das propriedades privadas familiares e a fixação de populações locais "nómadas" foram algumas técnicas do imperialismo colonial do final do século XIX – por exemplo em Moçambique ou no Quénia –, levadas a cabo por potências europeias na sua luta pela ocupação e exploração de territórios africanos. Na época do imperialismo moderno, a colonização foi pensada e prosseguida não só em África, mas também no seio dos Estados-nação e dos impérios continentais.
Em Portugal, depois de algumas tentativas falhadas na década de 1920, as ideias colonizadoras institucionalizaram-se no âmbito da afirmação do Estado Novo, com a criação da Junta de Colonização Interna (JCI) em 1936 (Baptista 1991). Nesta altura, a colonização interna foi definida como «o conjunto de providências que têm por fim realizar, dentro de cada país, a mais completa utilização da terra e instalar nela, do modo mais racional, o maior número de famílias» (SNI [1949]). Enquanto modalidade de nacionalismo económico, técnicos da JCI dos anos 1930 e 1940 avançaram argumentos produtivistas e, sobretudo, populacionistas em prol da solução colonizadora, a ser prosseguida pela fixação ao solo pátrio da população em crescimento e pelo incentivo à produção agrícola, cumprindo objetivos autárquicos (Silva 2024). Impulsionada, em particular, pelo Ministro da Agricultura Rafael Duque, esta política assentava, por um lado, na expectativa de que a divisão e colonização das grandes propriedades do Alentejo e do Ribatejo com casais agrícolas decorresse com pouca intervenção estatal após a concretização do ambicioso Plano de Hidráulica Agrícola (1938); baseava-se, por outro, na vontade de colonização dos comuns das serranias nortenhas, areias litorais e outros territórios considerados parcamente produtivos, através de processos de reconhecimento, privatização e exploração destes baldios (Plano Geral de Aproveitamento de Baldios Reservados, 1944). Tratou-se de um processo de desapropriação e de colonização de terras que apresenta semelhanças ideológicas relevantes com as linguagens, os repertórios e as técnicas de colonização agrícolas empregados em África pelas potências imperiais desde há décadas. Da actividade colonizadora da JCI resultou a construção de sete colónias agrícolas: primeiro, Milagres e Martim Rei; na viragem para a década de 1950, Pegões, Gafanha, Barroso, Alvão e Boalhosa (Guerreiro 2022). Estas corresponderam a uma ruralidade cientificamente planeada, encenadas como espaço exemplar e propagandeadas enquanto obra colonizadora maior do Estado Novo. Ao fim de 25 anos, a JCI tinha, contudo, construído apenas 513 casais agrícolas, habitados por pouco mais de dois mil colonos, distribuídos por menos de nove mil hectares, o que tem sido interpretado pela historiografia como um resultado modesto em relação aos ambiciosos planos colonizadores. Porém, se se considerar a totalidade das acções colonizadoras da JCI, nas suas diversas modalidades, desde a criação de glebas a pequenos melhoramentos rurais, entende-se a sua importância na construção de um território produtivo nacional, mediado por técnicas agronómicas e sociológicas dirigidas primordialmente à promoção de médias explorações familiares (Silva 2024).
Longe de ser uma particularidade da história de Portugal, a política instituída pelo Estado Novo faz parte de um repertório de ideias, de planos e de projectos de colonização interna à escala europeia no período entre-guerras que passou, por exemplo, pelas reformas agrárias dos novos países da Europa central, pela colonização neerlandesa de novas terras aráveis, ou pela colonização das remotas regiões nortenhas da Suécia e da Noruega. Ancoradas em programas agrícolas, económicos ou políticos mais vastos, sucederam-se iniciativas estatais para fundar novas comunidades de pequenos proprietários, fundamentadas numa forte crença no progresso e na capacidade de domesticar a natureza e de civilizar os seres humanos (Van De Grift 2015). Revelando especificidades nacionais, as ideias e as políticas colonizadoras dos países europeus representavam uma solução integrada que respondia a preocupações diversas, incluindo a degenerescência social, o abandono dos campos, o desemprego massivo, ou a insegurança alimentar. As técnicas e práticas colonizadoras articularam, em diferentes modalidades e combinações, o povoamento de terras improdutivas, a reestruturação agrária, a modernização dos processos produtivos, a criação de uma classe média de camponeses, a prevenção do êxodo rural, a auto-suficiência alimentar, a estabilidade política ou o melhoramento dos níveis de vida das populações. A combinação de diferentes repertórios colonizadores revelou diferentes modelos de modernidade rural.
Em Portugal, a amálgama de motivos ajuda a explicar a popularidade da colonização interna ao longo do espectro ideológico (Rosas 2000). O Ministro da Agricultura Rafael Duque defendia a colonização como forma de resolver o “excesso populacional”, ou seja, para dar alimento, e sobretudo trabalho, à população em crescimento acelerado inédito, a qual, desde o início dos anos 1930, tinha visto fechadas as tradicionais vias migratórias para os países do continente americano. Mais abertamente ideológico, o presidente da Junta Autónoma das Obras de Hidráulica Agrícola, António Trigo de Morais, fascinado pela bonifica italiana, idealiza uma grande obra técnico-científica de redenção da terra e dos homens através da água e da colonização. O agrónomo e republicano Henrique de Barros, à semelhança de outros técnicos agronómicos da JCI, sublinha a sua função na democratização da terra e na elevação dos níveis de vida rurais.
As experiências de reforma agrária na Europa de Leste tiveram particular influência nos reformistas agrários dos anos 1920 e 1930. A mais importante proposta de reforma das estruturas agrárias em Portugal anterior ao Estado Novo, elaborada em 1925 por Ezequiel de Campos, Ministro da Agricultura num governo republicano de esquerda, foi declaradamente concebida segundo o modelo das reformas agrárias da «Europa Central» (Jugoslávia, Polónia, Roménia, Grécia, Hungria). Não foram estes, contudo, os modelos internacionais que mais influenciaram posteriormente a colonização interna no Estado Novo. Mais consequências teve o deslumbre com a bonifica integrale italiana e, em especial, a colonização do Agro Pontino. Por ordem do Ministro da Agricultura, o engenheiro agrónomo José Pereira Caldas – que seria mais tarde Presidente da JCI – fez em 1936 uma visita a Itália em que foi recebido pelo Sub-secretário de Estado para a Bonifica e em que conheceu o seu grande responsável na década anterior, Arrigo Serpieri. No entanto, nem por isso se deve situar a colonização interna exclusivamente no âmago dos fascismos europeus (Misiani 2011).
Após a II Guerra Mundial, o renascimento da colonização interna, em conexão com a colonização agrária franquista e a reforma agrária da democracia cristã italiana, permite, simultaneamente, repensar os seus fundamentos políticos e ideológicos e inseri-la no processo de longa duração das relações imbricadas entre os poderes de Estado, a ciência e modernidade rural. Amadurecidos os debates, as propostas e os projectos, a colonização interna foi no pós-guerra reconfigurada numa política de desenvolvimento rural, numa altura em que diferentes planos desenvolvimentistas e assistencialistas moldavam as discussões sobre a reconstrução dos Estados europeus. Durante a década de 1950, as políticas relativas à colonização interna foram formuladas, debatidas e negociadas em dois grandes momentos. Primeiro, no âmbito da preparação do I Plano de Fomento (1953-1958), quando políticos e, sobretudo, técnicos da JCI formularam ideias e planos colonizadores fundados nas virtudes cristãs das famílias proprietárias. A política colonizadora foi, primordialmente, defendida enquanto política social destinada a solucionar o problema do desemprego rural periódico, a elevar os níveis de vida rurais e a combater a crescente conflitualidade social no Alentejo. Tais vontades e planos foram gorados quando, em 1954, face à pressão política dos grandes proprietários do Sul, a possibilidade legal de expropriar terra privada e irrigada foi frustrada, em favor de um modelo apenas produtivista do desenvolvimento rural.
Entre 1959 e 1962, emergiram pela mão do agrónomo Eugénio de Castro Caldas planos colonizadores com maior fulgor e fundamento, os quais foram seriamente considerados pelas esferas governativas, nomeadamente por Salazar, aquando da preparação e implementação do II Plano de Fomento (1959-1964). Parte dos repertórios do desenvolvimentismo rural da Europa do Sul dirigidos às regiões subdesenvolvidas, como a Extremadura espanhola e a Sicília italiana, a colonização interna, rebaptizada de «parcelamento», assentava em ambiciosas obras infraestruturais, nomeadamente de hidráulica e de electrificação, nas grandes propriedades e na sua divisão em «explorações médias familiares». Estas obras visavam sustentar um aumento da produtividade agrícola na futura agricultura industrializada, que possibilitasse a migração de mão-de-obra para as indústrias, e, simultaneamente, uma melhoria das condições de vida nos campos que impedisse o êxodo rural (Baptista 1991). Esta foi uma política colonizadora, esgrimida ao nível governamental, que em 1961 teve a pressão diplomática e o suporte financeiro do governo da República Federal da Alemanha, aquando da negociação do acordo de cooperação entre os dois países (Silva 2024).
Ao longo desses anos 1950, não obstante as hesitações e incertezas das políticas colonizadoras, os conhecimentos técnico-científicos dos técnicos da JCI (em agronomia, sociologia, arquitetura) foram sendo desenvolvidos através de estadias em países estrangeiros, notavelmente em Itália e em Espanha, e da participação em organizações e encontros internacionais, nomeadamente da Organização da Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO-UN) (1959). Nestas relações transnacionais, foi a colonização agrária espanhola que mais profundamente moldou os planos da colonização portuguesa. Em primeiro lugar, ao nível político, o campo de possibilidades em que se discutiu a política colonizadora delimitou-se a partir do modelo legislativo e político da lei espanhola de 1949. Depois, a ambiciosa colonização do território definida pelo Plano de Rega do Alentejo (1957), equacionada pelo governo no âmbito do II Plano de Fomento, foi concebida em estreita articulação com o Plano de Badajoz, a escassos quilómetros da fronteira, na Extremadura espanhola. Durante a publicitação do Plano de Valorização do Alentejo, em 1956, o Ministro das Obras Públicas, Arantes e Oliveira, visitou os trabalhos de irrigação em Badajoz, visita esta detalhadamente relatada na imprensa. De novo em 1959, uma delegação portuguesa, constituída pelo Secretário de Estado da Agricultura, pelo presidente e pelos técnicos da JCI, visitou o empreendimento. Nos meses seguintes, o presidente da JCI ordenou um estudo aprofundado das realizações do Plano de Badajoz, bem como o enquadramento legal da acção do Instituto Nacional de Colonización.
Em 1962, a vontade governamental de parcelar as grandes propriedades alentejanas parece repentinamente dissipar-se. Continuaram os técnicos do Ministério da Agricultura a estudar formas de colonizar os novos territórios recentemente irrigados, mas a política governamental seguia outros cursos para o desenvolvimentismo rural, baseado no produtivismo das grandes explorações. Com as massivas migrações rurais para as regiões industrializadas de Lisboa e de Setúbal, expirou a razão social para polvilhar o Alentejo de empresas agrícolas familiares. Mais importante para o governo, com o início, em 1961, das guerras de libertação em África, as disponibilidades financeiras do Estado afectas aos territórios imperiais intensificam-se, nomeadamente em prol da sua ocupação populacional. A colonização interna parecia ser um projecto secundarizado, se não abandonado, quando, após 1974, eclodiu um movimento social no Alentejo em torno de uma outra forma de repartição fundiária, de justiça social e de desenvolvimento económico. Movimento de ocupação e gestão colectiva da grande propriedade alentejana, a Reforma Agrária veio revolucionar as relações de força entre trabalhadores rurais, grandes proprietários e poderes estatais na imaginação e fabricação de um Alentejo produtivo. - Creator
- Silva, Elisa Lopes da
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Date Issued
- 6-03-2025
- References
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Collection
Citation
Silva, Elisa Lopes da, “Colonização interna,” Connecting Portuguese History, accessed March 6, 2025, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/114.
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