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Faria, Fábio Alexandre<a href="https://www.cienciavitae.pt/portal/9B1C-631F-0853" target="_blank" rel="noreferrer noopener">Faria, Fábio Alexandre</a>
Abolição da pena de morteAbolição da pena de morte
Description:A pena de morte, como punição administrada pelo Estado, com base na lei, foi uma prática comum ao longo da História humana, tanto no Ocidente como noutras partes do mundo. Como prática violenta, foi sendo questionada de forma casuística ao longo do tempo. Na verdade, até ao séc. XVIII – altura em que a sua justificação prática e jurídica foi posta em causa nalguns pontos da Europa Ocidental – era uma norma (de jure ou de facto) que decorria do direito de regulação social atribuído aos poderes instituídos. Na Europa, foi executada com algum recato até aos finais da Idade Média, altura em que passou a ser um instrumento de poder fulcral do Estado Moderno, apostado que estava este em afirmar o monopólio da violência legítima, impondo a pena de morte na base do aparato jurídico e penal que advinha da autoridade e do poder centralizado e absoluto – do Rei, da Igreja, ou da República. De meados até finais do séc. XIX, em vários países do Ocidente, a pena de morte deixou de ser aplicada a crimes políticos, tendo sido restringida ao domínio comum, com a finalidade de dissuadir e controlar o criminoso. Assim, nos finais do séc. XIX e inícios do séc. XX, são já muitos os países que optam por abolir a pena de morte – como aconteceu em Portugal, em 4 de julho de 1867 –, tendo ficado fragilizada muita da argumentação que sustentava a filosofia e a prática dos países “mortícolas”, isto é, aqueles onde prevalecia a aplicação desta pena. Este primeiro patamar do abolicionismo – reforçado pela adesão dos países escandinavos no início do séc. XX – foi mais tarde superado por uma segunda vaga, iniciada no pós-II Guerra Mundial em países como a Áustria, a Finlândia, a Itália e a Alemanha Ocidental, e depois concluído, na última década do séc. XX, pela esmagadora maioria dos países europeus, em função de normas impostas por declarações e convenções universais (adotadas sob a inspiração da ONU e do Conselho da Europa), pela sensibilidade humanitarista que resultou na recusa da aceitação do sofrimento humano e do uso gratuito da violência, e da própria inutilidade da pena como forma de controlo da criminalidade. Depois da queda da URSS, os países que antes se encontravam incluídos no Bloco de Leste também seguiram o abolicionismo: Alemanha Oriental, Roménia, Hungria, República Checa, Eslováquia e, mais tarde, Polónia, Sérvia, Croácia e Macedónia. Embora lentamente, o abolicionismo estendeu-se não só à esmagadora maioria dos países europeus, mas a muitas novas democracias (incluindo a África do Sul e as Filipinas), deixando de fora os Estados Unidos (na maioria dos seus estados), a China e alguns países do Médio Oriente e da Ásia. Em 2022, existiam 148 países abolicionistas, 114 dos quais com abolição para todos os crimes, e 25 abolicionistas de facto; do total, apenas 9 mantinham a pena de morte para crimes comuns. Em contrapartida, 55 países continuavam a ter a pena de morte na lei, embora, na esmagadora maioria, sem a aplicarem na prática. A China, o Vietname e a Coreia do Norte mantêm uma política de total sigilo, pelo que se desconhece a verdadeira dimensão do problema nesses países. No mesmo ano de 2022, os dados conhecidos apontam para a ocorrência de execuções por pena capital nos EUA (18), no Egito (24), na Arábia Saudita (196) e no Irão (576), num total de 883. Sabe-se que ocorreram execuções na China, mas não é possível determinar o seu número (Relatório da Amnistia Internacional para o Ano de 2022). A abolição da pena de morte constitui hoje um patamar de civilização consagrado por normas jurídicas internacionais, que exercem uma pressão abolicionista forte sobre os estados retencionistas, tendo-se constituído como um indicador – e como um travão – para a entrada desses estados nos areópagos que se guiam por princípios democráticos e pelo respeito pelos Direitos Humanos (como é o caso do Conselho da Europa). Embora a natureza da pena de morte enquanto questão política se tenha alterado, em substância os argumentos dos “mortícolas” e os princípios filosóficos, humanitários, jurídicos e práticos dos abolicionistas não mudaram desde os finais do séc. XVIII, altura em que alguns estados liberais, munidos de instrumentos jurídicos e institucionais novos, puderam prescindir do barbarismo desta punição, até aí aplicada em praça pública com a finalidade de atemorizar os súbditos. Neste sentido, o abolicionismo é um legado do liberalismo e do pensamento de iluministas como Beccaria. A obra Dei delitti e delle pene, de César Bornesano, marquês de Beccaria, publicada em 1764, condensou as preocupações mais avançadas da consciência da época sobre a legitimidade e a utilidade da pena de morte, revolucionando os códigos penais modernos e dando azo a um profundo debate sobre o regime prisional e sobre o sistema punitivo contemporâneos. Repudiou a ideia de pena como expiação da culpa – tão cara ao espírito inquisitorial ainda bem vivo na sua época – e questionou a intimidação e a “exemplaridade” dos autos de fé e das execuções públicas porque, como considerava, “A pena de morte é (...) funesta à sociedade pelos exemplos de crueldade que fornece aos homens.” Na sua inovadora perspetiva, a pena teria de visar mais a prevenção do mal futuro do que a reparação do crime cometido; portanto, ela só faria sentido se tivesse como meta a correção do delinquente. “O objetivo da pena não é, portanto, outro senão impedir que o delinquente cause novos danos aos seus concidadãos e evitar que outros façam o mesmo”. Exemplar para a sociedade seria – se ocorresse – a reabilitação do condenado, e não a pena de morte, por não permitir a graduação do castigo e por ser inapelável e definitiva. Buscando argumentos na ideia de contrato social de Rousseau, Beccaria considerava que não fazia nenhum sentido considerar que o homem se poderia dispor a ceder o direito de lhe tirarem a vida: “a soberania e as leis não são senão a soma das pequenas liberdades que cada um cedeu à sociedade”. O fundamento da punição só podia residir na utilidade comum e esta na lei moral, que havia de considerar iníqua qualquer condenação que ultrapassasse o interesse geral. Tudo se resumia então em saber se a pena de morte seria útil e necessária: excluindo da sua argumentação as dimensões filosófica e teológica, o autor deslocou o problema para os domínios utilitaristas do direito e da política. De ora em diante, o problema passou a ser formulado em termos políticos, sob o signo da discussão de saber se a pena capital pode ser substituída por outras penas, sem risco de aumento da criminalidade. Ora – considerava Beccaria –, se há meios mais eficazes do que a pena última para prevenir a prática de crimes futuros, então ela não só é inútil, como é desnecessária. Assim, propôs a substituição da pena capital pela pena de trabalhos forçados para toda a vida – a “escravidão perpétua”. A par da defesa da abolição da pena de morte, o ensaio de Beccaria foi ainda modelar na crítica feroz à condução arbitrária dos processos criminais, condenando a tortura como forma tradicional de captação de confissões. Mercê destes avanços doutrinários, pequenos estados aboliram a pena de morte de jure e de facto: a Toscana (em 1786), alguns novos países independentes na América do Sul e Central (como a Venezuela, em 1863, e a Costa Rica, em 1877), e também Portugal (em 1867), sendo que, neste último caso, o pioneirismo se aliou ao facto de no nosso país a abolição nunca mais ter sido revertida, com exceção da sua aplicação em período de guerra (em 1916). No entanto, no contexto do séc. XIX tais casos são ainda excecionais; no início do séc. XX, irão juntar-se-lhes os países escandinavos (a Noruega em 1905, a Suécia em 1921, e a Dinamarca em 1930) e alguns outros países sul-americanos. A estratégia abolicionista segue em todos os países uma prática comum, orientada por princípios humanitários, jurídicos e políticos. Começou por se lutar pela restrição dos motivos para a aplicação da pena de morte, pela suplicação de comutações pelo Rei, ou pela condenação das práticas de martírio executadas em praça pública. Em Portugal, é famoso o episódio ocorrido em Lisboa em 16 de abril de 1842, em que, sob enorme comoção pública, morrem Matos Lobo, o réu condenado, e o prior encarregado de o confortar, fulminado por uma apoplexia. Também o padre que o substituiu acabou por desfalecer à vista do cadafalso, instalado no Terreiro de Santos. Do domínio humanitário, os liberais partiram para o campo jurídico, procurando abolir a pena de morte nos Códigos e nas Constituições. É um processo complexo, de avanços e recuos, que dá passos largos quando os tratadistas conseguem guindar-se à condição de deputados ou de ministros. Em Portugal, ficou célebre o trabalho doutrinário e político de D. António Aires de Gouveia, Lente da Universidade de Coimbra (o “bispo vermelho”, como ficou conhecido), que foi deputado e ministro da Justiça em 1865 e em 1892. Apodava a pena de morte de “impiedade”, “sacrilégio”, “insulto à civilização”. Assim como noutros países, em Portugal a oportunidade de consagrar a abolição na lei surgiria com a reforma das cadeias, matéria de natureza essencialmente política, que se decidia em função da capacidade do estado para punir ou dissuadir o criminoso e para conceber e administrar formas de cativeiro mais ajustadas às novas teorias de correção e regeneração do preso. O criminoso podia, em suma, ser castigado de outras formas, até mais “aflitivas” e em graus diferenciados, até à “escravidão perpétua”. Neste contexto, o abolicionismo era, em finais do séc. XIX, uma matéria que, não ignorando os princípios filosóficos e jurídicos, se discutia em termos utilitaristas: as estatísticas demonstravam que a sua aplicação não constituía forma eficaz de dissuasão. O direito de recurso dos condenados, que começou a ser consagrado nos Códigos de muitos países, atirava os presos durante décadas para “corredores da morte”, o que além do mais podia resultar na demonstração de erros crassos dos tribunais, como aconteceu no caso da aplicação da pena de morte a Sacco e Vanzetti (EUA, 1927), cujo erro jurídico só foi reconhecido cinco décadas mais tarde. Nos países europeus que detinham largos espaços coloniais e territórios inóspitos (como era o caso de Portugal), o degredo e a deportação em massa para colónias penais e para campos de concentração passaram a ser formas de erradicar os “indesejáveis” e “incorrigíveis”, condenando-os a uma “morte perpétua”. Vivemos hoje sob o efeito da última grande vaga de abolições ocorridas na última década do séc. XX, quando países como a Irlanda (1990), a Itália (1994), a Espanha (1995), a Bélgica (1996) ou o Reino Unido (1998) – para darmos só exemplos significativos – aboliram, em definitivo, a pena de morte dos seus Códigos. Até ao início dos anos 1990, a União Soviética ou a África do Sul ocupavam lugares cimeiros no número de pessoas executadas; hoje, tanto a África do Sul como as antigas repúblicas soviéticas aboliram a pena de morte de jure (e, tanto quanto se pode saber, de facto). Para estas tomadas de decisão históricas, muito terá contribuído a “landmark Soering”, uma decisão (com capacidade para criar precedente jurídico) do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos perante o apelo feito por Soering, um cidadão alemão que se encontrava na iminência de ser extraditado para os EUA, onde, segundo o seu apelo, corria o risco de ser “sujeito a tratamento degradante e à pena de morte”. A responsabilização dos países pela extradição de cidadãos para locais onde correm o risco de ser sujeitos à pena de morte foi incluída na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e esta modalidade de pena foi proibida (1989), o mesmo acontecendo no Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), aprovado em 1989. Norma semelhante foi consagrada no Protocolo com vista à Abolição da Pena de Morte, da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, adotado em 1990 pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos. Em 1989, aproximadamente 80 países tinham abolido a pena de morte, enquanto a maioria (100) eram ainda retencionistas. Porém, no início do séc. XXI eram já 123 os Estados abolicionistas, tendo o seu número aumentado para 148 em 2022, dando ideia de um movimento imparável, com exceção de alguns estados norte-americanos, do Médio Oriente e da Ásia. Ao contrário do que acontecia no séc. XIX, onde minorias esclarecidas foram responsáveis pelo abolicionismo, mesmo em países onde era comum afirmar-se que a população, de forma geral, defendia a sua manutenção, hoje tais decisões parecem antes derivar do respeito pelo direito à vida e à segurança individual, consagrados no Art. 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e nas Convenções e Protocolos subsequentes, bem como do efeito de uma consciência humanitarista generalizada. Subsiste, evidentemente, a defesa da pena de morte em países como os EUA, com base em juízos genéricos e de difícil comprovação prática. Para os seus defensores, a pena dissuadiria os criminosos, faria justiça às famílias das vítimas, permitiria a “vingança” de atos terroristas horrendos ou de crimes muito graves. Por último, em alguns estados democráticos tem-se defendido que a maioria da população, ao contrário dos decisores, apoia a aplicação da pena de morte. Para responder a esta questão, em 2001 a Irlanda promoveu um referendo, com vista a ser retirada da Constituição qualquer referência à morte como penalidade, mesmo em casos de emergência, consulta que colheu o voto favorável de 62,08% da população. Para a abolição da pena capital em todo o mundo, organizações como a Amnistia Internacional lutam hoje pelo integral conhecimento da sua aplicação, combatendo o sigilo que se verifica em países como a China, e contrariando ainda a ideia, muito generalizada nos EUA, de que a “morte limpa” (por injeção letal ou eletrocussão) constituiria uma solução humanista, por não infligir dor ao condenado. [show more]
Accornero, GuyaAccornero, Guya
Acordo Cultural Luso-Brasileiro de 1941Acordo Cultural Luso-Brasileiro de 1941
Description:Assinado no Rio Janeiro a 4 de setembro de 1941, o Acordo Cultural Luso-Brasileiro representou a cunhagem simbólica do imenso esforço de cooperação cultural entre os “Estados Novos” do varguismo e do salazarismo. Esta cooperação havia sido emblematizada na participação brasileira nas comemorações do duplo centenário de 1940 e, como expressão de reciprocidade e agradecimento, no envio, em 1941, de uma missão/embaixada especial portuguesa ao Brasil (Paulo 1994). O acordo foi assinado no Palácio do Catete, sede da Presidência da República na cidade do Rio de Janeiro, por Lourival Fontes, diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda brasileiro (DIP), e António Ferro, diretor do Secretariado da Propaganda Nacional português (SPN). Não obstante ter correspondido a um esforço de aproximação bilateral, o estreitamento de laços entre os dois regimes produziu efeitos escassos, diversos e impermanentes, em planos como o económico e de alinhamento político externo (Santos 2006). As suas ressonâncias foram sobretudo de ordem propagandística, assentes na ideia de um desígnio histórico-linguístico e cultural partilhado. Nos decénios de 1930 e 1940, o comércio transatlântico do impresso no espaço luso-brasileiro foi estimulado por políticas para o livro, a edição e a leitura. Neste domínio, a circulação fazia parte de uma estratégia política mais vasta, relacionada com o lastro histórico e cultural, primordialmente a partir da década de 1930 (ainda antes da instituição da ditadura de Getúlio Vargas), quando se verificou a implementação de uma política pan-lusitanista (Serrano 2014), prosseguida com especial ênfase por António de Oliveira Salazar. É neste âmbito que se podem também situar a ação cultural do Instituto Nacional do Livro, fundado no Brasil em 1937 (Tavares 2020), ou a instituição da Secção do Intercâmbio Luso-Brasileiro no SPN, em Lisboa (já fruto do Acordo Cultural de 1941), incluindo a publicação de instrumentos impressos que materializassem ou exibissem a aproximação entre os regimes de Portugal e do Brasil, de que a revista Atlântico constitui um dos exemplos mais flagrantes. Nesta dinâmica, inscrevem-se igualmente a inauguração do Instituto Luso-Brasileiro de Alta Cultura, em 1935, e, ainda antes, o acordo ortográfico de 1931, congraçando a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Ciências de Lisboa, e correspondendo a uma diligência de apaziguamento da clivagem que havia sido criada com a Reforma Ortográfica republicana de 1911. A aproximação cultural delineada no Acordo de 1941 pode assimilar-se a um impulso sem precedentes rumo a uma confluência estratégica das políticas nacionalistas de ambos os lados do Atlântico. De certo modo, o Acordo Cultural Luso-Brasileiro traduz, nos planos formal e diplomático-simbólico, uma estratégia de sancionamento de afinidades, vinculada diretamente a interesses políticos e orientações ideológico-culturais, que instrumentalizam o lastro histórico e a língua comum para forjar um reportório memorialístico, concretizando iniciativas diversas, com destaque para a propaganda através da cultura escrita. Esta estratégia aproveitava laços intelectuais que vinham de trás (remontando ao final do século XIX), bem como a presença coetânea (nos anos 1940) de personagens-charneira do mundo extra-governativo, como a do editor e livreiro António de Sousa Pinto, por exemplo (Medeiros 2015). O Acordo Cultural de 1941 foi fundamentalmente um arranjo político, e não tanto um tratado diplomático ou acordo comercial. Ele outorgava visibilidade a uma atuação deliberada, cuja razão se baseou no desígnio original de estabelecer laços culturais e políticos suscetíveis de atualizar uma conceção de nação cuja força motriz doutrinária se fundasse na partilha, de natureza extraterritorial, de uma língua e de uma história. António Ferro, em discurso de 1941, definia os pressupostos do Acordo, defendendo a existência de uma força nacionalizadora, que apelidava de “pátria flutuante”, espraiando-se por vários continentes através do mar (Ferro 1949: 35). Por sua vez, o seu homólogo Lourival Fontes insistia em que a língua portuguesa constituía um “vínculo indelével” entre as duas nações (Atlântico 1942, n.º 1, p. 2). No quadro dos instrumentos administrativos de operacionalização recíproca de vários aspetos do Acordo, ficou definida a criação de duas secções de representação de interesses, no seio dos dois organismos responsáveis, em cada um dos países, pela política cultural: a Secção Portuguesa, no interior do DIP (mais efémera e incapaz de sobreviver à queda da ditadura de Getúlio Vargas), e a Secção Brasileira, dentro do SPN, a qual conheceu uma presença duradoura na arquitetura institucional do Estado português; mesmo após o fim do Estado Novo no Brasil, permaneceu até 1974 como Secção de Intercâmbio Luso-Brasileiro. O Acordo, sublinhe-se, não se cingia ao mundo da comunicação escrita. Esta ocupava apenas uma parcela do conjunto de catorze eixos de promoção cultural em sentido amplo, prevendo um feixe ambicioso e diversificado de atribuições: 1) intercâmbio e publicação de artigos inéditos; 2) intercâmbio de fotografias; 3) envio ao Brasil e a Portugal de conferencistas, escritores e jornalistas; 4) colaboração recíproca e com orientação comum quanto ao noticiário; 5) criação da revista Atlântico; 6) troca de publicações de turismo e propaganda; 7) divulgação do livro português no Brasil e do livro brasileiro em Portugal; 8) emissões radiofónicas e permuta de programas radiofónicos de interesse comum; 9) prémio pecuniário anual, atribuído conjuntamente; 10) permuta de exposições de arte e intercâmbio de artistas brasileiros e portugueses; 11) intercâmbio de atualidades cinematográficas; 12) facilidades para o turismo luso-brasileiro; 13) estudo do folclore luso-brasileiro e edições comuns sobre o tema; 14) comemoração de datas históricas de interesse comum (Atlântico 1942, n.º 2, pp. 180-182). A realização de concertos, conferências, exposições e feiras dava desde logo o mote para uma série de iniciativas que foram animando o programa cultural e propagandístico, injetando temas brasileiros em Portugal e tópicos portugueses no Brasil. Decorrendo em diversos locais e cidades dos dois países, o grosso dos certames concentrou-se no primeiro lustro dos anos 1940, coincidindo com a coexistência de ambos os “Estados Novos”, persistindo mais esparsamente depois de 1945 e até ao final da década, apenas em Portugal, um conjunto de realizações. Na implementação desta política cultural, os impressos ocuparam um lugar estratégico de difusão e salvaguarda do reiteradamente propalado património comum. Este ia da publicação de periódicos como Atlântico: revista luso-brasileira, Brasília, Boletim da Secção Brasileira do Secretariado da Propaganda Nacional ou Terra de Vera Cruz, à edição das coleções “Documentos dos Arquivos Portugueses que Importam ao Brasil” ou “Atlântico”. Para o caso português, por exemplo, é no interior da política editorial do Acordo de 1941 que emerge o apoio e subsidiação de instâncias e projetos pela Secção Brasileira, tais como o Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de Coimbra e Brasília, provavelmente a revista luso-brasileira de mais longa duração (1942-1968). Arregimentando um feixe de artistas e intelectuais portugueses e brasileiros, esta dinâmica editorial procurava dar visibilidade ao Acordo, mas também a outras vertentes do projeto político então gizado. A lógica deste encontro entre regimes homónimos, largamente vertida no Acordo Cultural de 1941, revelou uma intenção política claramente respaldada nos projetos nacionalistas que nos anos finais do decénio de 1930 e na primeira metade do seguinte marcaram a obra, a retórica e os propósitos ideológico-programáticos dos governos de Brasil e Portugal. O esteio deste encontro de vontades não correspondeu necessariamente a uma partilha absoluta de estratégias e de modos de viabilização de uma colaboração institucional de alto nível entre os dois países. A interlocução de um ideário de matriz nacionalista operou-se a partir de propósitos específicos, modulados por interesses e proposições de fundamentação diversa. Do lado português, o impulso soube perdurar e ser mais intensamente assumido, erigindo uma mobilização estruturada em torno de um pressuposto que assimilou a história e a cultura nacionais à afirmação de uma conceção política pan-lusitanista. Forjada e estimulada pela propaganda dos organismos públicos, essencialmente portugueses, a política do pan-lusitanismo conduzia a aproximação, destacando o lugar do Brasil no passado quinhentista português (Serrano 2014). Sob este imperativo, inúmeras estratégias de propaganda foram criadas no sentido de realçar o lastro histórico comum, reafirmado na colonização do Brasil como uma espécie de montra de um passado português que se procurava apresentar como glorioso. A compatibilidade de intuitos era confrontada por solidariedades internacionais e por interesses socioeconómicos nem sempre convergentes – incluindo discrepâncias em posicionamentos de natureza simbólica e de memória histórico-ideológica, a exemplo do desconforto gerado nas hostes portuguesas quanto a certos temas apresentados por participantes brasileiros no Congresso de História Luso-Brasileiro em 1940, como é o caso o do dissídio das inconfidências setecentistas (Blotta 2009). Apesar de tais discordâncias, a cooperação luso-brasileira é largamente motivada pela necessidade legitimista de dois regimes de natureza autoritária, alicerçada em dinâmicas ideológicas e narrativas compagináveis, gravitando em redor da proposta de unidade linguística e de uma comunidade histórico-cultural na qual radicaria em medida não pequena a razão de ser da nação. O fim do Estado Novo brasileiro não interrompeu certa colaboração cultural sem deixar a descoberto as tensões e contradições que o processo nunca deixou de possuir. [show more]
Agências de passagens e passaportesAgências de passagens e passaportes
Description:A análise dos movimentos migratórios internacionais dos séculos XIX e XX exige que eles sejam pensados à luz dos agentes intermediários que os estimularam. A crescente procura de trabalhadores migrantes no século XIX, a modernização dos meios de transporte e a intensificação das conexões transnacionais com os indivíduos migrantes ajudaram a densificar a figura dos intermediários (Feys 2012; Keeling 2013; Gonçalves 2008). Através de uma atividade desenvolvida em rede entre os locais de saída, de trânsito e de chegada, os intermediários transcenderam as barreiras nacionais.De agentes bancários, empregados comerciais, donos de pensões, recrutadores e companhias de transporte (marítimas, áreas ou terrestres) a armadores ou a industriais (para citar somente alguns), eles caracterizavam-se pela grande diversidade dos seus perfis socioeconómicos e profissionais, pelas funções que desempenhavam no negócio transnacional da emigração e pelas suas capacidades para influenciar os comportamentos migratórios e as políticas migratórias. Os intermediários também se definiam pela capacidade para reter ou/e fazer circular conhecimento sobre as oportunidades e as condições migratórias junto dos migrantes. Tal como noutros países que possuem uma longa tradição emigratória transatlântica e europeia, as saídas a partir de Portugal foram sustentadas por agentes intermediários privados, dentro de um negócio cada vez mais regulamentado (Santos 2023). De entre os intermediários, desde o século XIX até 1947 destacaram-se as agências de passagens e passaportes. Segundo a definição oficial de 1919, estas agências tinham a função de vender bilhetes de passagem para o estrangeiro em nome das companhias de navegação inglesas, francesas, holandesas ou alemãs, assim como de disponibilizar passagens gratuitas a famílias e indivíduos no âmbito da emigração subsidiada para o Brasil. A atividade das agências de passagens e passaportes também contemplava pedidos de documentação junto das autoridades locais nacionais (governadores civis), no estrangeiro (consulados) e nas colónias. A natureza transnacional da atividade das agências de passagens e passaportes facilitava a conexão direta ou por meio de outros intermediários (como companhias de navegação, ou homens de negócios). A partir do trabalho quotidiano, estes agentes faziam parte da rede transnacional que envolvia entidades públicas nacionais e estrangeiras (polícias, consulados, funcionários públicos) e que estava intrinsecamente conectada com a esfera privada. As agências de passagens e passaportes atuaram em três regimes políticos diferentes (Monarquia Constitucional, Primeira República e Estado Novo) e no quadro de políticas emigratórias cada vez mais seletivas na organização das saídas legais. Por isso, a intervenção estatal centrou-se também na regulação de toda a atividade ligada à emigração, inclusive das agências. Depois de 1947, data em que o governo ditatorial português lhes retirou a função de organizar a emigração, as agências foram obrigadas a direcionar a sua estratégia empresarial para o negócio do turismo, através da abertura de agências de viagens. Este referencial legislativo não significou, contudo, que deixassem de se envolver na emigração irregular. Pelo contrário, o caráter transnacional da sua atividade e dos movimentos migratórios, as contradições das regulamentações migratórias e os limites na sua aplicação proporcionaram uma certa continuidade. Repartidas pelo território nacional, as agências de passagens e passaportes multiplicaram-se com as oportunidades de lucro que a emigração oferecia. Sediaram-se primeiro nas cidades portuárias (Porto, Aveiro, Braga, Lisboa) e seus arredores, e em seguida no interior norte e centro do país, de maneira a acompanhar a extensão do fenómeno migratório. De acordo com as estatísticas oficiais disponíveis, entre 1919 e 1948, o número de agências de passagens e passaportes legalmente registadas passou em 1924 de 50 para 279, em 1937 para 85 e, finalmente, em 1948 para 37 agências. As flutuações dos números explicam-se principalmente pelo encerramento progressivo das portas à entrada de migrantes pelos países de acolhimento (como o Brasil e os EUA), um encerramento que se acelerou durante a Grande Depressão e que provocou, consequentemente, desinteresse das agências no negócio da emigração pela falta de lucro. Não obstante a diversidade dos perfis socioeconómicos e profissionais dos agentes que as dirigiam, a acumulação de conhecimento sobre o modus operandi, sobre as regulamentações nacionais e sobre a indústria da emigração em geral fez com que a atividade desenvolvida pelos agentes de passagens e passaportes sediados em Portugal tivesse um caráter transnacional. Os agentes de passagens e passaportes podiam ser antigos agentes policiais de emigração, antigos militares, guarda-livros ou funcionários públicos, os quais viam na emigração uma oportunidade para lucrar e assim melhorarem as suas condições de vida. A ligação ao setor do comércio local e internacional (Brasil, EUA, Inglaterra, França, Espanha, Argentina) e/ou ao setor financeiro e político talvez seja uma das características mais comuns das agências de passagens e passaportes, em particular as localizadas nas principais cidades portuárias (Lisboa e Porto). As agências podiam ser casas comerciais que se caracterizavam pela diversidade dos negócios em que estavam envolvidas. Algumas delas chegaram a especializar-se no transporte de emigrantes e de turistas, tornando-se negócios familiares duradouros, como a Agência Abreu. A prática de organizar a emigração multiplicou as ligações destas agências em Portugal e no estrangeiro, na esfera pública e privada, e reforçou a sua representatividade na indústria da emigração e a sua influência neste ramo, nomeadamente junto das empresas marítimas de transporte. Ao mesmo tempo, levou a que elas acumulassem um capital informacional transnacional que as tornou, em Portugal, experts em operacionalizar as saídas, dentro ou fora das regulamentações nacionais sobre a mobilidade, e independentemente do ciclo migratório.Com acesso privilegiado ao conhecimento sobre as modalidades da emigração, as agências definiam-se ainda pelo seu envolvimento em práticas irregulares. Foram capazes de construir e aplicar estratégias para contornar a regulamentação legal e as dificuldades impostas à mobilidade internacional. A partir de um trabalho em rede, recrutavam trabalhadores por conta de empresas privadas estrangeiras e forneciam documentação falsa, capaz de ludibriar a vigilância administrativa e policial local. A sua intervenção na emigração legal e irregular não significou, contudo, que as agências de passagens e passaportes fossem os únicos atores detentores de um savoir-faire para agenciar as saídas. Os próprios emigrantes construíram, mediante redes sociais tecidas entre cá e lá, um conhecimento próprio, complementar ou oposto ao das agências, sobre as oportunidades e modalidades de saída, dando também aos indivíduos certos meios para negociar as condições de emigração. [show more]
Ágoas, FredericoÁgoas, Frederico
Albuquerque, SaraAlbuquerque, Sara
Almeida, Sónia Vespeira deAlmeida, Sónia Vespeira de
Andrade, RicardoAndrade, Ricardo
BaleaçãoBaleação
Description:A história marítima de Portugal não se resume à denominada epopeia dos Descobrimentos nos séculos XV e XVI, ou às travessias e contactos posteriores que o Império Colonial motivou até meados do século XX. Ela contém outras facetas, menos propensas a narrativas de glória e conquista, e extravasa os limites do Império Português, integrando não só outros impérios e geografias, como jogos de força político-económicos e arranjos socioculturais transnacionais. A baleação é um caso elucidativo dessas abrangências e interdependências, e um capítulo menos conhecido, mas muito relevante, da história marítima portuguesa. Os arquipélagos atlânticos dos Açores e de Cabo Verde, cuja posição geoestratégica privilegiada sempre contrariou a sua condição periférica, foram desde tempos recuados portos de escala obrigatórios para navios das mais variadas origens, que aí ancoravam para abastecimento, aguada e recrutamento de tripulação. Entre as várias embarcações que passaram pelas ilhas, destacam-se os navios baleeiros norte-americanos. Embora presentes nas águas portuguesas desde a segunda metade do século XVIII, foi na centúria seguinte que a indústria baleeira americana se afirmou como uma das atividades comerciais mais proeminentes do mundo. Antes da difusão do gás e da eletricidade como principais fontes de energia, o óleo de cachalote era utilizado como combustível para a iluminação pública. As barcas baleeiras saíam dos portos da Nova Inglaterra e passavam anos no mar, atravessando vários oceanos e fundeando em diferentes portos durante a longa viagem. E se, por um lado, alguns dos tripulantes norte-americanos desertavam nestas paragens, por outro, muitos ilhéus embarcavam no seu lugar. Dos Açores (conhecidos como Western Islands) e de Cabo Verde milhares fugiram, clandestinos, da fome, da penúria, ou do alistamento militar. Outros foram contratados como mão-de-obra barata. A frota americana aproveitava essa força de trabalho e os ilhéus procuravam tirar partido da oportunidade, sem muitas vezes imaginarem a vida árdua e penosa que os esperava no alto-mar. Inexperientes, ocupavam a base da hierarquia naval: eram green hands. Anos mais tarde, alguns deles chegaram a imediatos e capitães. À época, açorianos e cabo-verdianos eram cidadãos portugueses, embora muito diferentes entre si. Para os americanos, porém, estes dois coletivos constituíam um só: the Portuguese. Na década de 1860, os apelidados Gees (Melville 1856) – assim tratados derrogatoriamente – representavam um quarto das tripulações baleeiras (Busch 1985). Mas os castelos de proa e os porões dos navios caracterizavam-se por uma enorme diversidade cultural: diferentes línguas, etnias e culturas interagiam tanto a bordo quanto em terra, com toda a complexidade sociológica que essa coexistência implicava. Em terra, a atividade baleeira implementava-se também, sobretudo nos Açores, e ao seu desenvolvimento não foi alheia uma prestigiada família americana que permaneceu no arquipélago durante várias gerações: os Dabney. Entre 1806 e 1892, os três cônsules americanos nos Açores partilhavam este apelido. E foi o segundo deles, Charles W. Dabney, que em 1854 instalou a primeira unidade industrial baleeira na ilha do Faial. Foi também por iniciativa do terceiro cônsul, Samuel Dabney, e de outro americano residente no Faial, em parceria com um ex-capitão baleeiro açoriano, que se constituiu em 1876 a primeira armação baleeira nos Açores, na ilha do Pico. Além dos múltiplos e profundos impactos nas ilhas, a baleação norte-americana abriu caminho para a emigração rumo aos Estados Unidos da América, inaugurando um dos fluxos migratórios portugueses mais expressivos. Foi a baleação que esteve na origem desta diáspora. E, se é verdade que na segunda metade do século XIX a indústria baleeira norte-americana entra em declínio, é também a partir dessa altura que alguns açorianos e cabo-verdianos logram ser capitães e proprietários de navios baleeiros. Já no dealbar do século XX, alguns oficiais cabo-verdianos adquirem antigas baleeiras obsoletas e convertem-nas em transporte de carga e de passageiros, instituindo o Packet Trade, outro importante canal de ligação atlântico. Os Brava Packets fizeram inúmeras viagens entre a Nova Inglaterra e as ilhas de Cabo Verde, dando novo impulso às correntes migratórias. Apesar do definhamento da baleação americana no final do século XIX e, com ela, das vagas migratórias a bordo dos navios baleeiros, a emigração insular prosseguiu, não obstante as medidas restritivas impostas pelo governo dos Estados Unidos à entrada de estrangeiros. O Immigration Act de 1924 estabeleceu limites apertados quanto ao número de imigrantes que poderiam cruzar as fronteiras do país e, embora tenha vigorado durante as décadas seguintes, em 1958 – com a erupção do vulcão dos Capelinhos, na ilha do Faial –, abriu-se um regime de exceção, o Azorean Refugee Act, verificando-se uma retoma expressiva da emigração açoriana. A baleação abriu caminho para a emigração dos ilhéus que, posteriormente, se envolveriam também noutras atividades em terra, com particular destaque para a indústria (na Nova Inglaterra) e para a pesca e agricultura (na Califórnia), sendo de salientar que foram baleeiros açorianos que fomentaram a baleação costeira nesta região da costa Oeste, com a constituição de companhias baleeiras, a partir da década de 1850 (Mayone Dias 1979, Bertão 2006). A história da baleação portuguesa é indissociável da história da baleação norte-americana. Se a participação dos Açores na baleação pelágica (em mar alto) americana desponta, nos séculos XVIII e XIX, numa conjuntura internacional que determina o seu florescimento, no século XX a baleação costeira açoriana ganha autonomia e especificidade próprias, estabelecendo-se como uma atividade económica relevante na região. O último quartel do século XIX assistiu a uma mudança na participação portuguesa na indústria baleeira global. Nos Açores, a instalação de vigias nos pontos altos da costa permitiu continuar a atividade baleeira a partir das bases costeiras. Os botes norte-americanos foram reconstruídos pelos carpinteiros navais locais, tornando-os mais leves e esguios, com espaço para mais um tripulante, adaptados à entrada e saída dos exíguos portos insulares criados sobre o recorte vulcânico das ilhas. A baleação estendeu-se a todas as ilhas, e prolongou-se por mais de um século com as mesmas técnicas de caça utilizadas na baleação norte-americana. Em 1954, Robert Clarke designou-a de “indústria relíquia” (Clarke 1954). E, se em 1851 a presença portuguesa na baleação internacional fora imortalizada pelo escritor norte-americano Herman Melville, no clássico da literatura Moby Dick, um século depois, a caça à baleia açoriana foi objeto de estudo e inspiração para filmes e livros de Orson Welles, Chris Marker e Mario Ruspoli, ou Antonio Tabucchi, entre outros. A visão romântica e épica da baleação foi veiculada tanto por observadores externos, como pelas gentes locais. Na realidade, a baleação insular continuava plenamente integrada na economia internacional. Os óleos de cetáceos eram exportados para os países europeus mais industrializados (Inglaterra, Alemanha, Itália e França), onde encontravam novas aplicações nas indústrias de armamento, em lubrificantes industriais, em couros e detergentes, entre outras. No final da Segunda Guerra Mundial, com a paralisação das frotas baleeiras que operavam no Antártico, a baleação nos Açores chegou a ser responsável por 40% do total das capturas mundiais de cachalote (Clarke, 1954). A economia de guerra acelerou a industrialização da atividade em terra, mas, no mar, a baleação continuou a ser uma atividade artesanal, com um confronto direto entre o homem e a baleia. Neste período, a indústria baleeira também se estendeu ao arquipélago da Madeira e foi retomada no continente português, na região de Setúbal. A partir da década de 1960, a indústria baleeira nos Açores entrou gradualmente em crise. As mudanças eram induzidas por transformações globais externas. Por um lado, os óleos de cachalote eram substituídos pela utilização de produtos sintéticos, tendo os preços sofrido uma queda progressiva. Por outro, assistia-se a uma mudança cultural sobre a proteção da vida marinha, e a baleia tornou-se num símbolo nos discursos de conservacionismo ecológico de novas organizações como a Greenpeace. A pressão regulatória internacional reduziu o comércio de produtos baleeiros, conduzindo à Moratória da Comissão Baleeira Internacional (1982), que entrou em vigor em 1986. Antes dessa data, a indústria açoriana já entrara em decadência – não só pela falta de mercados para os seus produtos, mas também pela dificuldade de recrutamento e devido à concorrência da pesca do atum, mais segura e rentável. A baleação nos Açores foi paulatinamente convertida em património, ganhando inclusive, em 1998, forma de lei (Decreto Legislativo Regional n.°13/98/A). No entanto, a narrativa patrimonial não contempla as muitas complexidades que a história da baleação encerra. Ela convoca o passado baleeiro, mas quase sempre de forma seletiva e parcial, fragmentando uma história comum aos dois arquipélagos e veiculando representações sociais de tónica regional, desligadas de contextos mais amplos, e que negligenciam histórias conectadas e globais. Atualmente, a baleação surge como um poderoso discurso de coesão regional. Num território descontínuo e com fortes assimetrias locais, distingue-se como uma experiência histórica comum a todas as ilhas açorianas, que enaltece a coragem e a capacidade de superar as difíceis condições de vida. Recentemente, um projeto de história oral (Arquivo de Memórias da Baleação) recolheu mais de cem entrevistas a todos os baleeiros vivos, com o propósito de entender o impacto social, económico e cultural da baleação nas comunidades insulares; um outro projeto (ADBA – Arquivo Documental da Baleação Açoriana), focado no património arquivístico, dedica-se à pesquisa e inventariação de acervos documentais relativos à baleação açoriana. Ambos desafiam a política patrimonial a ser mais inclusiva. Foram as comunidades locais que começaram por recuperar as embarcações e casas dos botes, processo continuado mais tarde pela musealização das antigas fábricas e pela dinamização das regatas em botes baleeiros. Desde 1993, e cada vez mais, a observação de cetáceos – o whale watching – atrai, todos os anos, milhares de turistas à região. A transição da baleação para o ecoturismo está hoje consumada. Todavia, as narrativas históricas plurais sobre a baleação – tão diversas quanto as condições socioeconómicas de cada ilha e os homens que a praticaram – correm o risco de se diluir nos discursos e políticas que acentuam continuidades e glórias mais do que ruturas e insucessos. Na longa duração, fosse pelas circunstâncias geográficas e socioeconómicas dos arquipélagos da Macaronésia, pelas conjunturas internacionais, ou ainda pelos conhecimentos técnicos transmitidos ao longo de várias gerações, constata-se que a baleação teve uma extraordinária longevidade em território português. O seu fim irreversível deu lugar, no entanto, a uma mudança de paradigma e a um novo ciclo baleeiro, que só existe devido a um passado transnacional que relaciona Portugal e os seus arquipélagos com os EUA e a Europa, e que demonstra bem as inter-relações a diferentes escalas num mundo global. [show more]