A Casa dos Estudantes Portugueses na Cidade Internacional Universitária de Paris
- Title
- The House of Portuguese Students in the International University City of Paris
- Abstract
- Concebida para contribuir para ‘as relações culturais e o intercâmbio intelectual entre Portugal e França’, a Casa dos Estudantes Portugueses na Cidade Internacional Universitária de Paris foi inaugurada em 1967. A sua história ilustra as contradições da internacionalização da investigação científica portuguesa e da circulação transnacional de estudantes já desde as primeiras décadas do século XX. No contexto do ‘Maio de 68’, a Casa foi palco de um conjunto de convulsões que causaram profunda consternação junto das autoridades do Estado Novo.
- Description
- “Hoje, 22 de maio de 1968, nós, trabalhadores e estudantes revolucionários, declaramos esta Casa primeiro território livre de Portugal” (Pereira 2020: 290). Eis o slogan dos militantes da secção portuguesa do Comité de Ação Trabalhadores Estudantes, formado a 16 de maio de 1968, ao ocuparem a Casa dos Estudantes Portugueses na Cidade Internacional Universitária de Paris. A França é então abalada por fortes convulsões políticas e centenas de trabalhadores e estudantes portugueses exilados em França participam nas manifestações, nas ocupações de fábricas e de universidades; uma parte deles envolve-se mesmo em confrontos com a polícia. Uma das formas de ação escolhida pelos ativistas é a ocupação da Casa dos Estudantes Portugueses que, durante 21 dias, acolhe assembleias gerais, debates, sessões de cinema, concertos e representações teatrais. Embora a residência universitária fosse financiada e gerida pela Fundação Calouste Gulbenkian, os ocupantes encaravam-na como um símbolo da ditadura portuguesa. A ocupação ilustra a dimensão internacional dos eventos de maio-junho de 1968: não se tratava apenas de protestar contra o general De Gaulle e o capitalismo em França, pois os protestos visavam as ditaduras e o imperialismo em todo o mundo (Bantigny 2018). Assim, na Cidade Universitária, são ocupadas várias residências de países onde vigoram ditaduras, como Espanha, Brasil e Grécia (Tronchet 2022). Apesar de ter sido inaugurada apenas em 1967, a Casa dos Estudantes Portugueses tem uma longa pré-história que ilustra as contradições da internacionalização da investigação científica portuguesa já nas primeiras décadas do século XX, e a posterior circulação transnacional de estudantes.
Uma Sociedade das Nações da Juventude
Durante a Primeira Guerra Mundial, as elites republicanas francesas desenvolvem uma ampla campanha de propaganda, que apresenta o conflito como uma oposição entre, por um lado, a democracia e a civilização francesas e, por outro, o autoritarismo e a brutalidade da Alemanha e dos seus aliados. Esta propaganda é difundida no estrangeiro, nos países aliados e neutrais, com o objetivo de obter apoio diplomático, militar e económico. Os dirigentes republicanos portugueses, liderados por Afonso Costa, apoiam a França e participam nessas ações. Para o primeiro-ministro português, a participação de Portugal na guerra é importante para legitimar o regime republicano recentemente implantado, assegurar a preservação das colónias africanas e afastar qualquer ameaça de anexação espanhola. Por estes motivos, a partir de 1917 Portugal envia 55 mil soldados para França.
Depois do fim da Guerra, alguns dirigentes franceses procuram assegurar a proeminência da França na Europa e reforçar as alianças entretanto forjadas. Uma das vertentes deste projeto é desenvolvida no domínio da "diplomacia universitária" (Tronchet 2013). O objetivo é desenvolver a cooperação universitária, fortalecendo a proeminência diplomática, política, económica e cultural francesa no plano internacional. Os estudantes estrangeiros são atraídos na expectativa de que possam, no futuro, vir a tornar-se embaixadores da França nos seus próprios países. Mas a chegada de estudantes estrangeiros levanta a questão do alojamento, uma vez que as pensões do Quartier Latin, à volta da Sorbonne, estão cheias. André Honnorat, Paul Appell e Émile Deutsch de la Meurthe empenham-se por isso na construção, de raiz, de um campus universitário, concebido como uma "babel estudantil" (Kévonian & Tronchet 2013) na qual os estudantes de todos os países possam conhecer-se, compreender-se e forjar amizades sólidas, base de uma paz duradoura. No sul de Paris é assim edificada uma "Sociedade das Nações da Juventude”. São privilegiados os países aliados da França e, a partir da segunda metade dos anos 1920, começam a erguer-se vários pavilhões.
Portugal é desde o início candidato à construção de uma residência, projeto em que Afonso Costa (que vive em Paris a partir de 1919) está fortemente envolvido. Juntamente com os dirigentes da Cidade Universitária, escolhe um terreno – ao lado do do Brasil – e tenta angariar os fundos necessários. Em 1924, o Orfeão Académico de Coimbra dá um concerto em Paris cujas receitas devem servir a construção do futuro pavilhão. Este projeto insere-se na linha da política externa promovida por Afonso Costa, nomeadamente no âmbito da conferência de Paris (1919-1920) e da Sociedade das Nações (SDN), em Genebra, a cuja Assembleia-geral o antigo primeiro-ministro português preside a partir de março de 1926. Para Afonso Costa, Portugal deve tomar parte ativa na Sociedade das Nações, de modo a afirmar-se no concerto das nações europeias. Também por isso, Portugal deve estar presente na Cidade Universitária, juntamente com os países que lutaram ao lado da França. O envio de estudantes para Paris deve ainda tornar patente a aposta dos republicanos no ensino e na investigação, em contraste com décadas de obscurantismo promovido, segundo o seu ponto de vista, pela Igreja Católica e pelo regime monárquico.
O “quarto português”: um primeiro passo?
Embora em março de 1926 o embaixador português em Paris, António da Fonseca, assegurasse que a construção teria início em breve, o projeto de Afonso Costa não chega a concretizar-se. A Primeira República portuguesa cai nos últimos dias de maio de 1926, e Afonso Costa perde influência. Armando da Gama Ochoa, um dos militares do golpe de 28 de maio, torna-se embaixador em Paris. Ainda assim, os dirigentes da nova ditadura militar criam um organismo que defende também a presença portuguesa na Cidade Universitária: em 1929 é fundada a Junta de Educação Nacional (JEN), que pretende promover o desenvolvimento da investigação. Com este fim, prevê-se o envio de jovens investigadores portugueses para o estrangeiro, para adquirirem conhecimentos que não são lecionados em Portugal e utilizarem equipamentos que não existem no país. Entre 1929 e 1936, a JEN financia a deslocação de 148 estudantes e investigadores, principalmente para França e Alemanha (Lopes 2018). Em Paris, os bolseiros sofrem com o elevado custo do alojamento e enfrentam grandes dificuldades para encontrar um quarto. Francisco Paula de Leite Pinto, futuro Ministro da Educação Nacional, queixa-se em novembro de 1929 de, num só sábado, ter visitado 53 hotéis e seis pensões. A Luís Simões Raposo, secretário-geral da JEN, transmite os seguintes alertas: “Não mandem para aqui bolseiro algum que visite Paris pela primeira vez” e “Não mandem ninguém depois de setembro”. Em 1931, Celestino da Costa, vice-presidente da JEN, visita a Cidade Universitária com André Honnorat, o principal obreiro deste empreendimento. Embora Portugal não dispusesse de meios para construir uma residência, a JEN financia a construção de um "quarto português" numa nova residência, a casa das províncias de França. Entre 1935 e 1940, ocupam sucessivamente este quarto Manuel Zaluar-Nunes, matemático, Manuel Tavares Chicó, historiador de arte, e Orlando Ribeiro, geógrafo. André Honnorat mantém a esperança de que Portugal – em parceria com o Brasil – possa construir a sua própria residência. No entanto, a JEN – que perde progressivamente autonomia e em 1936 se transforma em Instituto para a Alta Cultura, na dependência da Junta Nacional de Educação – não dispõe de meios para o fazer. O seu secretário-geral a partir de 1934, Francisco Leite Pinto, apesar de ter sido ele próprio poucos anos antes estudante em Paris, considera este investimento impensável para uma "nação que nem tem escolas primárias".
A surpresa Gulbenkian
Em 1945, a direção da Cidade Universitária deixa de pedir ao Instituto para a Alta Cultura a escolha de um estudante português, atitude em relação à qual o Instituto não exprime sequer qualquer reclamação. O envio de estudantes para as universidades de Paris deixa de ser visto como uma prioridade para as autoridades portuguesas, também pela influência que o Partido Comunista Francês entretanto começara a grangear nos meios académicos parisienses. Alguns estudantes portugueses conseguem, ainda assim, encontrar quarto na Cidade Universitária: é o caso de Marcelino dos Santos, de Aquino de Bragança ou de Edmundo Rocha, que residem por algum tempo na casa de Marrocos, onde tecerão relações com estudantes africanos que mais tarde virão a revelar-se muito úteis, no contexto das guerras coloniais.
Um novo imbróglio jurídico e diplomático precede a construção, na década de 1960, da residência portuguesa. Em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, o milionário de origem arménia Calouste Gulbenkian instala-se em Lisboa, aproveitando a neutralidade portuguesa e o seu regime fiscal vantajoso. Antes de morrer, em 1955, o magnata decide consagrar grande parte da sua herança a uma fundação a instalar na capital portuguesa. Pretende, além disso, que a sua vasta coleção de obras de arte – uma das maiores do mundo – seja reunida num museu em Lisboa. Muitas das suas obras encontram-se no entanto em Paris, na sua mansão privada situada a poucos metros da place de l’Étoile. A Fundação Gulbenkian pretende trazer estas obras de arte para Portugal, desejo a que os funcionários do Ministério da Cultura francês se opõem, argumentando que algumas dessas peças são obras-primas insubstituíveis que fazem parte do património francês. É o caso, nomeadamente, de uma “Diana Caçadora”, esculpida por Jean-Antoine Houdon, que Calouste Gulbenkian havia comprado em 1930 na União Soviética. Inicia-se aí um conflito que se prolonga por muitos meses. Por fim, a Fundação Calouste Gulbenkian consegue que todas as peças – sem exceção – do magnata do petróleo sejam exportadas para Portugal, oferecendo em contrapartida algumas concessões. É assim que a mansão de Gulbenkian em Paris passa a ser a sede de um centro cultural luso-francês e que a Fundação se propõe construir uma residência na Cidade Universitária, correspondendo, de resto, a uma reivindicação expressa por alguns estudantes que, em 1960, fundam a União dos Estudantes Portugueses em França.
Maio-Junho de 1968
A primeira pedra da residência é colocada em outubro de 1960, mas o edifício vem a abrir as suas portas apenas sete anos mais tarde, acolhendo estudantes, investigadores e artistas portugueses, franceses e de outras nacionalidades. O seu objetivo é contribuir para “as relações culturais e o intercâmbio intelectual entre Portugal e França”. Os diretores da Casa têm o cuidado de não admitir “agitadores”. Com efeito, desde o início dos anos 1960, a França vinha acolhendo milhares de jovens portugueses fugidos das guerras coloniais e da repressão ao movimento estudantil. Centenas de jovens portugueses vivem na região parisiense, tentando conciliar os estudos, a militância política e a sobrevivência material. Para residir na Casa dos Estudantes Portugueses têm preferência bolseiros de instituições portuguesas (Fundação Calouste Gulbenkian, Instituto de Alta Cultura, Junta de Energia Nuclear). Uma vez que estes dependem materialmente das suas bolsas e têm o compromisso de regressar a Portugal após a sua estadia parisiense, presume-se que deem mais garantias de sossego à direção da Casa dos Estudantes Portugueses. No entanto, apesar destes cuidados, verificam-se logo em 1968 algumas convulsões, quando alguns estudantes protestam contra o regulamento que impede as moradoras de receberem homens nos seus quartos. Trata-se de um tema que suscita contestação também noutras residências da Cidade Universitária, assim como noutros campus. O facto é que a ocupação, que tem início na noite de 22 de maio de 1968, é sobretudo obra de pessoas que não vivem na residência e, principalmente, de militantes maoístas. Os nomes dados às salas do edifício revelam as preferências dos ocupantes: sala Marx e Engels; sala Che Guevara; e ainda sala Bento Gonçalves, antigo secretário-geral do PCP, figura recuperada pelos militantes maoístas que alegam estar a reconstituir o verdadeiro Partido Comunista (e com isso, implicitamente, criticam o então líder do PCP, Álvaro Cunhal, que encaram como traidor do movimento operário). Durante vários dias, a Casa é gerida por um comité de ocupação, e lá multiplicam-se debates, concertos (de Luís Cília por exemplo), sessões de cinema e até uma representação teatral, quando a peça Le chant du fantoche lusitanien, de Peter Weiss, é pela primeira vez levada à cena em França.
A 12 de junho, os ocupantes abandonam a residência, que tinha sido designada por Casa dos Trabalhadores e Estudantes portugueses. Alguns deles são presos, tanto em França como em Portugal; outros partem para Itália para não serem incomodados. Os eventos de maio-junho, em geral, e a ocupação da Casa dos Estudantes Portugueses em particular, preocupam as autoridades da ditadura, que temem um efeito de contágio junto dos estudantes em Portugal. O “caso Maurice Béjart” comprova-o. Em 6 de Junho de 1968, o conhecido coreógrafo é expulso de Portugal depois da apresentação, no Coliseu de Lisboa, do seu bailado Romeu e Julieta. As autoridades portuguesas consideram que nessa representação “foram dirigidas à juventude exortações derrotistas”, nomeadamente o slogan “make love, not war”, julgado inaceitável em tempos de guerra em África. Justificando esta expulsão expeditiva junto do presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, que tinha convidado Béjart, Salazar revela ter seguido atentamente os eventos de maio-junho de 1968: “Deu-se o caso estranho de que a ocupação da Sorbonne pela massa estudantil foi precisamente feita durante muitos dias ao som do estribilho – faites l’amour, pas la guerre –; e as nossas informações são de que, com a insistente repetição do mesmo estribilho, foi também ocupada e pilhada a residência com que a Fundação Gulbenkian generosamente presenteou a universidade de Paris para instalar ali com dignidade e calma estudantes portugueses e estrangeiros”. Evocando a crise em França, Salazar diria no conselho de ministros de 11 de junho de 1968: “Entre nós tem de ser diferente: não podemos ter crise de autoridade: e logo ao primeiro sintoma temos de resolver o caso radicalmente, haja o que houver, seja com estudantes ou com operários”. Defendendo Béjart e a instituição que dirigia, o presidente da Fundação Gulbenkian, José de Azeredo Perdigão, ousa contradizer Salazar: “Salvo o devido respeito, Vossa Excelência está mal informada (…). As palavras que inspiraram os revoltosos – estudantes e operários, nacionais e estrangeiros, onde não faltavam emigrados políticos portugueses – e que eles, associados no mesmo movimento, gritavam quando enfrentavam as forças da ordem, deixaram escritas por toda a parte nos edifícios que ocuparam e pilharam, e se liam em cartazes que afixaram profusamente nas respetivas paredes, não foram “faites l’amour, pas la guerre”, mas outros estribilhos, outras máximas, não de paz e amor, mas de guerra total, proclamados pelos corifeus do comunismo, como Che Guevara, Mao Tse Tung, Lenine e tantos outros”.
A ocupação provoca assim tensões não apenas entre o governo português e a Gulbenkian, mas também entre esta fundação e a administração da Cidade Universitária parisiense, que considera que as regras da casa devem ser liberalizadas para permitir uma maior participação dos residentes na gestão dos pavilhões, reivindicações que a Fundação em parte recusa. Ainda assim, enquanto em vários pavilhões da Cidade os protestos prosseguem por vários anos (Kévonian & Tronchet 2022), a Casa dos Estudantes Portugueses mantém-se relativamente calma. Por um lado, a Fundação Calouste Gulbenkian continua a escolher “com critério” os residentes, principalmente bolseiros, que devem mais tarde regressar a Portugal. Por outro lado, aos olhos dos jovens exilados – e em particular dos refratários e desertores que chegam aos milhares a França – a casa é vista com desprezo, considerada com uma residência destinada a privilegiados, longe das fábricas e dos bairros de lata onde sobrevivem milhares de trabalhadores portugueses que várias organizações de extrema-esquerda pretendem politizar.
Durante a Revolução dos Cravos, a Casa dos Estudantes Portugueses foi palco de uma sessão de esclarecimento organizada por oficiais do Movimento das Forças Armadas. No entanto, como se vangloria o seu diretor, em 1974-1975 a residência não conhece sobressaltos políticos. Ao longo das décadas, ela torna-se a morada de centenas de estudantes, artistas e investigadores portugueses, não deixando até hoje de organizar e receber eventos culturais e artísticos.
- Creator
- Pereira, Victor
- Date
- 2024
- Coverage
- Date Issued
- 31-10-2024
- References
- Kévonian, Dzovinar & Guillaume Tronchet (eds) (2013). La Babel étudiante. La Cité internationale universitaire de Paris (1920-1950). Rennes: Presses Universitaires de Rennes.
Kévonian, Dzovinar & Guillaume Tronchet (eds) (2022). Le Campus-monde: La Cité internationale universitaire de Paris de 1945 aux années 2000. Rennes: Presses Universitaires de Rennes.
Lopes, Quintino (2018). A europeização de Portugal entre guerras. A Junta de Educação Nacional e a Investigação Científica. Casal de Cambra: Caleidoscópio.
Pereira, Victor (2020). “Les Portugais en France pendant mai-juin 1968”. Revista de História das Ideias, 38, pp. 269-305.
Tronchet, Guillaume (2013). “Diplomatie universitaire ou diplomatie culturelle? La Cité internationale universitaire de Paris entre deux rives (1920-1940)”. in Kévonian & Tronchet (eds) (2013). La Babel étudiante. La Cité internationale universitaire de Paris (1920-1950). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, pp.59-88.
Tronchet, Guillaume (2022). “ ‘La Cité en ébullition’. Jeunesse étudiante et action collective à la Cité internationale universitaire de Paris, de 1945 aux années 1968: contestations, mobilisations et circulations”. in Kévonian & Tronchet (eds) (2022). Le Campus-monde: La Cité internationale universitaire de Paris de 1945 aux années 2000. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, pp. 71-120.
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Collection
Citation
Pereira, Victor , “A Casa dos Estudantes Portugueses na Cidade Internacional Universitária de Paris,” Connecting Portuguese History, accessed December 12, 2024, http://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/13.