A fundação do PCP
- Title
- A fundação do PCP
- Abstract
- Depois da Revolução Russa de Outubro de 1917 nasceram Partidos Comunistas em várias partes do mundo. O PCP foi criado em 1921, com uma forte marca originária anarquista, o que o diferenciou da maioria dos países europeus. Contudo, esta marca originária não foi caso único e as ligações com militantes anarquistas espanhóis foram igualmente relevantes nos anos da fundação do PCP.
- Description
- A fundação do Partido Comunista Português (PCP) em 1921 destaca-se na história da esquerda europeia. Contrariamente à maioria dos países europeus, o comunismo em Portugal nasceu de uma costela do anarquismo, e não do socialismo. Portanto, a historiografia sobre o PCP tem enfatizado o caráter excecional da sua origem. Tem também sublinhado os “desvios” anarquizantes que caracterizaram o partido nos anos 1920 (e.g. Cunha 2022). Nesta breve nota sobre a sua fundação, não pretendo contestar a particular raiz anarquista do PCP, e sim redimensionar a excecionalidade do caso português, situando-o num quadro comparativo e transnacional. Debruçar-me-ei, nomeadamente, sobre a influência da esquerda espanhola, francesa e italiana e sobre o papel da Internacional Comunista, em Moscovo, na fundação e nos primeiros passos do PCP.
Na maioria dos países europeus, os fundadores dos partidos comunistas provinham das fações mais à esquerda da social-democracia, uma tendência política que formalmente se declarava marxista, mas que, na prática, tinha amiúde abjurado dos elementos mais radicais do marxismo. Nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial de 1914-1918, muitos partidos social-democratas adotaram uma estratégia pacífica e gradualista rumo ao socialismo, lutando por conquistas parciais e procurando ter uma presença institucional nos sistemas políticos liberais da época. No seio da social-democracia, porém, existiam correntes radicais e revolucionárias, que contestavam a deriva reformista das lideranças partidárias e sindicais, sobretudo nos países onde o socialismo era um movimento de massas, como em França, na Itália, Alemanha e Áustria-Hungria. O início da Primeira Guerra Mundial abriu uma fenda nestes partidos, com as suas lideranças a apoiarem o esforço de guerra dos respetivos governos (com algumas exceções, como a Itália ou a Sérvia), traindo, aos olhos das correntes radicais, os princípios internacionalistas do movimento. A guerra levou, nas palavras de Lenine, à falência da Segunda Internacional Socialista, que tinha até então agregado os diferentes partidos socialistas europeus.
A revolução russa de 1917 aprofundou ainda mais esta brecha, com a tomada do poder no antigo império czarista pelos bolcheviques, socialistas intransigentes e inimigos irreconciliáveis do reformismo social-democrata e da sua política de colaboração com o esforço de guerra. O apelo dos bolcheviques à cisão da social-democracia e a fundação da Terceira Internacional em Moscovo, em março de 1919, tiveram um grande impacto, dando origem à criação de dúzias de partidos comunistas por toda a Europa, e para além dela, no início da década de 1920.
Embora o principal alvo de interesse dos bolcheviques fossem as correntes de esquerda da social-democracia, a revolução russa exerceu forte atração sobre outras tradições políticas radicais e oposicionistas: anticolonialistas, nacionalistas, republicanos, e, com efeito, nos anarquistas e sindicalistas revolucionários. Em alguns países europeus (como Espanha e Portugal) e na América Latina, estes constituíam uma tendência maioritária no seio do movimento operário, ao passo que noutros países, como Itália, França ou Estados Unidos da América, formavam minorias importantes. Ali, os anarquistas protagonizaram muitas das grandes lutas operárias no contexto da crise económica e social que se seguiu ao final da guerra. Os anarquistas foram também seduzidos pela vitória bolchevique na Rússia e participaram nos primeiros congressos da Internacional Comunista, em 1920 e 1921. A partir de 1917, sob a influência da revolução russa e das agitações sociais da época, muitos libertários aceitaram conceitos em princípio estranhos à sua ideologia, como a ditadura do proletariado ou a ideia de uma vanguarda revolucionária (Zoffmann 2018: 226-246). O mesmo aconteceu também no chamado movimento sindicalista revolucionário, uma corrente do movimento operário que propugnava a ação direta e que era fortemente influenciado pelo anarquismo. Porém, a assimilação do bolchevismo pelos anarquistas e sindicalistas revolucionários não foi homogénea. Geralmente, os seus principais defensores provinham do setor mais jovem e intransigente do anarquismo, aquele que era menos ideologizado e estava mais ligado às lutas da época, enquanto que a velha guarda do movimento, mais moderada nas suas táticas e com maior bagagem teórica, se mostrava algo cética perante as novas ideias vindas de Moscovo (Zoffmann 2023: 170-177). O surto de agitações operárias em 1918-1920, em Portugal e por toda a Europa, e a esperança de que a revolução russa pudesse espalhar-se para o Ocidente contribuíram para manter o movimento coeso, mas, com o refluxo e a derrota destas lutas no início dos anos 1920, as divisões latentes vieram à tona (Telo 1980: 163-176).
As tensões entre partidários e opositores do bolchevismo acabaram por produzir cisões nas fileiras do anarquismo e do sindicalismo em quase todos os países onde estas ideologias tinham influência significativa. Surgiram frações pro-bolcheviques, que se integraram no movimento comunista, enquanto que um outro setor se manteve leal à velha doutrina libertária. O peso relativo das diferentes agrupações era, porém, variável consoante o país. Vejamos alguns exemplos europeus (sendo certo que na América Latina o processo foi bastante parecido): em Espanha, onde as ideias anarquistas tinham profundo enraizamento social, que remontava às agitações de 1868-1874, a cisão filo-comunista nas fileiras da grande Confederação Nacional do Trabalho foi muito reduzida. Limitou-se a uma centena de militantes da Catalunha, de Valência e de Aragão que, à volta do sindicalista Joaquín Maurín, aderiram em 1924 ao Partido Comunista (Bizcarrondo & Elorza 1999). Em Itália, esta rutura também foi pouco significativa, sendo representada por um pequeno grupo de membros da Unione Sindacale Italiana, ao redor de Nicola Vecchi e do jornal L’Internazionale (Antonioli 1990). Por outro lado, em França, a Confédération Nationale du Travail Unifiée, uma organização sindicalista de massas, acabou em 1922 por orientar-se maioritariamente para o comunismo, graças, em parte, à postura de alguns dos seus dirigentes históricos, como Pierre Monatte ou Alfred Rosmer. Os anarquistas franceses contrários à revolução russa ficaram em posição minoritária. A CGTU forneceu, portanto, uma sólida base sindical ao Partido Comunista Francês, criado em 1920 após uma cisão do Partido Socialista (Amdur 1987, pp. 27–50). Como já foi dito, o caso português é peculiar, porque aqui não só a força dos anarquistas e dos sindicalistas pró-bolcheviques era considerável (assim como em França), mas porque foram mesmo eles que criaram o Partido Comunista Português. Isto aconteceu em março de 1921, após um processo de debate na Federação Maximalista, na Juventude Sindicalista e em outras agrupações de militantes favoráveis à revolução russa. O recém-nascido PCP não conseguiu conquistar a grande organização sindicalista do país, a CGT, mas estabeleceu uma presença importante no seio dela (Madeira 2013: 17-58).
Como podemos ver, a criação do PCP por grupos vindos do anarquismo tem certas particularidades, mas não foi um acontecimento isolado ou excecional. Pelo contrário, fez parte de uma cadeia de cisões que abalaram o anarquismo a nível internacional. Os termos dos debates entre partidários e inimigos de Moscovo foram, aliás, bastante parecidos, respondendo a situações análogas: a derrota do processo revolucionário europeu e o crescente isolamento da Rússia soviética. Não só a criação do PCP foi parte dum processo internacional, como também foi condicionada pela influência direta de Moscovo e dos comunistas dos países vizinhos. Estas cisões foram coordenadas e impulsionadas desde Moscovo, onde muitos dos seus protagonistas estiveram em 1920 e 1921, participando nos congressos da Internacional Comunista e da sua frente sindical, a Internacional Sindical Vermelha (ISV). Os antes mencionados Maurín, Vecchi e Rosmer, por exemplo, estiveram lá no verão de 1921 (Tosstorff 2016: 348-420).
A ISV atribuiu a supervisão da luta pela CGT de Portugal ao espanhol Joaquín Maurín, amigo e colaborador de um dos mais importantes chefes da ISV em Moscovo, o catalão Andreu Nin. Maurín participou do congresso sindical da Covilhã em outubro de 1922, onde as teses pró-bolcheviques foram derrotadas pelos anarquistas. Seguindo as orientações da ISV, um sindicalista asturiano, Jesús Ibáñez, estivera já em Portugal no verão de 1922, onde procurara intervir a favor de Moscovo. Todavia, em momentos de crise, a Internacional Comunista chegou a interferir diretamente nos assuntos portugueses, como aconteceu em 1923 com a visita de Jules Humbert-Droz, a fim de resolver a divisão no seio do PCP entre os grupos de Carlos Rates e de Caetano de Sousa. Os sindicalistas pró-bolcheviques de Espanha contribuíram para a formação dos Núcleos Sindicalistas Revolucionários, que agruparam os apoiantes da ISV no seio da CGTP. Estes núcleos copiavam o modelo de plataformas semelhantes em Espanha, Itália e França. O seu órgão de imprensa, A Internacional, reproduzia conteúdos de jornais similares em Espanha (La Batalla), em França (La Vie Ouvrière) e em Itália (L’Internazionale), e a sua orientação era praticamente idêntica (Tosstorff 2016: 422-608). Na verdade, nenhum destes grupos alinhava com o que mais tarde se tornaria a ortodoxia comunista, mantendo alguns elementos da ideologia anarquista. Todavia, na sua fase formativa, o movimento comunista internacional era ainda bastante heteróclito. Foi apenas após a campanha de “bolchevização” impulsionada em 1924 pelo dirigente da Internacional Comunista Grigori Zinoviev, e, sobretudo, a partir do auge do estalinismo, que o movimento comunista internacional realmente se homogeneizou (Studer 2023: 60-78).
Em conclusão, o caso do nascimento do PCP tem peculiaridades nacionais, mas não é totalmente estranho aos processos que decorriam noutros países, onde todas as grandes organizações anarquistas conheceram cisões. O ecletismo anarquizante do PCP originário não era excecional naquela época. O PCP nunca esteve isolado, e teve relações estreitas com a Internacional Sindical Vermelha de Moscovo graças à mediação dos comunistas espanhóis, sobretudo de personagens provenientes do anarquismo e do sindicalismo, como Maurín ou Ibáñez.
- Creator
- Rodríguez, Arturo Zoffmann
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Date Issued
- 31-10-2024
- References
- Amdur, Kathryn E. (1987). “La tradition révolutionnaire entre syndicalisme et communisme dans la France de l’entre-deux-guerres”. Le mouvement social 139, pp. 27–50.
Antonioli, Maurizio (1990). Armando Borghi e l’Unione Sindacale Italiana. Manduria: Lacaita.
Bizcarrondo, Marta & Antonio Elorza (1999). Queridos camaradas: La Internacional Comunista y España, 1919-1939. Barcelona: Planeta.
Cunha, Adelino (2022). “The anarchist origins of the Partido Comunista Português (PCP)”. Investigaciones Históricas. Época Moderna y Contemporánea 42, pp. 981–1018.
Madeira, João (2013). História do PCP. Das origens ao 25 de abril. Lisboa: Tinta da China.
Studer, Brigitte (2023). Travelers of the World Revolution: A Global History of the Communist International. London: Verso.
Telo, António José (1980). Decadência e queda da I República Portuguesa, vol. 1. Lisboa: Regra do Jogo.
Tosstorff, Reiner (2016). The Red International of Labour Unions (RILU), 1920-1937. Leiden: Brill.
Zoffmann Rodriguez, Arturo (2018). “Anarcho-syndicalism and the Russian Revolution: Towards a political explanation of a fleeting romance, 1917–22.” Revolutionary Russia 31, pp. 226-246.
Zoffmann Rodriguez, Arturo (2023). The Spanish Anarchists and the Russian Revolution. London: Routledge.
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Collection
Citation
Rodríguez, Arturo Zoffmann, “A fundação do PCP,” Connecting Portuguese History, accessed December 12, 2024, http://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/14.
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