Sociedade Anónima de Rádio-Retransmissão, S.A.R.L

- Title
- Sociedade Anónima de Rádio-Retransmissão, S.A.R.L
- Abstract
- Instalada numa pequena aldeia na zona do Ribatejo, em Portugal, a Sociedade Anónima de Rádio-Retransmissão, S.A.R.L, mais conhecida como RARET, desempenhou um papel importante nas disputas de propaganda e informação durante a Guerra Fria. A sua história ligou o conflito entre norte-americanos e soviéticos ao posicionamento externo da ditadura portuguesa, desde o pós-segunda guerra mundial até ao tempo da democracia, passando pelas tensões internacionais relativas à guerra colonial.
- Description
- Fundada em abril de 1951, a Sociedade Anónima de Rádio-Retransmissão, S.A.R.L (RARET) foi responsável pela retransmissão da programação da Radio Free Europe (RFE), destinada aos países socialistas da Europa de Leste. A partir de 1977, passou a retransmitir a programação da Radio Liberty (RL) destinada à URSS. Tinha sede em Lisboa, um centro recetor na Maxoqueira e um emissor na Glória do Ribatejo, no distrito de Santarém. Funcionou, sem interrupções, entre 1951 e 1996.
Formal e estatutariamente, foi uma empresa portuguesa ao serviço da estratégia de contenção do comunismo e da influência soviética, de acordo com a Doutrina Truman, formulada pelo então presidente dos Estados Unidos da América em 1947, e em parte inspirada pelas recomendações formuladas pelo diplomata e diretor de planeamento político do Departamento de Estado George F. Kennan, designadamente no memorando “The Inauguration of Organized Political Warfare”, apresentado em abril de 1948 ao National Security Council.
Entre o conjunto de propostas de Kennan constava a criação de comités de refugiados dos países europeus sob influência soviética, aos quais seriam fornecidos, entre outros, meios de radiodifusão que lhes permitiriam contactar diretamente com as populações dos seus países de origem. Nos dois anos seguintes, constituíram-se o National Committee for a Free Europe (NCFE), do qual dependia a RFE, e o American Committee for the Liberation of the People of Russia (AMCOMLIB), ao qual a RL estava subordinada. Eram apresentadas publicamente como iniciativas da sociedade civil, desvinculadas da tutela, orientação ou financiamento do governo dos EUA, o que lhes permitia negar publicamente qualquer espécie de envolvimento em atividades consideradas subversivas ou hostis por parte dos governos dos países-alvo (Lynn 2013: 7-15).
A emissão inaugural da RFE (RARET) teve lugar a 4 de julho de 1950, a partir do território da Alemanha Ocidental. Utilizando o chamado “surrogate broadcasting”, ou seja, emissões provenientes do exterior e apresentadas às respetivas audiências como emissões de rádios nacionais, a RFE pretendia difundir conteúdos informativos alternativos àqueles que eram divulgados pelos órgãos de comunicação dos respetivos países. As autoridades dos países-alvo rapidamente desenvolveram contramedidas de interferência (jammimg) para impedir ou dificultar a audição das emissões.
Conscientes das crescentes dificuldades técnicas e de segurança, os responsáveis da RFE procuraram uma localização alternativa e complementar aos emissores situados na Alemanha Ocidental. O território português encontrava-se à distância ideal e fornecia as condições técnicas e de segurança requeridas para a instalação de um complexo de emissores direcionados à Europa de Leste. O regime político português do Estado Novo, ferozmente anticomunista e antissoviético, era capaz de aceitar a instalação no seu território de uma emissora com as características da RFE, surgindo assim como aliado preferencial dos EUA, na análise política do Departamento de Estado.
Em dezembro de 1950, o embaixador dos EUA em Lisboa, Lincoln MacVeagh, formalizou o pedido do seu governo perante o presidente do Conselho de Ministros, o ditador António de Oliveira Salazar. No início do ano seguinte, deslocou-se a Lisboa um responsável do NCFE, de seu nome H. Gregory Thomas, com o objetivo de negociar direta e pessoalmente com Salazar os termos da aliança de radiodifusão entre Portugal e os EUA. As autoridades portuguesas estabeleceram as seguintes condições: o emissor operariam em modo de retransmissão; as frequências de radiodifusão seriam fornecidas pelo Departamento de Estado; seria constituída uma empresa portuguesa, a qual operaria mediante uma concessão do Estado português, na qualidade de representante dos interesses da RFE, por uma duração contratual máxima de dez anos. As negociações decorreram entre janeiro e abril de 1951, e a RARET retransmitiu pela primeira vez a 4 de julho de 1951, fazendo uso do emissor móvel “Bárbara”, enviado de Munique (Herdeiro 2021: 91-131).
Em 1952, finalmente, o centro emissor da Glória do Ribatejo ficou pronto. Dispunha de quatro emissores de onda curta RCA Type BHF-50 de 50 kW, que podiam ser utilizados individualmente ou combinados para ampliar o sinal da retransmissão. A par das instalações técnicas, dispunha de instalações para os funcionários, tais como áreas de restauração, centro clínico e espaços de lazer, tudo inserido numa propriedade, a Herdade de Nossa Senhora da Glória, com uma área total de 196 hectares. O custo total para a sua construção foi de 2,860,000$00, o equivalente a 98,620.00 dólares, a preços de 1951.
As diferentes visões e abordagens face à política colonial portuguesa no início da década de 1960 propiciaram um clima de tensão entre os governos de Lisboa e Washington, cujas ondas de choque se repercutiram na RARET, criando dificuldades em momentos de renovação contratual. Ao pretender renovar por mais uma década o contrato estabelecido em 1951, o NCFE recebeu do governo de Lisboa uma oferta para seis meses, aumentada posteriormente para um ano. As incertezas face às intenções de Lisboa deixaram os responsáveis do NCFE/RFE temer o pior. Simultaneamente, as relações entre Washington e Moscovo passavam pela sua pior fase desde o início da Guerra Fria: em causa estava a construção do Muro de Berlim e o início das tensões em torno de Cuba, tendo como pano de fundo a corrida armamentista e a disputa pela conquista espacial. Privar a RFE de retransmitir a partir da Glória significaria um rude golpe num segmento importante da política externa dos EUA. Após um longo processo negocial de dois anos, em abril de 1963 a RARET obteve a tão desejada renovação contratual.
O novo contrato permitiu retransmitir e emitir, adquirir quatro emissores de 250 kW e assegurar um pagamento anual de $100,000.00 ao Estado português durante a vigência do contrato. Saliente-se a ação social da RARET, que possibilitou a criação da Escola Industrial da RARET no ano letivo de 1967/68, assim como o fornecimento de assistência médica à população da Glória e arredores, através da clínica existente no centro emissor.
No início da década de 1960, a administração norte-americana reconheceu as Rádios – RFE e RL – como emissoras oficiais, substituindo as anteriores estruturas – NCFE e AMCOMLIB – por uma nova entidade, o Board of Internacional Broadcasting (BIB). Ssimultaneamente, cessaram os laços com a CIA.
Uma década mais tarde, a renegociação contratual de 1973 deparou-se com o novo quadro institucional das Rádios, adiando-o para o ano seguinte. O corte abrupto provocado pelo golpe militar de 25 de abril de 1974, e pelo processo revolucionário subsequente, teve como consequência o arrastar das negociações por mais quatro anos. O novo contrato, assinado em abril de 1977, válido por quinze anos, trouxe alterações significativas: a difusão das emissões da RL para a URSS; emissões semanais para as comunidades portuguesas na Europa, através da Rádio Difusão Portuguesa (RDP); a aquisição de novos emissores; o pagamento anual de $200,000,00 ao Estado português (Mickelson 1983; 157).
A década de 1980 ficou marcada por um atentado à bomba às instalações do centro emissor, sem danos pessoais ou materiais, nas vésperas da visita a Portugal do presidente dos EUA, Ronald Reagan.
A queda do Muro de Berlim em 1989, o processo de democratização dos países sob influência soviética e o desmembramento da URSS em 1991 levariam a supor que a RARET teria cumprido a sua missão, conduzindo ao seu encerramento. Porém, os responsáveis do BIB entenderam em sentido contrário, e em 1991 manifestaram interesse em formalizar novo contrato de dez anos. Foram realizados novos investimentos, mediante a aquisição de novos emissores de 500 kW e a transformação do centro recetor em emissor. As receitas para o Estado português aumentaram significativamente, prevendo-se o pagamento de $25,000000.00 durante a vigência do contrato. Contudo, os rápidos desenvolvimentos políticos verificados nos antigos países socialistas da Europa de Leste e na ex-URSS permitiram a abertura de delegações – da RFE e da RL – nas respetivas capitais, colocando em causa a manutenção da RARET, que em 1996 encerrou atividade.
Durante os 25 anos posteriores ao encerramento, a memória da RARET viveu sobretudo naqueles que lá trabalharam ou estudaram, em especial no seio da população da Glória do Ribatejo, principal beneficiária da instalação do Centro Emissor na região. Porém, iniciativas de caráter local contribuíram igualmente para relembrar a presença norte-americana na região, tais como a atribuição toponímica de Avenida dos Estados Unidos da América à principal artéria da Glória, ou a inauguração de uma infraestrutura cultural – Espaço Jackson – composta por biblioteca, salas de internet e sala multiusos num espaço outrora pertença da RARET. A atribuição do nome foi uma homenagem à figura de Charles Douglas Jackson, presidente do Free Europe Committe (1951-1952), que tinha visitado a Glória por ocasião da inauguração do Centro Emissor em 1952.
Mais recentemente, o tema do envolvimento português nas iniciativas de radiofusão dos EUA durante a Guerra-Fria conseguiu chegar ao público em geral. A RARET, que parecia ter sido um segredo bem guardado ao longo de décadas, surgiu perante o público português em 2021 de duas formas distintas: através da série de ficção “Glória”, primeira produção portuguesa para a cadeia Netflix, e de uma investigação académica apresentada no ISCTE-IUL na área da História Contemporânea (“RARET – A Guerra-Fria combatida a partir da charneca ribatejana”). Tal permitiu conhecer melhor o papel que a rádio teve na guerra de propaganda no período da Guerra Fria, a relação institucional entre Portugal e os Estados Unidos da América, mas também, numa dimensão menos institucional, a presença americana numa comunidade rural que vivia em grande isolamento. Ficção e historiografia complementaram-se, desempenhando um papel importante na criação da consciência histórica e da memória coletiva.
- Creator
- Herdeiro, Vítor Madail
- Date Issued
- 3-01-2024
- References
- Cummings, Richard. H (2009). Cold War Radio: The Dangerous History of American Broadcasting in Europe 1950-1989. Jefferson, NC: Macfarland & Company Inc.
Herdeiro, Vítor Madail (2021). RARET – A Guerra Fria combatida a partir da charneca ribatejana. Lisboa: Edições 70.
Johnson, A. Ross (2010). Radio Free Europe and Radio Liberty – The CIA Years and Beyond, Stanford, CA: Stanford University Press.
Lynn, Katalin Kádár (org.) (2013). The Inauguration of “Organized Political Warfare”: The Cold War Organizations Sponsored by the National Committee for a Free Europe / Free Europe Committee. Prague: Central European University Press.
Puddington, Arch (2000). Broadcasting Freedom – The Cold War Triumph of Radio Free Europe and Radio Liberty. Lexington, KY: University Press of Kentucky.
Mickelson, Sig (1983). America’s Other Voice: the story of Radio Free Europe and Radio Liberty. New York: Praeger.
Collection
Citation
Herdeiro, Vítor Madail , “Sociedade Anónima de Rádio-Retransmissão, S.A.R.L,” Connecting Portuguese History, accessed March 6, 2025, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/86.
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