Faria, Fábio Alexandre | <a href="https://www.cienciavitae.pt/portal/9B1C-631F-0853" target="_blank" rel="noreferrer noopener">Faria, Fábio Alexandre</a> | | |
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Abolição da pena de morte | Abolição da pena de morte | | |
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Description:A pena de morte, como punição administrada pelo Estado, com base na lei, foi uma prática comum ao longo da História humana, tanto no Ocidente como noutras partes do mundo. Como prática violenta, foi sendo questionada de forma casuística ao longo do tempo. Na verdade, até ao séc. XVIII – altura em que a sua justificação prática e jurídica foi posta em causa nalguns pontos da Europa Ocidental – era uma norma (de jure ou de facto) que decorria do direito de regulação social atribuído aos poderes instituídos.
Na Europa, foi executada com algum recato até aos finais da Idade Média, altura em que passou a ser um instrumento de poder fulcral do Estado Moderno, apostado que estava este em afirmar o monopólio da violência legítima, impondo a pena de morte na base do aparato jurídico e penal que advinha da autoridade e do poder centralizado e absoluto – do Rei, da Igreja, ou da República. De meados até finais do séc. XIX, em vários países do Ocidente, a pena de morte deixou de ser aplicada a crimes políticos, tendo sido restringida ao domínio comum, com a finalidade de dissuadir e controlar o criminoso. Assim, nos finais do séc. XIX e inícios do séc. XX, são já muitos os países que optam por abolir a pena de morte – como aconteceu em Portugal, em 4 de julho de 1867 –, tendo ficado fragilizada muita da argumentação que sustentava a filosofia e a prática dos países “mortícolas”, isto é, aqueles onde prevalecia a aplicação desta pena. Este primeiro patamar do abolicionismo – reforçado pela adesão dos países escandinavos no início do séc. XX – foi mais tarde superado por uma segunda vaga, iniciada no pós-II Guerra Mundial em países como a Áustria, a Finlândia, a Itália e a Alemanha Ocidental, e depois concluído, na última década do séc. XX, pela esmagadora maioria dos países europeus, em função de normas impostas por declarações e convenções universais (adotadas sob a inspiração da ONU e do Conselho da Europa), pela sensibilidade humanitarista que resultou na recusa da aceitação do sofrimento humano e do uso gratuito da violência, e da própria inutilidade da pena como forma de controlo da criminalidade. Depois da queda da URSS, os países que antes se encontravam incluídos no Bloco de Leste também seguiram o abolicionismo: Alemanha Oriental, Roménia, Hungria, República Checa, Eslováquia e, mais tarde, Polónia, Sérvia, Croácia e Macedónia.
Embora lentamente, o abolicionismo estendeu-se não só à esmagadora maioria dos países europeus, mas a muitas novas democracias (incluindo a África do Sul e as Filipinas), deixando de fora os Estados Unidos (na maioria dos seus estados), a China e alguns países do Médio Oriente e da Ásia. Em 2022, existiam 148 países abolicionistas, 114 dos quais com abolição para todos os crimes, e 25 abolicionistas de facto; do total, apenas 9 mantinham a pena de morte para crimes comuns. Em contrapartida, 55 países continuavam a ter a pena de morte na lei, embora, na esmagadora maioria, sem a aplicarem na prática. A China, o Vietname e a Coreia do Norte mantêm uma política de total sigilo, pelo que se desconhece a verdadeira dimensão do problema nesses países. No mesmo ano de 2022, os dados conhecidos apontam para a ocorrência de execuções por pena capital nos EUA (18), no Egito (24), na Arábia Saudita (196) e no Irão (576), num total de 883. Sabe-se que ocorreram execuções na China, mas não é possível determinar o seu número (Relatório da Amnistia Internacional para o Ano de 2022).
A abolição da pena de morte constitui hoje um patamar de civilização consagrado por normas jurídicas internacionais, que exercem uma pressão abolicionista forte sobre os estados retencionistas, tendo-se constituído como um indicador – e como um travão – para a entrada desses estados nos areópagos que se guiam por princípios democráticos e pelo respeito pelos Direitos Humanos (como é o caso do Conselho da Europa). Embora a natureza da pena de morte enquanto questão política se tenha alterado, em substância os argumentos dos “mortícolas” e os princípios filosóficos, humanitários, jurídicos e práticos dos abolicionistas não mudaram desde os finais do séc. XVIII, altura em que alguns estados liberais, munidos de instrumentos jurídicos e institucionais novos, puderam prescindir do barbarismo desta punição, até aí aplicada em praça pública com a finalidade de atemorizar os súbditos. Neste sentido, o abolicionismo é um legado do liberalismo e do pensamento de iluministas como Beccaria.
A obra Dei delitti e delle pene, de César Bornesano, marquês de Beccaria, publicada em 1764, condensou as preocupações mais avançadas da consciência da época sobre a legitimidade e a utilidade da pena de morte, revolucionando os códigos penais modernos e dando azo a um profundo debate sobre o regime prisional e sobre o sistema punitivo contemporâneos. Repudiou a ideia de pena como expiação da culpa – tão cara ao espírito inquisitorial ainda bem vivo na sua época – e questionou a intimidação e a “exemplaridade” dos autos de fé e das execuções públicas porque, como considerava, “A pena de morte é (...) funesta à sociedade pelos exemplos de crueldade que fornece aos homens.” Na sua inovadora perspetiva, a pena teria de visar mais a prevenção do mal futuro do que a reparação do crime cometido; portanto, ela só faria sentido se tivesse como meta a correção do delinquente. “O objetivo da pena não é, portanto, outro senão impedir que o delinquente cause novos danos aos seus concidadãos e evitar que outros façam o mesmo”. Exemplar para a sociedade seria – se ocorresse – a reabilitação do condenado, e não a pena de morte, por não permitir a graduação do castigo e por ser inapelável e definitiva.
Buscando argumentos na ideia de contrato social de Rousseau, Beccaria considerava que não fazia nenhum sentido considerar que o homem se poderia dispor a ceder o direito de lhe tirarem a vida: “a soberania e as leis não são senão a soma das pequenas liberdades que cada um cedeu à sociedade”. O fundamento da punição só podia residir na utilidade comum e esta na lei moral, que havia de considerar iníqua qualquer condenação que ultrapassasse o interesse geral. Tudo se resumia então em saber se a pena de morte seria útil e necessária: excluindo da sua argumentação as dimensões filosófica e teológica, o autor deslocou o problema para os domínios utilitaristas do direito e da política. De ora em diante, o problema passou a ser formulado em termos políticos, sob o signo da discussão de saber se a pena capital pode ser substituída por outras penas, sem risco de aumento da criminalidade. Ora – considerava Beccaria –, se há meios mais eficazes do que a pena última para prevenir a prática de crimes futuros, então ela não só é inútil, como é desnecessária. Assim, propôs a substituição da pena capital pela pena de trabalhos forçados para toda a vida – a “escravidão perpétua”. A par da defesa da abolição da pena de morte, o ensaio de Beccaria foi ainda modelar na crítica feroz à condução arbitrária dos processos criminais, condenando a tortura como forma tradicional de captação de confissões.
Mercê destes avanços doutrinários, pequenos estados aboliram a pena de morte de jure e de facto: a Toscana (em 1786), alguns novos países independentes na América do Sul e Central (como a Venezuela, em 1863, e a Costa Rica, em 1877), e também Portugal (em 1867), sendo que, neste último caso, o pioneirismo se aliou ao facto de no nosso país a abolição nunca mais ter sido revertida, com exceção da sua aplicação em período de guerra (em 1916). No entanto, no contexto do séc. XIX tais casos são ainda excecionais; no início do séc. XX, irão juntar-se-lhes os países escandinavos (a Noruega em 1905, a Suécia em 1921, e a Dinamarca em 1930) e alguns outros países sul-americanos.
A estratégia abolicionista segue em todos os países uma prática comum, orientada por princípios humanitários, jurídicos e políticos. Começou por se lutar pela restrição dos motivos para a aplicação da pena de morte, pela suplicação de comutações pelo Rei, ou pela condenação das práticas de martírio executadas em praça pública. Em Portugal, é famoso o episódio ocorrido em Lisboa em 16 de abril de 1842, em que, sob enorme comoção pública, morrem Matos Lobo, o réu condenado, e o prior encarregado de o confortar, fulminado por uma apoplexia. Também o padre que o substituiu acabou por desfalecer à vista do cadafalso, instalado no Terreiro de Santos.
Do domínio humanitário, os liberais partiram para o campo jurídico, procurando abolir a pena de morte nos Códigos e nas Constituições. É um processo complexo, de avanços e recuos, que dá passos largos quando os tratadistas conseguem guindar-se à condição de deputados ou de ministros. Em Portugal, ficou célebre o trabalho doutrinário e político de D. António Aires de Gouveia, Lente da Universidade de Coimbra (o “bispo vermelho”, como ficou conhecido), que foi deputado e ministro da Justiça em 1865 e em 1892. Apodava a pena de morte de “impiedade”, “sacrilégio”, “insulto à civilização”. Assim como noutros países, em Portugal a oportunidade de consagrar a abolição na lei surgiria com a reforma das cadeias, matéria de natureza essencialmente política, que se decidia em função da capacidade do estado para punir ou dissuadir o criminoso e para conceber e administrar formas de cativeiro mais ajustadas às novas teorias de correção e regeneração do preso. O criminoso podia, em suma, ser castigado de outras formas, até mais “aflitivas” e em graus diferenciados, até à “escravidão perpétua”.
Neste contexto, o abolicionismo era, em finais do séc. XIX, uma matéria que, não ignorando os princípios filosóficos e jurídicos, se discutia em termos utilitaristas: as estatísticas demonstravam que a sua aplicação não constituía forma eficaz de dissuasão. O direito de recurso dos condenados, que começou a ser consagrado nos Códigos de muitos países, atirava os presos durante décadas para “corredores da morte”, o que além do mais podia resultar na demonstração de erros crassos dos tribunais, como aconteceu no caso da aplicação da pena de morte a Sacco e Vanzetti (EUA, 1927), cujo erro jurídico só foi reconhecido cinco décadas mais tarde. Nos países europeus que detinham largos espaços coloniais e territórios inóspitos (como era o caso de Portugal), o degredo e a deportação em massa para colónias penais e para campos de concentração passaram a ser formas de erradicar os “indesejáveis” e “incorrigíveis”, condenando-os a uma “morte perpétua”.
Vivemos hoje sob o efeito da última grande vaga de abolições ocorridas na última década do séc. XX, quando países como a Irlanda (1990), a Itália (1994), a Espanha (1995), a Bélgica (1996) ou o Reino Unido (1998) – para darmos só exemplos significativos – aboliram, em definitivo, a pena de morte dos seus Códigos. Até ao início dos anos 1990, a União Soviética ou a África do Sul ocupavam lugares cimeiros no número de pessoas executadas; hoje, tanto a África do Sul como as antigas repúblicas soviéticas aboliram a pena de morte de jure (e, tanto quanto se pode saber, de facto). Para estas tomadas de decisão históricas, muito terá contribuído a “landmark Soering”, uma decisão (com capacidade para criar precedente jurídico) do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos perante o apelo feito por Soering, um cidadão alemão que se encontrava na iminência de ser extraditado para os EUA, onde, segundo o seu apelo, corria o risco de ser “sujeito a tratamento degradante e à pena de morte”. A responsabilização dos países pela extradição de cidadãos para locais onde correm o risco de ser sujeitos à pena de morte foi incluída na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e esta modalidade de pena foi proibida (1989), o mesmo acontecendo no Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), aprovado em 1989. Norma semelhante foi consagrada no Protocolo com vista à Abolição da Pena de Morte, da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, adotado em 1990 pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos.
Em 1989, aproximadamente 80 países tinham abolido a pena de morte, enquanto a maioria (100) eram ainda retencionistas. Porém, no início do séc. XXI eram já 123 os Estados abolicionistas, tendo o seu número aumentado para 148 em 2022, dando ideia de um movimento imparável, com exceção de alguns estados norte-americanos, do Médio Oriente e da Ásia.
Ao contrário do que acontecia no séc. XIX, onde minorias esclarecidas foram responsáveis pelo abolicionismo, mesmo em países onde era comum afirmar-se que a população, de forma geral, defendia a sua manutenção, hoje tais decisões parecem antes derivar do respeito pelo direito à vida e à segurança individual, consagrados no Art. 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e nas Convenções e Protocolos subsequentes, bem como do efeito de uma consciência humanitarista generalizada.
Subsiste, evidentemente, a defesa da pena de morte em países como os EUA, com base em juízos genéricos e de difícil comprovação prática. Para os seus defensores, a pena dissuadiria os criminosos, faria justiça às famílias das vítimas, permitiria a “vingança” de atos terroristas horrendos ou de crimes muito graves. Por último, em alguns estados democráticos tem-se defendido que a maioria da população, ao contrário dos decisores, apoia a aplicação da pena de morte. Para responder a esta questão, em 2001 a Irlanda promoveu um referendo, com vista a ser retirada da Constituição qualquer referência à morte como penalidade, mesmo em casos de emergência, consulta que colheu o voto favorável de 62,08% da população.
Para a abolição da pena capital em todo o mundo, organizações como a Amnistia Internacional lutam hoje pelo integral conhecimento da sua aplicação, combatendo o sigilo que se verifica em países como a China, e contrariando ainda a ideia, muito generalizada nos EUA, de que a “morte limpa” (por injeção letal ou eletrocussão) constituiria uma solução humanista, por não infligir dor ao condenado. [show more]
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Accornero, Guya | Accornero, Guya | | |
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Acordo Cultural Luso-Brasileiro de 1941 | Acordo Cultural Luso-Brasileiro de 1941 | | |
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Description:Assinado no Rio Janeiro a 4 de setembro de 1941, o Acordo Cultural Luso-Brasileiro representou a cunhagem simbólica do imenso esforço de cooperação cultural entre os “Estados Novos” do varguismo e do salazarismo. Esta cooperação havia sido emblematizada na participação brasileira nas comemorações do duplo centenário de 1940 e, como expressão de reciprocidade e agradecimento, no envio, em 1941, de uma missão/embaixada especial portuguesa ao Brasil (Paulo 1994). O acordo foi assinado no Palácio do Catete, sede da Presidência da República na cidade do Rio de Janeiro, por Lourival Fontes, diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda brasileiro (DIP), e António Ferro, diretor do Secretariado da Propaganda Nacional português (SPN). Não obstante ter correspondido a um esforço de aproximação bilateral, o estreitamento de laços entre os dois regimes produziu efeitos escassos, diversos e impermanentes, em planos como o económico e de alinhamento político externo (Santos 2006). As suas ressonâncias foram sobretudo de ordem propagandística, assentes na ideia de um desígnio histórico-linguístico e cultural partilhado.
Nos decénios de 1930 e 1940, o comércio transatlântico do impresso no espaço luso-brasileiro foi estimulado por políticas para o livro, a edição e a leitura. Neste domínio, a circulação fazia parte de uma estratégia política mais vasta, relacionada com o lastro histórico e cultural, primordialmente a partir da década de 1930 (ainda antes da instituição da ditadura de Getúlio Vargas), quando se verificou a implementação de uma política pan-lusitanista (Serrano 2014), prosseguida com especial ênfase por António de Oliveira Salazar. É neste âmbito que se podem também situar a ação cultural do Instituto Nacional do Livro, fundado no Brasil em 1937 (Tavares 2020), ou a instituição da Secção do Intercâmbio Luso-Brasileiro no SPN, em Lisboa (já fruto do Acordo Cultural de 1941), incluindo a publicação de instrumentos impressos que materializassem ou exibissem a aproximação entre os regimes de Portugal e do Brasil, de que a revista Atlântico constitui um dos exemplos mais flagrantes. Nesta dinâmica, inscrevem-se igualmente a inauguração do Instituto Luso-Brasileiro de Alta Cultura, em 1935, e, ainda antes, o acordo ortográfico de 1931, congraçando a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Ciências de Lisboa, e correspondendo a uma diligência de apaziguamento da clivagem que havia sido criada com a Reforma Ortográfica republicana de 1911.
A aproximação cultural delineada no Acordo de 1941 pode assimilar-se a um impulso sem precedentes rumo a uma confluência estratégica das políticas nacionalistas de ambos os lados do Atlântico. De certo modo, o Acordo Cultural Luso-Brasileiro traduz, nos planos formal e diplomático-simbólico, uma estratégia de sancionamento de afinidades, vinculada diretamente a interesses políticos e orientações ideológico-culturais, que instrumentalizam o lastro histórico e a língua comum para forjar um reportório memorialístico, concretizando iniciativas diversas, com destaque para a propaganda através da cultura escrita. Esta estratégia aproveitava laços intelectuais que vinham de trás (remontando ao final do século XIX), bem como a presença coetânea (nos anos 1940) de personagens-charneira do mundo extra-governativo, como a do editor e livreiro António de Sousa Pinto, por exemplo (Medeiros 2015).
O Acordo Cultural de 1941 foi fundamentalmente um arranjo político, e não tanto um tratado diplomático ou acordo comercial. Ele outorgava visibilidade a uma atuação deliberada, cuja razão se baseou no desígnio original de estabelecer laços culturais e políticos suscetíveis de atualizar uma conceção de nação cuja força motriz doutrinária se fundasse na partilha, de natureza extraterritorial, de uma língua e de uma história. António Ferro, em discurso de 1941, definia os pressupostos do Acordo, defendendo a existência de uma força nacionalizadora, que apelidava de “pátria flutuante”, espraiando-se por vários continentes através do mar (Ferro 1949: 35). Por sua vez, o seu homólogo Lourival Fontes insistia em que a língua portuguesa constituía um “vínculo indelével” entre as duas nações (Atlântico 1942, n.º 1, p. 2). No quadro dos instrumentos administrativos de operacionalização recíproca de vários aspetos do Acordo, ficou definida a criação de duas secções de representação de interesses, no seio dos dois organismos responsáveis, em cada um dos países, pela política cultural: a Secção Portuguesa, no interior do DIP (mais efémera e incapaz de sobreviver à queda da ditadura de Getúlio Vargas), e a Secção Brasileira, dentro do SPN, a qual conheceu uma presença duradoura na arquitetura institucional do Estado português; mesmo após o fim do Estado Novo no Brasil, permaneceu até 1974 como Secção de Intercâmbio Luso-Brasileiro.
O Acordo, sublinhe-se, não se cingia ao mundo da comunicação escrita. Esta ocupava apenas uma parcela do conjunto de catorze eixos de promoção cultural em sentido amplo, prevendo um feixe ambicioso e diversificado de atribuições: 1) intercâmbio e publicação de artigos inéditos; 2) intercâmbio de fotografias; 3) envio ao Brasil e a Portugal de conferencistas, escritores e jornalistas; 4) colaboração recíproca e com orientação comum quanto ao noticiário; 5) criação da revista Atlântico; 6) troca de publicações de turismo e propaganda; 7) divulgação do livro português no Brasil e do livro brasileiro em Portugal; 8) emissões radiofónicas e permuta de programas radiofónicos de interesse comum; 9) prémio pecuniário anual, atribuído conjuntamente; 10) permuta de exposições de arte e intercâmbio de artistas brasileiros e portugueses; 11) intercâmbio de atualidades cinematográficas; 12) facilidades para o turismo luso-brasileiro; 13) estudo do folclore luso-brasileiro e edições comuns sobre o tema; 14) comemoração de datas históricas de interesse comum (Atlântico 1942, n.º 2, pp. 180-182).
A realização de concertos, conferências, exposições e feiras dava desde logo o mote para uma série de iniciativas que foram animando o programa cultural e propagandístico, injetando temas brasileiros em Portugal e tópicos portugueses no Brasil. Decorrendo em diversos locais e cidades dos dois países, o grosso dos certames concentrou-se no primeiro lustro dos anos 1940, coincidindo com a coexistência de ambos os “Estados Novos”, persistindo mais esparsamente depois de 1945 e até ao final da década, apenas em Portugal, um conjunto de realizações.
Na implementação desta política cultural, os impressos ocuparam um lugar estratégico de difusão e salvaguarda do reiteradamente propalado património comum. Este ia da publicação de periódicos como Atlântico: revista luso-brasileira, Brasília, Boletim da Secção Brasileira do Secretariado da Propaganda Nacional ou Terra de Vera Cruz, à edição das coleções “Documentos dos Arquivos Portugueses que Importam ao Brasil” ou “Atlântico”. Para o caso português, por exemplo, é no interior da política editorial do Acordo de 1941 que emerge o apoio e subsidiação de instâncias e projetos pela Secção Brasileira, tais como o Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de Coimbra e Brasília, provavelmente a revista luso-brasileira de mais longa duração (1942-1968). Arregimentando um feixe de artistas e intelectuais portugueses e brasileiros, esta dinâmica editorial procurava dar visibilidade ao Acordo, mas também a outras vertentes do projeto político então gizado. A lógica deste encontro entre regimes homónimos, largamente vertida no Acordo Cultural de 1941, revelou uma intenção política claramente respaldada nos projetos nacionalistas que nos anos finais do decénio de 1930 e na primeira metade do seguinte marcaram a obra, a retórica e os propósitos ideológico-programáticos dos governos de Brasil e Portugal.
O esteio deste encontro de vontades não correspondeu necessariamente a uma partilha absoluta de estratégias e de modos de viabilização de uma colaboração institucional de alto nível entre os dois países. A interlocução de um ideário de matriz nacionalista operou-se a partir de propósitos específicos, modulados por interesses e proposições de fundamentação diversa. Do lado português, o impulso soube perdurar e ser mais intensamente assumido, erigindo uma mobilização estruturada em torno de um pressuposto que assimilou a história e a cultura nacionais à afirmação de uma conceção política pan-lusitanista. Forjada e estimulada pela propaganda dos organismos públicos, essencialmente portugueses, a política do pan-lusitanismo conduzia a aproximação, destacando o lugar do Brasil no passado quinhentista português (Serrano 2014). Sob este imperativo, inúmeras estratégias de propaganda foram criadas no sentido de realçar o lastro histórico comum, reafirmado na colonização do Brasil como uma espécie de montra de um passado português que se procurava apresentar como glorioso. A compatibilidade de intuitos era confrontada por solidariedades internacionais e por interesses socioeconómicos nem sempre convergentes – incluindo discrepâncias em posicionamentos de natureza simbólica e de memória histórico-ideológica, a exemplo do desconforto gerado nas hostes portuguesas quanto a certos temas apresentados por participantes brasileiros no Congresso de História Luso-Brasileiro em 1940, como é o caso o do dissídio das inconfidências setecentistas (Blotta 2009). Apesar de tais discordâncias, a cooperação luso-brasileira é largamente motivada pela necessidade legitimista de dois regimes de natureza autoritária, alicerçada em dinâmicas ideológicas e narrativas compagináveis, gravitando em redor da proposta de unidade linguística e de uma comunidade histórico-cultural na qual radicaria em medida não pequena a razão de ser da nação. O fim do Estado Novo brasileiro não interrompeu certa colaboração cultural sem deixar a descoberto as tensões e contradições que o processo nunca deixou de possuir.
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Adubos azotados | Adubos azotados | | |
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Description:"As leguminosas e em particular o tremoço, que é das mais ricas, são verdadeiras fábricas de azoto (o elemento mais caro da adubação) ao alcance de todos e que não exigem operários nem maquinismos e não têm necessidade de segurar-se contra as greves."
(Artur Castilho, A Valorização dos Estrumes pelas Estrumeiras, 1924)
O azoto é um gás inerte e incolor que constitui, na sua forma diatómica (N2), cerca de 78% do volume atmosférico, cabendo ao oxigénio uma fatia de 21%, entre muitos outros compostos residuais, dos quais o decisivo dióxido de carbono ocupa, aos dias de hoje, uns vestigiais 0,04%. Também conhecido como nitrogénio, o azoto é um dos principais nutrientes das plantas, que o vão buscar ao solo em formas assimiláveis, incorporadas por organismos do solo, pela água da chuva e pelos adubos orgânicos e químicos. O azoto é, ademais, nas mesmas formas úteis ao crescimento vegetal – os nitratos (NO3-) e a amónia (NH4+) – um componente principal na fabricação de explosivos, cuja síntese industrial a partir da inesgotável reserva atmosférica foi alcançada nas vésperas da primeira guerra mundial. O processo de Haber-Bosch, como ficou conhecido, libertou a um só tempo o fabrico de adubos azotados e de munições dos depósitos minerais de nitrato de sódio localizados no Chile e no Peru.
A agricultura portuguesa acompanhou de perto a história global do azoto, nos seus vários aspectos agronómicos e militares, e procurou incrementos para a fertilização azotada dos campos cultivados, entre meados do século XIX e o segundo pós-guerra, almejando, por um lado, a “revolução do nitrogénio” das produtivas agriculturas do norte europeu – que substituíram os afolhamentos de pousio nas rotações de cereais por cultivos intercalares de leguminosas fixadoras de azoto atmosférico – e, por outro lado, a produção industrial de adubos químicos azotados, em face da escassez e instabilidade no comércio internacional. A produção nacional de “azotados” foi planeada na década de 1920, mas só se tornou realidade em 1952, após sucessivos embaraços tecno-industriais, pondo finalmente termo ao ciclo de “fome de azoto” na agricultura portuguesa, declarada desde finais de Oitocentos. Percorrendo este tempo, procura-se neste verbete relevar as especificidades portuguesas, tanto agroecológicas como tecnológicas, em relação com alterações importantes na geoquímica e na geopolítica do azoto.
Justus von Liebig estabeleceu na década de 1840 a teoria mineral da nutrição de plantas, demonstrando que o húmus e outras substâncias orgânicas, como os estrumes e os lixos, alimentam as plantas na medida exacta do seu conteúdo em elementos inorgânicos (tais como o azoto, o fósforo e o potássio). Com isso, abriu caminho para o desenvolvimento “industrial e químico” da agricultura, na expressão de João Ferreira Lapa, agrónomo que no início da década de 1860 introduziu a teoria mineral no ensino ministrado no Instituto Agrícola de Lisboa. As novas ideias, e as suas declinações industriais, correram rápido. São do início da década de 1840 as primeiras referências à teoria mineral em Portugal e, em 1859, uma nova unidade fabril na Póvoa de Santa Iria, tida como a primeira fábrica portuguesa de adubos químicos, começou a produzir, entre outros produtos, o superfosfato de cal para servir a agricultura. Seguiu-se, em 1888, a Sociedade Tinoca, instalada em Cabo Ruivo, e, em 1908, a instalação no Barreiro pela Companhia União Fabril (CUF) da maior fábrica de superfosfatos da península. Estava, assim, resolvida a questão dos adubos fosfatados. O fornecimento de fósforo ao solo agrícola não mais parou de crescer, em conjugação com a crescente cultura cerealífera (Carmo & Domingos 2021: 718-721).
A teoria mineral abalou os fundamentos da ciência agrícola oitocentista, mas não mudou, num primeiro momento, os sistemas agro-silvo-pastoris de restituição orgânica da fertilidade do solo. Até ao final do século XIX, a produção, a importação e o consumo de adubos mantiveram-se residuais em Portugal. Tratava-se, sobretudo, de adubos fosfatados (os superfosfatos importados ou de produção nacional), o emblemático Nitrato do Chile, cujo reclamo em azulejo decora ainda inúmeras esquinas por todo o país, e uma miríade de substâncias orgânicas de alto valor fertilizante, como os guanos do Peru e outros “guanos” nacionais, adubos orgânicos resultantes de indústrias alimentares. Em Setúbal, por exemplo, na primeira década de 1900, fabricava-se “guano” de peixe a partir dos resíduos da indústria de conservas (Graça 1939: 5-12).
Resolvida a questão do fósforo e deixando de parte o potássio – que se encontra em quantidades razoáveis nos solos portugueses – é o difícil acesso a fontes de azoto, quer orgânicas quer inorgânicas, que vai condicionar o movimento geral de expansão e transformação da agricultura portuguesa. O crescimento inédito da área cultivada, iniciado com as grandes arroteias do último quartel do século XIX e só concluído na década de 1950, no desfecho da Campanha do Trigo, foi governado por uma carência sistémica de azoto, dos três macronutrientes o mais importante. De forma surpreendente, ao longo da primeira metade do século XX a produtividade unitária do trigo manteve-se sensivelmente constante, apesar das grandes transformações institucionais, económicas e técnicas que influíram na cultura: as colheitas passaram de cerca de 600 para 800 quilos de trigo por hectare, valores médios nacionais dos mais baixos da Europa (Carmo & Domingos 2021: 725-726).
É sobre este quadro de resultados “imutáveis” que o historiador económico Jaime Reis propôs, em balanço da historiografia acerca do atraso económico português na transição para o século XX, a consideração dos limites impostos pelo solo e pelo clima à “revolução do nitrogénio”, que produzira, mais a norte – na Alemanha, Bélgica, Holanda e Norte de França –, aumentos importantes na produtividade da terra, bem como na especialização na produção de gado e lacticínios (Reis 1993 [1984]: 14). Este conjunto de transformações, também descrito como a primeira revolução agrícola do período moderno, não teve repercussões relevantes em Portugal, com excepção provável do Norte litoral (Mazoyer 1997). Ao contrário do que sucedeu em parte importante da Europa (e.g. Allen 2008), em Portugal não ocorreu a permuta das folhas de pousio (necessárias à reposição da fertilidade do solo nas culturas arvenses de sequeiro) por cultivos de leguminosas, para grão ou forragem, fixadoras de azoto atmosférico (através de uma simbiose radicular com bactérias do género Rhizobium) e impulsionadoras da produção de estrumes. O Sul da Europa, nas províncias meridionais de Espanha, França e Itália, enfrentou dificuldades parecidas. No caso italiano, discutido pela agronomia portuguesa, as novas rotações, gradualmente despojadas das parcelas não produtivas, medraram nos climas húmidos das regiões do Norte mas não no Sul, onde as parcas chuvas primaveris impediam o crescimento satisfatório dos prados de leguminosas.
Foram, portanto, razões ecológicas, na conjugação de condições de clima e de solo num gradiente Norte-Sul europeu, e não tanto a configuração económica e fundiária da exploração agrícola no latifúndio mediterrânico, que dificultaram a revolução agrícola de base orgânica e o aumento consequente da rentabilidade da terra. Isto mesmo foi notado por Jaime Reis no início da década de 1980, entre outros estudiosos da economia agrária portuguesa, como Fernando Oliveira Baptista. No final do século XIX, Miguel Fernandes, grande proprietário rural de Beja, apresentou em conferência na Real Associação Central da Agricultura Portuguesa (RACAP) em Lisboa, uma imagem concreta dos repetidos insucessos que acompanhariam a cerealicultura na sua interminável “fome de azoto” (Seabra 1925: 5-6). Os ensaios com tremoço para “fixação do azoto atmosférico pelo enterramento de leguminosas em floração” – abreviadamente “estrumes verdes” – resultaram, após seis anos de tentativas, no fraco desenvolvimento dos tremoçais. Mesmo após um bom ano – “o tremoçal apresentava um belo maciço de verdura de uns 0,90 metros de altura” – não houve efeito visível na colheita seguinte. Para mais, a sementeira dos tremoços coincidia com a dos trigos, “quando todos os arados são poucos”, sobrecarregando em trabalho e em despesas a exploração (Fernandes 1899: 176-177).
Durante a primeira metade do século XX, este quadro não se alterou substancialmente, apesar da contínua pesquisa sobre plantas forraginosas adaptadas à “hostilidade do meio”, na qual se destacaram a Estação Agrária de Lisboa e, a partir de 1942, a Estação de Melhoramento de Plantas em Elvas, bem como várias figuras do mundo agrícola – como Miguel Fernandes, Xavier Pereira Coutinho, António Lopes de Carvalho, João de Carvalho e Vasconcelos, Domingos Victória Pires, José de Mira Galvão, José de Almeida Alves ou Mariano Feio –, que frequentemente acumularam um percurso tecnocientífico com a exploração agrícola. Como relata, em 1951, a jovem Organização Europeia para a Cooperação Económica, “o principal problema pendente de solução no sul de Portugal é a substituição do pousio não cultivado por pastagens semeadas ou cultivos forrageiros, o que permitiria uma maior produtividade por hectare” (OEEC 1951: 419).
Do lado das fontes inorgânicas de azoto, tudo mudou (ou começou a mudar) na década de 1910, com o desenvolvimento do processo químico, há muito procurado, de síntese de amoníaco (NH3) a partir do azoto atmosférico. Coube a dois químicos alemães, Fritz Haber e Carl Bosch, distinguidos em 1918 e 1931, respectivamente, com o prémio Nobel da química, a formulação da síntese de amoníaco numa escala industrial, eficiente e lucrativa. Em 1913, após várias instalações experimentais em laboração desde 1909, foi, pela primeira vez, produzido amoníaco na fábrica da BASF em Oppau, Alemanha, que atingiu no ano seguinte a produção de 20 toneladas de azoto por dia, convertido maioritariamente no fertilizante sulfato de amónio. Com o início da primeira grande guerra, a produção desvia-se das finalidades agrícolas, de modo a suportar a indústria de munições alemã, que perdera, entretanto, o acesso aos nitratos do Chile, bloqueado pelas forças aliadas. A produção de nitratos não estava, porém, estabelecida, e foi necessário reconfigurar o processo industrial, uma vez mais sob a direcção de Carl Bosch, numa “parceria natural” entre os interesses da BASF e o esforço de guerra do Segundo Reich. Nos últimos anos da guerra, Oppau não produziu qualquer fertilizante, transformando todo o amoníaco em ácido nítrico (HNO3) (Smil 2001: 61-107).
Mais tarde, este novo procedimento foi fundamental na produção de uma nova família de adubos azotados, de base nítrica e não amoniacal, como o nitrato de sódio, o nitrato de cálcio e o nitrato de amónio, formando-se assim um complexo industrial agro-militar, que oscilou em movimentos pendulares entre a química da vida e da morte, como bem ilustra o itinerário científico dos seus dois maiores protagonistas, Haber e Bosch, e, de forma dramática, uma grande explosão ocorrida em Oppau, a 21 de setembro de 1921, nos silos de armazenamento de fertilizantes (com 4 500 toneladas de uma mistura instável de sulfato e de nitrato de amónio), que provocou a morte de mais de 500 trabalhadores fabris.
Em resultado do Tratado de Versalhes (1919) surgiram as primeiras aplicações do processo de Haber-Bosch em França, na Grã-Bretanha e nos E.U.A. No imediato pós-guerra, surgem igualmente outras variantes cujo desenvolvimento fora iniciado ainda durante a guerra, como o processo Claude, instalado em França em 1921, e o processo Casale, desenvolvido em Itália (Smil 2001: 109-116). Em Portugal, são registados em 1922 dois pedidos de patente para “fabrico de amoníaco sintético”, os quais não tiveram seguimento. Tratou-se, na verdade, de uma tomada de posição por duas empresas do sector dos adubos – a Companhia Industrial Portuguesa (CIP) e a Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes (SG), criada pela CUF em 1920 – que não dispunham do necessário arcaboiço tecnológico ou de capital. Em 1925, o Ministério da Agricultura retoma a “questão dos azotados”, criando uma comissão para estudar a viabilidade da sua produção em Portugal, da qual resultam, por decreto, as bases para a “introdução da indústria do azoto em Portugal”. Dos vários considerandos iniciais, fundamentando a importância da fertilização azotada na supressão do “deficit cerealífero”, emanam os novíssimos significados políticos do azoto forjados no conflito europeu, reconhecendo-se no amoníaco sintético “uma das condições de independência nacional, não só pela respectiva aplicação em tempo de guerra no fabrico de explosivos, como também pela sua preciosa utilidade como factor de produção das principais substâncias alimentares” (Pereira 2005: 23-28). No contexto dos emergentes nacionalismos europeus, a indústria do azoto adquiriu, pelo menos em teoria, um duplo papel – alimentar e militar – na soberania portuguesa.
Durante a década de 1920, é notório o aumento do consumo anual de adubos azotados (sobretudo do sulfato de amónio importado), que em 1935, pela primeira vez, vai ultrapassar o de adubos fosfatados. O cenário estava a mudar: entre o final da década de 1920 e as vésperas da segunda grande guerra, o consumo de adubos azotados cresceu cerca de 500%. Estavam, por fim, estabelecidos compostos azoto-fosfatados adequados aos diferentes solos do Sul do país, utilizados crescentemente nas explorações mais capitalizadas e, a partir de 1937, bonificados pela Federação Nacional dos Produtores de Trigo (FNPT). Este ciclo é interrompido com o início da segunda guerra, em que fortes restrições à importação não puderam ser contrabalançadas pela produção nacional, ainda inexistente. A fertilização azotada baixou para os níveis do princípio da década de 1930, sendo novamente assegurada, em grande parte, pelo Nitrato do Chile (Carmo & Domingos 2021: 720).
De acordo com João Martins Pereira, os adubos azotados eram, no início dos anos 1940, uma “nascente indústria”. Pese embora o referido decreto de 1925, o forte incremento no consumo de azotados e a ampla convergência entre a Campanha do Trigo e os principais produtores de adubos, a década de 1930 não conheceu qualquer avanço. Em 1940 foram retomadas as diligências governamentais, por iniciativa do engenheiro José Ferreira Dias, recém-chegado ao governo, que vai licenciar, no ano seguinte, as duas futuras indústrias de sulfato de amónio: a SAPEC (Société Anonyme de Produits et Engrais Chimiques), de capitais belgas, que irá constituir o Amoníaco Português (AP) com a participação do Estado português, representado pela FNPT, em 49% do capital da empresa, e a CUF, inteiramente privada, que cria em 1948 a subsidiária União Fabril do Azoto (UFA). Em ambos os casos, a tecnologia principal foi adquirida no estrangeiro – no caso do AP, a diversos fornecedores, maioritariamente suíços, no caso da UFA, a um único fornecedor britânico, a Imperial Chemical Industries –, muito embora a implementação e direcção tenha ficado a cargo de engenheiros químicos formados em Portugal.
Na perspectiva do Estado, tratou-se de promover a produção agrícola e a industrialização, ao mesmo tempo que se sustentava a crescente produção hidroeléctrica nacional em grandes consumidores industriais de energia eléctrica. O Amoníaco Português seria instalado em Estarreja, beneficiando das redes eléctricas do Norte, enquanto a unidade do amoníaco da União Fabril do Azoto seria instalada em Alferrarede, em conjugação com a construção do aproveitamento hidroeléctrico de Belver (Tejo), e a síntese de ácido sulfúrico nas instalações da CUF no Barreiro. Estavam, assim, lançados os dois projectos de produção de amoníaco sintético em Portugal, os quais tardariam, no entanto, uma longa década até iniciarem – praticamente em simultâneo – a laboração, nos primeiros meses de 1952. Uma sequência de peripécias industriais, descrita na obra de Martins Pereira – que incluiu atrasos no fornecimento internacional de equipamento, falta de matérias-primas secundárias olvidadas no planeamento, inexperiência do corpo técnico, mau funcionamento das unidades de produção e, até, inexistência de um plano de distribuição do sulfato de amónio – protelou, ano após ano, o arranque da produção (Pereira 2005: 23-80).
A importação de adubos azotados fora retomada em 1947, recuperando-se no início da década de 1950 o nível de consumo pré-guerra. Durante esta década, a aplicação de azotados nos campos portugueses triplica, num crescimento inédito por então já suportado pela produção nacional. Em suma, os anos 1950 representaram o momento de viragem na importância relativa da fertilização orgânica e inorgânica (Carmo et al. 2017). Ao contrário de grande parte da Europa, a agricultura portuguesa passou ao lado da “revolução” da substituição dos pousios por culturas fixadoras de azoto e aproximou-se, gradualmente, da “revolução” da fertilização química. Importa referir, no entanto, que as tecnologias orgânica e química se desenvolveram em paralelo entre o final do século XIX e a década de 1950, competindo continuamente como solução de fornecimento de azoto aos campos. O acesso intermitente aos adubos azotados nos mercados internacionais e a demorada implementação industrial em Portugal acarretaram a diversificação e o melhoramento da capacidade fertilizante de base orgânica, em face das necessidades crescentes de uma agricultura em expansão. Novas vias surgiram, como a condução de lixos e de esgotos compostados para os campos, mas as explorações agrícolas estiveram sempre pressionadas – com diferenças do Norte para o Sul – por uma carência persistente de azoto que só seria realmente ultrapassada após a segunda guerra mundial.
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Agências de passagens e passaportes | Agências de passagens e passaportes | | |
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Description:A análise dos movimentos migratórios internacionais dos séculos XIX e XX exige que eles sejam pensados à luz dos agentes intermediários que os estimularam. A crescente procura de trabalhadores migrantes no século XIX, a modernização dos meios de transporte e a intensificação das conexões transnacionais com os indivíduos migrantes ajudaram a densificar a figura dos intermediários (Feys 2012; Keeling 2013; Gonçalves 2008). Através de uma atividade desenvolvida em rede entre os locais de saída, de trânsito e de chegada, os intermediários transcenderam as barreiras nacionais.De agentes bancários, empregados comerciais, donos de pensões, recrutadores e companhias de transporte (marítimas, áreas ou terrestres) a armadores ou a industriais (para citar somente alguns), eles caracterizavam-se pela grande diversidade dos seus perfis socioeconómicos e profissionais, pelas funções que desempenhavam no negócio transnacional da emigração e pelas suas capacidades para influenciar os comportamentos migratórios e as políticas migratórias. Os intermediários também se definiam pela capacidade para reter ou/e fazer circular conhecimento sobre as oportunidades e as condições migratórias junto dos migrantes.
Tal como noutros países que possuem uma longa tradição emigratória transatlântica e europeia, as saídas a partir de Portugal foram sustentadas por agentes intermediários privados, dentro de um negócio cada vez mais regulamentado (Santos 2023). De entre os intermediários, desde o século XIX até 1947 destacaram-se as agências de passagens e passaportes. Segundo a definição oficial de 1919, estas agências tinham a função de vender bilhetes de passagem para o estrangeiro em nome das companhias de navegação inglesas, francesas, holandesas ou alemãs, assim como de disponibilizar passagens gratuitas a famílias e indivíduos no âmbito da emigração subsidiada para o Brasil. A atividade das agências de passagens e passaportes também contemplava pedidos de documentação junto das autoridades locais nacionais (governadores civis), no estrangeiro (consulados) e nas colónias. A natureza transnacional da atividade das agências de passagens e passaportes facilitava a conexão direta ou por meio de outros intermediários (como companhias de navegação, ou homens de negócios). A partir do trabalho quotidiano, estes agentes faziam parte da rede transnacional que envolvia entidades públicas nacionais e estrangeiras (polícias, consulados, funcionários públicos) e que estava intrinsecamente conectada com a esfera privada.
As agências de passagens e passaportes atuaram em três regimes políticos diferentes (Monarquia Constitucional, Primeira República e Estado Novo) e no quadro de políticas emigratórias cada vez mais seletivas na organização das saídas legais. Por isso, a intervenção estatal centrou-se também na regulação de toda a atividade ligada à emigração, inclusive das agências. Depois de 1947, data em que o governo ditatorial português lhes retirou a função de organizar a emigração, as agências foram obrigadas a direcionar a sua estratégia empresarial para o negócio do turismo, através da abertura de agências de viagens. Este referencial legislativo não significou, contudo, que deixassem de se envolver na emigração irregular. Pelo contrário, o caráter transnacional da sua atividade e dos movimentos migratórios, as contradições das regulamentações migratórias e os limites na sua aplicação proporcionaram uma certa continuidade.
Repartidas pelo território nacional, as agências de passagens e passaportes multiplicaram-se com as oportunidades de lucro que a emigração oferecia. Sediaram-se primeiro nas cidades portuárias (Porto, Aveiro, Braga, Lisboa) e seus arredores, e em seguida no interior norte e centro do país, de maneira a acompanhar a extensão do fenómeno migratório. De acordo com as estatísticas oficiais disponíveis, entre 1919 e 1948, o número de agências de passagens e passaportes legalmente registadas passou em 1924 de 50 para 279, em 1937 para 85 e, finalmente, em 1948 para 37 agências. As flutuações dos números explicam-se principalmente pelo encerramento progressivo das portas à entrada de migrantes pelos países de acolhimento (como o Brasil e os EUA), um encerramento que se acelerou durante a Grande Depressão e que provocou, consequentemente, desinteresse das agências no negócio da emigração pela falta de lucro.
Não obstante a diversidade dos perfis socioeconómicos e profissionais dos agentes que as dirigiam, a acumulação de conhecimento sobre o modus operandi, sobre as regulamentações nacionais e sobre a indústria da emigração em geral fez com que a atividade desenvolvida pelos agentes de passagens e passaportes sediados em Portugal tivesse um caráter transnacional. Os agentes de passagens e passaportes podiam ser antigos agentes policiais de emigração, antigos militares, guarda-livros ou funcionários públicos, os quais viam na emigração uma oportunidade para lucrar e assim melhorarem as suas condições de vida. A ligação ao setor do comércio local e internacional (Brasil, EUA, Inglaterra, França, Espanha, Argentina) e/ou ao setor financeiro e político talvez seja uma das características mais comuns das agências de passagens e passaportes, em particular as localizadas nas principais cidades portuárias (Lisboa e Porto). As agências podiam ser casas comerciais que se caracterizavam pela diversidade dos negócios em que estavam envolvidas. Algumas delas chegaram a especializar-se no transporte de emigrantes e de turistas, tornando-se negócios familiares duradouros, como a Agência Abreu.
A prática de organizar a emigração multiplicou as ligações destas agências em Portugal e no estrangeiro, na esfera pública e privada, e reforçou a sua representatividade na indústria da emigração e a sua influência neste ramo, nomeadamente junto das empresas marítimas de transporte. Ao mesmo tempo, levou a que elas acumulassem um capital informacional transnacional que as tornou, em Portugal, experts em operacionalizar as saídas, dentro ou fora das regulamentações nacionais sobre a mobilidade, e independentemente do ciclo migratório.Com acesso privilegiado ao conhecimento sobre as modalidades da emigração, as agências definiam-se ainda pelo seu envolvimento em práticas irregulares. Foram capazes de construir e aplicar estratégias para contornar a regulamentação legal e as dificuldades impostas à mobilidade internacional. A partir de um trabalho em rede, recrutavam trabalhadores por conta de empresas privadas estrangeiras e forneciam documentação falsa, capaz de ludibriar a vigilância administrativa e policial local.
A sua intervenção na emigração legal e irregular não significou, contudo, que as agências de passagens e passaportes fossem os únicos atores detentores de um savoir-faire para agenciar as saídas. Os próprios emigrantes construíram, mediante redes sociais tecidas entre cá e lá, um conhecimento próprio, complementar ou oposto ao das agências, sobre as oportunidades e modalidades de saída, dando também aos indivíduos certos meios para negociar as condições de emigração. [show more]
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Ágoas, Frederico | Ágoas, Frederico | | |
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Albuquerque, Sara | Albuquerque, Sara | | |
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Almeida, João Miguel | Almeida, João Miguel | | |
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Almeida, Sónia Vespeira de | Almeida, Sónia Vespeira de | | |
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Andrade, Ricardo | Andrade, Ricardo | | |
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Baleação | Baleação | | |
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Description:A história marítima de Portugal não se resume à denominada epopeia dos Descobrimentos nos séculos XV e XVI, ou às travessias e contactos posteriores que o Império Colonial motivou até meados do século XX. Ela contém outras facetas, menos propensas a narrativas de glória e conquista, e extravasa os limites do Império Português, integrando não só outros impérios e geografias, como jogos de força político-económicos e arranjos socioculturais transnacionais. A baleação é um caso elucidativo dessas abrangências e interdependências, e um capítulo menos conhecido, mas muito relevante, da história marítima portuguesa.
Os arquipélagos atlânticos dos Açores e de Cabo Verde, cuja posição geoestratégica privilegiada sempre contrariou a sua condição periférica, foram desde tempos recuados portos de escala obrigatórios para navios das mais variadas origens, que aí ancoravam para abastecimento, aguada e recrutamento de tripulação. Entre as várias embarcações que passaram pelas ilhas, destacam-se os navios baleeiros norte-americanos. Embora presentes nas águas portuguesas desde a segunda metade do século XVIII, foi na centúria seguinte que a indústria baleeira americana se afirmou como uma das atividades comerciais mais proeminentes do mundo. Antes da difusão do gás e da eletricidade como principais fontes de energia, o óleo de cachalote era utilizado como combustível para a iluminação pública.
As barcas baleeiras saíam dos portos da Nova Inglaterra e passavam anos no mar, atravessando vários oceanos e fundeando em diferentes portos durante a longa viagem. E se, por um lado, alguns dos tripulantes norte-americanos desertavam nestas paragens, por outro, muitos ilhéus embarcavam no seu lugar. Dos Açores (conhecidos como Western Islands) e de Cabo Verde milhares fugiram, clandestinos, da fome, da penúria, ou do alistamento militar. Outros foram contratados como mão-de-obra barata. A frota americana aproveitava essa força de trabalho e os ilhéus procuravam tirar partido da oportunidade, sem muitas vezes imaginarem a vida árdua e penosa que os esperava no alto-mar. Inexperientes, ocupavam a base da hierarquia naval: eram green hands. Anos mais tarde, alguns deles chegaram a imediatos e capitães. À época, açorianos e cabo-verdianos eram cidadãos portugueses, embora muito diferentes entre si. Para os americanos, porém, estes dois coletivos constituíam um só: the Portuguese. Na década de 1860, os apelidados Gees (Melville 1856) – assim tratados derrogatoriamente – representavam um quarto das tripulações baleeiras (Busch 1985). Mas os castelos de proa e os porões dos navios caracterizavam-se por uma enorme diversidade cultural: diferentes línguas, etnias e culturas interagiam tanto a bordo quanto em terra, com toda a complexidade sociológica que essa coexistência implicava.
Em terra, a atividade baleeira implementava-se também, sobretudo nos Açores, e ao seu desenvolvimento não foi alheia uma prestigiada família americana que permaneceu no arquipélago durante várias gerações: os Dabney. Entre 1806 e 1892, os três cônsules americanos nos Açores partilhavam este apelido. E foi o segundo deles, Charles W. Dabney, que em 1854 instalou a primeira unidade industrial baleeira na ilha do Faial. Foi também por iniciativa do terceiro cônsul, Samuel Dabney, e de outro americano residente no Faial, em parceria com um ex-capitão baleeiro açoriano, que se constituiu em 1876 a primeira armação baleeira nos Açores, na ilha do Pico.
Além dos múltiplos e profundos impactos nas ilhas, a baleação norte-americana abriu caminho para a emigração rumo aos Estados Unidos da América, inaugurando um dos fluxos migratórios portugueses mais expressivos. Foi a baleação que esteve na origem desta diáspora. E, se é verdade que na segunda metade do século XIX a indústria baleeira norte-americana entra em declínio, é também a partir dessa altura que alguns açorianos e cabo-verdianos logram ser capitães e proprietários de navios baleeiros. Já no dealbar do século XX, alguns oficiais cabo-verdianos adquirem antigas baleeiras obsoletas e convertem-nas em transporte de carga e de passageiros, instituindo o Packet Trade, outro importante canal de ligação atlântico. Os Brava Packets fizeram inúmeras viagens entre a Nova Inglaterra e as ilhas de Cabo Verde, dando novo impulso às correntes migratórias.
Apesar do definhamento da baleação americana no final do século XIX e, com ela, das vagas migratórias a bordo dos navios baleeiros, a emigração insular prosseguiu, não obstante as medidas restritivas impostas pelo governo dos Estados Unidos à entrada de estrangeiros. O Immigration Act de 1924 estabeleceu limites apertados quanto ao número de imigrantes que poderiam cruzar as fronteiras do país e, embora tenha vigorado durante as décadas seguintes, em 1958 – com a erupção do vulcão dos Capelinhos, na ilha do Faial –, abriu-se um regime de exceção, o Azorean Refugee Act, verificando-se uma retoma expressiva da emigração açoriana.
A baleação abriu caminho para a emigração dos ilhéus que, posteriormente, se envolveriam também noutras atividades em terra, com particular destaque para a indústria (na Nova Inglaterra) e para a pesca e agricultura (na Califórnia), sendo de salientar que foram baleeiros açorianos que fomentaram a baleação costeira nesta região da costa Oeste, com a constituição de companhias baleeiras, a partir da década de 1850 (Mayone Dias 1979, Bertão 2006).
A história da baleação portuguesa é indissociável da história da baleação norte-americana. Se a participação dos Açores na baleação pelágica (em mar alto) americana desponta, nos séculos XVIII e XIX, numa conjuntura internacional que determina o seu florescimento, no século XX a baleação costeira açoriana ganha autonomia e especificidade próprias, estabelecendo-se como uma atividade económica relevante na região. O último quartel do século XIX assistiu a uma mudança na participação portuguesa na indústria baleeira global. Nos Açores, a instalação de vigias nos pontos altos da costa permitiu continuar a atividade baleeira a partir das bases costeiras. Os botes norte-americanos foram reconstruídos pelos carpinteiros navais locais, tornando-os mais leves e esguios, com espaço para mais um tripulante, adaptados à entrada e saída dos exíguos portos insulares criados sobre o recorte vulcânico das ilhas. A baleação estendeu-se a todas as ilhas, e prolongou-se por mais de um século com as mesmas técnicas de caça utilizadas na baleação norte-americana. Em 1954, Robert Clarke designou-a de “indústria relíquia” (Clarke 1954). E, se em 1851 a presença portuguesa na baleação internacional fora imortalizada pelo escritor norte-americano Herman Melville, no clássico da literatura Moby Dick, um século depois, a caça à baleia açoriana foi objeto de estudo e inspiração para filmes e livros de Orson Welles, Chris Marker e Mario Ruspoli, ou Antonio Tabucchi, entre outros. A visão romântica e épica da baleação foi veiculada tanto por observadores externos, como pelas gentes locais.
Na realidade, a baleação insular continuava plenamente integrada na economia internacional. Os óleos de cetáceos eram exportados para os países europeus mais industrializados (Inglaterra, Alemanha, Itália e França), onde encontravam novas aplicações nas indústrias de armamento, em lubrificantes industriais, em couros e detergentes, entre outras. No final da Segunda Guerra Mundial, com a paralisação das frotas baleeiras que operavam no Antártico, a baleação nos Açores chegou a ser responsável por 40% do total das capturas mundiais de cachalote (Clarke, 1954). A economia de guerra acelerou a industrialização da atividade em terra, mas, no mar, a baleação continuou a ser uma atividade artesanal, com um confronto direto entre o homem e a baleia. Neste período, a indústria baleeira também se estendeu ao arquipélago da Madeira e foi retomada no continente português, na região de Setúbal.
A partir da década de 1960, a indústria baleeira nos Açores entrou gradualmente em crise. As mudanças eram induzidas por transformações globais externas. Por um lado, os óleos de cachalote eram substituídos pela utilização de produtos sintéticos, tendo os preços sofrido uma queda progressiva. Por outro, assistia-se a uma mudança cultural sobre a proteção da vida marinha, e a baleia tornou-se num símbolo nos discursos de conservacionismo ecológico de novas organizações como a Greenpeace. A pressão regulatória internacional reduziu o comércio de produtos baleeiros, conduzindo à Moratória da Comissão Baleeira Internacional (1982), que entrou em vigor em 1986. Antes dessa data, a indústria açoriana já entrara em decadência – não só pela falta de mercados para os seus produtos, mas também pela dificuldade de recrutamento e devido à concorrência da pesca do atum, mais segura e rentável.
A baleação nos Açores foi paulatinamente convertida em património, ganhando inclusive, em 1998, forma de lei (Decreto Legislativo Regional n.°13/98/A). No entanto, a narrativa patrimonial não contempla as muitas complexidades que a história da baleação encerra. Ela convoca o passado baleeiro, mas quase sempre de forma seletiva e parcial, fragmentando uma história comum aos dois arquipélagos e veiculando representações sociais de tónica regional, desligadas de contextos mais amplos, e que negligenciam histórias conectadas e globais.
Atualmente, a baleação surge como um poderoso discurso de coesão regional. Num território descontínuo e com fortes assimetrias locais, distingue-se como uma experiência histórica comum a todas as ilhas açorianas, que enaltece a coragem e a capacidade de superar as difíceis condições de vida. Recentemente, um projeto de história oral (Arquivo de Memórias da Baleação) recolheu mais de cem entrevistas a todos os baleeiros vivos, com o propósito de entender o impacto social, económico e cultural da baleação nas comunidades insulares; um outro projeto (ADBA – Arquivo Documental da Baleação Açoriana), focado no património arquivístico, dedica-se à pesquisa e inventariação de acervos documentais relativos à baleação açoriana. Ambos desafiam a política patrimonial a ser mais inclusiva.
Foram as comunidades locais que começaram por recuperar as embarcações e casas dos botes, processo continuado mais tarde pela musealização das antigas fábricas e pela dinamização das regatas em botes baleeiros. Desde 1993, e cada vez mais, a observação de cetáceos – o whale watching – atrai, todos os anos, milhares de turistas à região. A transição da baleação para o ecoturismo está hoje consumada. Todavia, as narrativas históricas plurais sobre a baleação – tão diversas quanto as condições socioeconómicas de cada ilha e os homens que a praticaram – correm o risco de se diluir nos discursos e políticas que acentuam continuidades e glórias mais do que ruturas e insucessos.
Na longa duração, fosse pelas circunstâncias geográficas e socioeconómicas dos arquipélagos da Macaronésia, pelas conjunturas internacionais, ou ainda pelos conhecimentos técnicos transmitidos ao longo de várias gerações, constata-se que a baleação teve uma extraordinária longevidade em território português. O seu fim irreversível deu lugar, no entanto, a uma mudança de paradigma e a um novo ciclo baleeiro, que só existe devido a um passado transnacional que relaciona Portugal e os seus arquipélagos com os EUA e a Europa, e que demonstra bem as inter-relações a diferentes escalas num mundo global. [show more]
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Béla Guttmann | Béla Guttmann | | |
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Description:O futebol tornou-se ao longo do século XX num dos principais terrenos de produção e banalização de identificações nacionais. Da discussão sobre os estilos de jogo aos debates sobre a utilização de jogadores naturalizados, passando pela organização de grandes eventos desportivos, são múltiplos os canais através das quais os discursos e as práticas de diferentes agentes e instituições do mundo do futebol comunicam com projetos ideológicos e políticos de caracterização de um povo enquanto totalidade mítica. A esta demanda identitária, que procura transformar o particular e o contingente – a forma como onze homens se organizam num dado momento dentro de um campo relvado – no símbolo da essência intemporal e imutável de um coletivo, uma história migrante do futebol pode responder com o recenseamento da diversidade das formas de o jogar e com o reconhecimento das interconexões entre elas. Se é impossível compreender a introdução do futebol em Portugal sem olhar para as trajetórias dos jovens das elites nacionais que estudaram em Inglaterra ou para o contributo dos representantes dos interesses comerciais britânicos aqui, também é difícil pensar o desenvolvimento do jogo sem considerar a sua inserção noutras redes internacionais. O estudo da profissionalização do futebol português e da sua transformação em espetáculo popular não pode ignorar o papel desempenhado por um conjunto de técnicos e atletas provenientes de contextos muito diversos. Entre eles, destaca-se o caso de Béla Guttmann (1899-1981).
A partir de meados da década de 1920, o aumento da competitividade desportiva levou os clubes portugueses de futebol a procurarem treinadores estrangeiros, originários de países onde o profissionalismo já se encontrava institucionalizado. Entre eles, destacaram-se os técnicos húngaros. Muitos chegaram a Portugal fugindo de perseguições religiosas e políticas, ou da guerra; alguns procuravam apenas melhores condições de trabalho e reconhecimento profissional. Entre 1924, quando Akös Tezler iniciou funções no Futebol Clube do Porto, e 1962, quando Béla Guttmann conduziu o Benfica à conquista da sua segunda Taça dos Campeões Europeus consecutiva, dezenas de treinadores provenientes daquela região da Europa dirigiram equipas portuguesas. Józseph Szabó, Mihaly Syska, Magyar Ferenc, Lippo Hertzka, János Biri, Julius Lelovtic ou Rudolf Jenny, entre outros, transformaram decisivamente a forma de jogar futebol em Portugal no período de entreguerras. Consigo não traziam apenas o que, por facilidade de expressão, se designou como “estilo húngaro”. Muitos deles haviam aprendido sobre sistemas táticos ou métodos de treino com os “mestres escoceses” que, por não encontrarem nas ilhas britânicas as condições necessárias para desenvolver o seu métier, no final da I Guerra Mundial trabalharam em Viena, Budapeste ou Praga. Antes de chegarem a Portugal, quase todos os membros desse grupo de húngaros tinham passado, como jogadores e treinadores, por diversos campeonatos europeus. Foi o conhecimento acumulado por essa experiência que tentaram adaptar às condições de trabalho que encontraram nos clubes portugueses.
Béla Guttmann nasceu a 27 de Janeiro de 1899 em Budapeste, uma das capitais do Império Austro-Húngaro, e morreu no dia 28 de Agosto de 1981 em Viena, capital da Áustria. Foi um dos grandes jogadores húngaros e um dos mais importantes treinadores de futebol do século XX. Filho de um casal de professores de dança (Abraham e Eszter Guttmann), Béla encontrou no futebol terreno para a construção de uma trajetória de mobilidade social ascendente e para a integração na sociedade húngara pós-emancipação, em processo de modernização cultural.
Ao longo da sua carreira como atleta, que se estendeu de 1917 a 1934, jogou em clubes como o Törekvés e o MTK de Budapeste (Hungria) ou o Hakoah de Viena (Áustria), além de, durante a primeira grande vaga de crescimento do futebol nos Estados Unidos da América, ainda na década de 1920, ter também representado o New York Giants e o New York Hakoah. Ao serviço de outra equipa americana, o Hakoah All Stars, encetou a sua primeira grande tournée pela América do Sul, desempenhando uma variedade de funções: jogador, mas também treinador e organizador da digressão. As filiações dos vários clubes por onde passou eram muito diversas: se o MTK, o Círculo Húngaro dos Educadores da Cultura do Corpo, fundado em 1888, era uma instituição da burguesia liberal de Budapeste, que aspirava a uma “hungaridade universal”, o Hakoah de Viena e o Hakoah de Nova Iorque, pelo contrário, representavam o projeto sionista de um “judaísmo muscular”. Assim, as escolhas de carreira de Béla Guttmann enquanto jogador não podem ser lidas como simples expressão de uma orientação política, mas devem também, ou sobretudo, ser interpretadas como parte de um projeto de afirmação profissional e de busca de segurança pessoal. A mudança de Budapeste para Viena acontece quando o profissionalismo já havia sido instituído na Áustria, ao contrário do que sucedia na Hungria. A emigração para a América do Norte resulta das enormes diferenças salariais observadas entre os clubes da Europa e dos Estados Unidos, onde o futebol era organizado segundo as regras das indústrias culturais. Nos EUA, Guttmann conheceu a fortuna, mas também a ruína financeira: terá perdido todas as suas poupanças e investimentos após o crash de 1929, o que contribuiu, a par da falência do primeiro campeonato americano de futebol, para o seu regresso à Europa no início dos anos 1930.
Enquanto jogador, destacou-se como um médio-centro completo, com excelente condição física, com capacidade para defender e atacar, recuperar, passar e transportar a bola, ajudando a transformar os padrões de desempenho daquela posição específica, no quadro da divisão do trabalho de equipas organizadas segundo o modelo da pirâmide escocesa, 2-3-5. Foi seis vezes internacional húngaro, tendo ainda muito jovem abdicado de jogar pela seleção do seu país, como consequência de conflitos com dirigentes federativos, suscitados pela má organização da participação húngara nos Jogos Olímpicos de Paris de 1924, e em particular pelo descaso demonstrado em relação às necessidades dos atletas.
Iniciou o seu percurso no Hakoah de Viena, em 1934-35, ainda com o estatuto de jogador-treinador. Logo depois, assumiu o seu primeiro cargo a tempo inteiro como treinador no Enschede (hoje Twente), dos Países Baixos, para mais tarde regressar ao Hakoah de Viena. Quando começou a II Guerra Mundial, era treinador do Újpest, clube ao serviço do qual conquistou a mais importante competição europeia da época, a Taça Mitropa.
Apesar de quase nunca o ter referido em entrevistas e intervenções públicas, entre 1939 e 1945 esteve na clandestinidade. Foi nesse período que, escondido em Budapeste, conheceu a sua esposa Mariann, que o acompanhou pelo resto da vida. Em 1944 foi internado num campo de trabalho dos fascistas húngaros do Partido da Cruz de Flechas, de onde encetou uma fuga com o seu colega e amigo Ernö Erbstein, outro grande treinador da escola húngara que se destacou ao serviço do Torino, de Itália. Depois da Guerra, num tempo de escassez de bens, inflação e mercado negro, Guttmann incluiu no seu contrato com o Vasas de Budapeste, um clube liderado à época por empresários do sector alimentar, uma cláusula que incluía o pagamento de uma percentagem do salário em géneros: batatas, farinha, banha, açúcar, entre outros bens essenciais.
Entre 1945 e 1974, mudou de país 15 vezes, e 21 vezes de clube. Números impressionantes, talvez até inéditos, mas não totalmente invulgares entre os grandes treinadores da época. Dirigiu grandes e pequenas equipas na Holanda, na Jugoslávia, na Hungria, na Roménia, em Itália, na Argentina, em Chipre, no Brasil, em Portugal, no Uruguai, na Suíça e na Grécia. É considerado um dos mais brilhantes elementos de uma geração de treinadores húngaros – entre os quais se encontram também Márton Bukovi ou Gusztáv Sebes – cujo trabalho conjunto ajudou a criar uma das grandes equipas da história do futebol, a Aranycsapat, a “equipa de ouro”, nome pelo qual ficou conhecida a seleção húngara na década de 1950. Este grupo de treinadores impulsionou também mudanças táticas e técnicas no futebol mundial, ao introduzir dinâmicas ainda inexploradas no modelo WM, até então o sistema de referência no plano internacional, que tinha sido implementado por Herbert Chapman no Arsenal de Londres na segunda metade da década de 1920. No final dos anos 1940, no Kispest (mais tarde Honvéd), Guttmann treinou muitos dos jogadores que fizeram a fama do futebol daquele país, como Ferenc Puskás ou József Bozsik. Após o termo deste contrato, não regressou à Hungria. Sagrou-se campeão em Itália, com o AC Milan, onde também trabalhou com jogadores de nível mundial, tendo aí conhecido em detalhe os sistemas defensivos das equipas italianas, que ganhariam reconhecimento próprio na ideia de catenaccio. O ano de 1956 foi crucial no seu percurso: adquiriu nacionalidade austríaca, com o apoio dos dirigentes federativos daquele país, e, depois da revolta húngara, dirigiu no exílio a equipa do Honvéd, numa digressão pela América do Sul que lhe abriria a possibilidade de treinar o São Paulo. Terá sido um dos responsáveis pela implementação do sistema 4-2-4 naquele clube brasileiro, esquema tático que acabou por ser adotado pela seleção campeã do mundo em 1958. O ponto alto da sua carreira foi vivido ao serviço de um clube português, o Sport Lisboa e Benfica, que treinou pela primeira vez entre 1959 e 1962.Não obstante o lugar central de Guttmann na história do futebol mundial, resultado desta trajetória singular, na imaginação portuguesa o seu nome evoca habitualmente duas histórias: a conquista de duas Taças dos Clubes Campeões Europeus consecutivas pelo Benfica, nas épocas de 1960-61 e 1961-62, em finais disputadas contra o Barcelona e o Real Madrid, poderosas equipas espanholas cujo estilo de jogo também foi moldado por jogadores e técnicos húngaros; e o mito da maldição que teria lançado sobre a equipa da Luz depois de ser despedido – em conflito, como tantas vezes ao longo da sua carreira, com dirigentes cuja gestão autoritária, patrimonialista e clientelar chocava com o seu projeto de profissionalização do desporto –, profetizando que nem em 100 anos o clube voltaria a vencer uma competição europeia. Para quebrar a maldição, e depois de mais uma final perdida em 2013, em fevereiro de 2014 o Sport Lisboa e Benfica inaugurou uma estátua de dois metros do seu antigo treinador. Três meses mais tarde, voltou a perder uma final europeia, desta feita frente ao Chelsea.
Deixando estes episódios de lado, a longa história deste treinador de futebol permite-nos considerar o desenvolvimento do futebol e a profissionalização do jogo a nível planetário. Ao mesmo tempo, o estudo do seu percurso em Portugal, inserido no quadro de uma prosopografia de uma geração de treinadores húngaros, vem questionar a relação entre estilos de jogo e representações da identidade nacional: talvez se possa argumentar que o futebol português foi inventado por treinadores húngaros. Ou talvez seja possível ir ainda mais longe e dizer que, quando chegou a Portugal, Guttmann, tal como outros seus compatriotas antes dele, nem seria já um treinador húngaro. Nas suas próprias palavras: “Durante a minha longa carreira estive em muitos países e trabalhei em alguns deles. Sempre que via uma boa ideia de jogo roubava-a e guardava-a para mim. Ao fim de algum tempo, fazia um cocktail com esses ingredientes surripiados“ (Claussen 2015: 131). O futebol português, tal como o futebol húngaro, austríaco ou brasileiro, ou qualquer outro, emerge como o resultado dessa mistura de influências, intrinsecamente transnacional.
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Bernardo Peres da Silva | Bernardo Peres da Silva | | |
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Description:Bernardo Peres da Silva nasceu no dia 15 de outubro de 1775, em Neurá-o-Grande, na ilha de Goa (ou Tiswadi), no seio de uma família brâmane católica. A morte dos seus pais deixou-o órfão cedo, e a responsabilidade pela sua educação coube ao seu tio-avô, o Pe. Caetano Peres da Silva. Estudou filosofia e latim no antigo seminário jesuíta de Rachol, entretanto confiado à ordem italiana dos Vicentinos, antes de se formar como médico no Hospital Real Militar, em Panelim, onde terá sido discípulo do físico-mor António José de Miranda e Almeida. No final da década de 1790, casou com Inácia da Conceição de Menezes, com quem teve dez filhos. Também nessa altura, iniciou o seu percurso político no senado da câmara de Goa.
A Goa em que Peres cresceu era uma colónia em mudança. O século XVIII foi marcado pelo declínio de Goa como entreposto do comércio marítimo internacional, pela perda dos territórios da Província do Norte, entre os atuais estados do Maharastra e do Gujarate, pela autonomização administrativa de Moçambique face ao Estado da Índia e por uma ligação cada vez mais ténue aos distantes enclaves de Macau e Timor. Estas perdas territoriais foram compensadas pela expansão das fronteiras da colónia para as regiões que ficariam conhecidas como Novas Conquistas. Entre as décadas de 1760 e 1780, o território de Goa quase triplicou, com a anexação de aproximadamente 2800 km² de terreno, incluindo cerca de 280 aldeias e cem mil pessoas, na sua esmagadora maioria hindus. Apesar disso, no final do século a Índia ocupava um lugar cada vez mais marginal no contexto de um império português crescentemente centrado no Atlântico.
No que diz respeito ao percurso de Bernardo Peres da Silva, no entanto, a mudança mais significativa foi provavelmente o protagonismo crescente das elites católicas goesas na vida política e social da colónia. Desde o século XVI, a conversão das populações locais levara à emergência de uma elite nativa, cristianizada e ocidentalizada, capaz de mobilizar o conhecimento da língua portuguesa e da cultura política europeia para contestar o seu lugar subalterno na ordem colonial. Nas décadas de 1760 e 1770, a ascensão desta elite seria consagrada pela promulgação de medidas que equiparavam formalmente os goeses católicos aos portugueses nascidos no Reino. Na prática, porém, continuavam a existir diversos mecanismos de discriminação, e os goeses estavam impedidos de aceder aos principais cargos da administração colonial.
Quando Peres tinha 12 anos, a tensão entre estas expectativas de igualdade e os seus limites práticos seria posta em evidência pela alegada “Conjuração dos Pintos”, que abalou a colónia em 1787. Os líderes desta suposta conspiração para “expulsar os brancos” e estabelecer uma “nova república” eram militares e clérigos brâmanes, uma parte dos quais tinha estudado em Roma e Lisboa. As suas aspirações assentavam em noções enraizadas de superioridade de casta e de preeminência local. Mas eram também inspiradas pelo exemplo recente da Revolução Americana, sobre a qual alguns dos implicados confessavam ter lido, e pela circulação transnacional de uma linguagem política que enfatizava temas como “liberdade” e “felicidade pública”.
A alegada conspiração foi brutalmente reprimida pelas autoridades portuguesas. Mais tarde, depois de mais de uma década de ocupação britânica da colónia (entre 1799 e 1813, no contexto das Guerras Napoleónicas), as tensões reacender-se-iam com a chegada das notícias da revolução liberal de 1820. Os primeiros rumores sobre o pronunciamento militar que tivera lugar no Porto no dia 24 de agosto daquele ano, exigindo o regresso do rei D. João VI do Brasil e a promulgação de uma constituição, chegaram a Goa em março do ano seguinte, por via da imprensa britânica e de cartas enviadas de Bombaim e de Bengala. Estes rumores foram recebidos com entusiasmo pelo pequeno núcleo liberal existente na colónia, composto por funcionários e militares portugueses, por luso-descendentes e por alguns goeses católicos, que desde o final da década de 1810 circulavam entre si exemplares do jornal O Portuguez, editado em Londres por Rocha Loureiro, assim como cópias da Constituição de Cádis de 1812.
Os acontecimentos que se seguiram reproduziam, em grande medida, o guião dos movimentos revolucionários do sul da Europa, recentemente analisados por Maurizio Isabella (2023). Na madrugada do dia 16 de setembro de 1821, o palácio do governo, em Pangim, foi cercado por centenas de soldados de vários regimentos. O vice-rei, D. Diogo de Sousa, conde de Rio Pardo, foi deposto e, no seu lugar, foi eleita uma junta provisional de governo. Ao raiar da manhã, foram lidas proclamações aos soldados e ao povo, em que os revoltosos anunciavam o fim da “tirania” e do “despotismo”, ao som de vivas ao rei, à nação e à constituição. Nos dias seguintes, a junta ordenou ainda que se adotasse provisoriamente a Constituição de Cádis, até que estivesse finalizada a elaboração de um texto constitucional português.
Bernardo Peres da Silva, então já com mais de 40 anos, desempenhou um papel importante nestes acontecimentos. Foi em sua casa que tiveram lugar algumas das reuniões que antecederam o pronunciamento, e foi por via dos seus contactos com a comunidade goesa de Bombaim que os conspiradores se mantiveram a par das notícias do Reino. Mais foi com a eleição dos representantes da colónia às cortes constituintes, que Peres se afirmou como a principal figura do primeiro liberalismo em Goa. A eleição decorreu de forma indireta, e só as províncias – maioritariamente católicas – das Velhas Conquistas tomaram parte. Em janeiro de 1822, os eleitores escolheram Peres como um dos três deputados do Estado da Índia, na companhia de outro brâmane católico, Constâncio Roque da Costa, e do médico português António José de Lima Leitão, veterano da legião portuguesa que servira nos exércitos napoleónicos.
Os três deputados tiveram uma viagem atribulada até ao Reino, através de um império em ebulição. Temporariamente detidos no Brasil, no rescaldo da independência da colónia sul-americana, chegaram a Lisboa em maio de 1823, onde testemunharam o colapso da primeira experiência constitucional portuguesa, na sequência da revolta da Vilafrancada. Peres permaneceu em Lisboa durante o ano seguinte, endereçando várias memórias sobre a situação política e económica de Goa ao rei D. João VI e aos seus ministros. Segundo os informadores da coroa, terá também consagrado o seu tempo à leitura de livros “subversivos” sobre os “princípios desorganizadores” do liberalismo constitucional e, pelas referências citadas nos seus escritos, das obras de economistas políticos franceses, como Jean-Baptiste Say e Antoine Destutt de Tracy. Regressou a Goa em 1825, nomeado intendente de agricultura da colónia, sendo acompanhado por instruções secretas para que fosse mantido sob vigilância apertada.
Impedido de assumir o cargo para que fora nomeado, Peres voltou a ser eleito deputado em 1827, na sequência da promulgação da Carta Constitucional de 1826. Mas, uma vez mais, quando desembarcou em Lisboa o curto interlúdio constitucional já tinha sido interrompido pela restauração do regime absolutista. Forçado a deixar Portugal, rumou primeiro a Inglaterra e depois ao Brasil, juntando-se assim à “internacional liberal” de exilados políticos espalhados pela Europa e pelas Américas, no rescaldo das revoluções e contrarrevoluções da década de 1820.
Foi durante o exílio brasileiro que escreveu a sua principal obra doutrinária, o Dialogo entre um Doutor em Philosophia e um Portuguez da India na cidade de Lisboa sobre a constituição politica do Reino de Portugal. Publicado em 1832, no Rio de Janeiro, este curto panfleto apresentava-se como uma defesa da Carta Constitucional. Mais do que nos debates teóricos sobre os méritos dos diferentes modelos constitucionais, no entanto, o Dialogo centrava-se numa narrativa da narrativa da história de Goa que contrastava o despotismo e a violência que tinham pautado os 300 anos de domínio colonial, desde que os portugueses “sulcando primeiro que outros mares dantes não navegados abriram caminho para tantas e tão horríveis devastações”, com a promessa de redenção representada pela Carta de 1826.
Esta narrativa do passado e do futuro de Goa inseria-se num contexto global. Neste sentido, Peres citava pensadores como Montesquieu, Jeremy Bentham e Benjamin Franklin, e incluía várias referências aos sistemas políticos do Reino Unido e, sobretudo, dos Estados Unidos da América. Era nestes exemplos que se inspirava para imaginar a regeneração de Goa, no seio de um império constitucional onde a opinião pública, a separação de poderes, a representação política e o progressivo desaparecimento das barreiras entre raças e castas levariam a que goeses e portugueses beneficiassem, como irmãos, dos “frutos da árvore da constituição”.
Peres regressou a Portugal em 1834, na sequência da vitória liberal na Guerra Civil de 1832-34, e pouco tempo depois foi nomeado por D. Pedro IV para o cargo de prefeito do Estado da Índia, que no novo (e efémero) sistema administrativo proposto por Mouzinho da Silveira deveria substituir o de governador. Pela primeira e única vez, um nativo assumia um lugar cimeiro do governo colonial. O prefeito chegou a Goa no dia 10 de janeiro de 1835 e assumiu o governo quatro dias depois, dando início a uma série de reformas administrativas. Duas semanas mais tarde, no entanto, foi deposto por um golpe militar encabeçado por oficiais portugueses e luso-descendentes. Num clima marcado pelo agudizar das tensões políticas e raciais, os revoltosos acusavam Peres de ser um “implacável inimigo dos brancos” e de pretender a independência de Goa, seguindo o exemplo do Brasil e da conjuração de 1787.
Preso e obrigado a deixar Goa, Peres refugiou-se em Bombaim, onde contou com o apoio da comunidade goesa da cidade e, principalmente, do negociante Sir Roger de Faria, um dos pioneiros do comércio de ópio para a China. Depois de uma tentativa frustrada de montar uma expedição, financiada por Roger de Faria, para recuperar a sua posição em Goa, Peres deixou Bombaim e instalou-se no enclave português de Damão, onde estabeleceu um governo no exílio. Só em 1837 o antigo prefeito regressaria a Goa, depois da chegada de um novo governador enviado do reino. Eleito novamente deputado no ano seguinte, Peres partiu uma vez mais para Lisboa, onde tomou finalmente o seu lugar nas cortes e onde acabaria por falecer em 1844.
Os restos mortais de Bernardo Peres da Silva permanecem numa campa anónima no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa. Em Portugal, a sua memória foi rapidamente esquecida e, duzentos anos depois da revolução liberal de 1820, nenhuma rua ou monumento comemora o único goês a ter governado o Estado da Índia. Em Goa, pelo contrário, até ao início do século XX Peres continuou a ocupar um lugar importante na produção literária e historiográfica das elites católicas. Nas décadas seguintes, porém, a influência crescente do nacionalismo indiano e o fim do colonialismo português levaram a um gradual esquecimento. Hoje em dia, embora exista uma estátua na sua terra natal, Neurá, e um BPS Sports Club em Margão, Peres é uma figura praticamente desconhecida para a maioria dos goeses.
Apesar deste esquecimento, que só agora começa a ser colmatado, o percurso de Bernardo Peres da Silva é representativo das possibilidades e contradições que marcaram a Era das Revoluções. A sua vida atravessou alguns dos momentos importantes deste período à escala transnacional, desde as revoluções liberais da década de 1820 à desagregação dos impérios ibéricos nas Américas, passando pela emergência do que o historiador britânico C. A. Bayly designou como o “pensamento liberal indiano” e até ao desenvolvimento do comércio de ópio, que nos anos seguintes transformaria a história do colonialismo europeu na Ásia. Interligando o Índico e o Atlântico, tantas vezes artificialmente separados pela historiografia, este percurso coloca em evidência a circulação global de ideias e de projetos políticos que caracterizou estas décadas e a forma como eles foram apropriados e reconcetualizados pelas populações coloniais. [show more]
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Description:Bonga (ou Bonga Kwenda, nome artístico de José Adelino Barceló de Carvalho, nascido em setembro de 1942, em Porto Quipire, Angola) é um cantor, compositor, letrista e percussionista (sobretudo de instrumentos de percussão de Angola como a dikanza). É um dos principais intérpretes e criadores da música popular angolana, e foi um destacado desportista e combatente anticolonial, na sua aceção mais lata (Lopes 2013). A sua produção musical faz parte da história contemporânea de Angola, mas também da história das canções de protesto contra o regime colonial português. No entanto, em Portugal, ao contrário do que sucede com personalidades do campo político ou literário, os cantores de protesto africanos encontram-se, regra geral, ausentes da memória cultural dominante sobre a Revolução dos Cravos, desconsiderados como cantores de Abril (Gomes 2024).
Este viés eurocêntrico ou “nacionalista” pode ser contornado estabelecendo conexões entre a história das lutas de libertação africana e as memórias dos músicos angolanos a viver na Europa, os quais, por sua vez, se conectaram com a música de protesto – portuguesa e internacional – com outros movimentos, políticos e culturais, de cariz anticolonialista, antirracista e anti-imperialista, em redor do mundo. A trajetória de Bonga relaciona-o com os imaginários anticoloniais, panafricanistas e de outras lutas que dominaram o período dos chamados “Anos 60 Globais” e da Revolução de 25 de Abril.
A sua vida enquanto desportista e cantor revolucionário coincide com uma forte efervescência política em torno de movimentos como o marxismo, o empoderamento negro e o terceiro-mundismo. O ano em que chega à metrópole, 1966, é o mesmo da Conferência Tricontinental de Havana e do alastrar da guerra colonial para o leste de Angola, episódios que marcariam o rumo da luta anticolonial, no “Ultramar” mas também na metrópole. A cultura de convivialidade da comunidade angolana na Europa desenvolvia-se então na tessitura de redes de solidariedade transcoloniais e internacionais, que ajudariam a criar (como diria Paul Gilroy) uma “esfera pública alternativa” no seio da capital do Império.
As sociabilidades que juntavam “embarcadiços” da marinha mercante, funcionários públicos de férias, músicos e desportistas africanos foram forças vitais que informaram o crescente envolvimento de Bonga no combate à ordem colonial. Entre as décadas de 1960 e de 1980, o seu percurso ilustra, paralelamente, a extensão das redes cinéticas da diáspora africana na Europa, por onde circulavam músicas e músicos, e cujas pontas conectavam Luanda e Lisboa, mas também estes dois centros urbanos a Paris e Roterdão.
Natural de uma pequena localidade na província do Bengo, a nordeste de Luanda, Bonga mudou-se ainda na infância para a capital angolana. Viveu no bairro “asfaltado” dos Coqueiros e nas Ingombotas e, pouco depois, nos “suburbanos” Marçal (tido como um viveiro musical da cidade), no Bairro Operário e no Rangel, bairros de população maioritariamente negra. No final da década de 1950, fez parte dos agrupamentos Kissueias – por onde passaram Carlos Lamartine, Nelito Soares e António José de Carvalho – e Kimbandas do Ritmo – acusados pela PIDE, em 1961, de comporem sub-repticiamente canções de teor político (Gomes 2021: 240).
O pai de Bonga era um escrivão da câmara eclesiástica e acordeonista amador, e um tio seu dirigente do Clube Atlético de Luanda, coletividade que congregou muitos anticolonialistas, entre os quais o seu treinador Demósthenes de Almeida (um são-tomense formado na metrópole). Foi neste clube que Bonga mais se evidenciou, sendo recordista dos 200m e 400m em Angola. Em 1966, ingressou no Sport Lisboa e Benfica, como atleta dessas especialidades. Em Portugal, ficou apreensivo com as atitudes e injúrias racistas de que era alvo nos treinos e nas competições, e não surpreende por isso que eleja, como maiores inspirações desse tempo, os atletas olímpicos Jesse Owens e John Carlos (Gomes 2021: 330).
Em casas de amigos ou pelos cafés de Lisboa (entre os quais se destaca o restaurante O Pique-Nique), Bonga confraterniza e “encontra o complemento emocional de que precisa na diáspora angolana e africana a residir em Portugal” (N’Ganga e Bonga 1997: 41). O cosmopolitismo e as novidades dos discos que os embarcadiços traziam de Cuba e de outros países da América Latina, aliados à preservação das tradições culturais angolanas, são para ele uma fórmula inspiradora. Estabelece laços de amizade também com os portugueses Adriano Correia de Oliveira e José́ Afonso. Bem presentes na sua memória estão as farras na casa do consulado de Cuba, em Lisboa, e na casa de Arménio Ferreira, angolano branco, médico do Sporting Clube de Portugal, filiado no Partido Comunista Português e homem de confiança de Agostinho Neto, que foi um dos responsáveis pela fuga do líder angolano para Marrocos, em julho de 1961.
Em Lisboa, Bonga continuava com um pé no circuito musical. Escreveu canções, usadas posteriormente por outros cantores, e tocou percussão ao lado de artistas como Vum-Vum, o Duo Ouro Negro (então o mais conceituado conjunto angolano na arena internacional) e também com Teta Lando e Lilly Tchiumba, com os quais apareceu no Casino Estoril tocando temas como «Paxi ni Ngongo» [«desgraça e sofrimento», em português] e «Muadiakiame», que afrontavam a ideologia colonial (Zau 2007: 168). Bonga participou também diretamente em ações subversivas dos movimentos de libertação. As viagens internacionais que fazia enquanto desportista levaram-no a transportar cartas clandestinas do MPLA. Apesar de nunca ter perfilhado o marxismo-leninismo, foi a prisão de alguns companheiros de uma célula política em Luanda que desencadeou a sua fuga para os Países Baixos, onde se tornaria músico profissional. Em Roterdão, encontrou um círculo de amizade idêntico ao de Lisboa: ‘marítimos’, estudantes exilados e militantes políticos cabo-verdianos, alguns deles com fortes afeições pela prática musical (Cidra 2022: 18).
Bonga participou então em eventos de poesia e em manifestações políticas pela libertação dos povos africanos do imperialismo português. Djunga de Biluca, um ex-marinheiro nomeado por Amílcar Cabral para representar o PAIGC nos Países Baixos, persuadiu-o a compor e cantar para a Morabeza, uma editora de música em afinidade com a conceção, proposta por Amílcar Cabral, da luta pela libertação como 'ato cultural’. Assim surge Angola 72, álbum que recebe a influência da música popular angolana e cujas letras (mesmo sem que de Biluca o soubesse) faziam dele uma declaração anticolonial: “Balukumenu", a segunda faixa, significa “Levantem-se” em kimbundu. Acompanhado na viola pelo compatriota Mário Rui Silva e pelo cabo-verdiano Humbertona, Bonga canta sobre a "exploração da matéria-prima angolana", as "dificuldades da vida diária das populações colonizadas”, devido à falta de necessidades básicas, e poemas de Mário de Andrade sobre o 'contrato' (trabalho forçado) (Pascoal 2018: 44-45).
O disco teve um impacto significativo, especialmente em Angola, onde chegava de forma furtiva ou através do programa radiofónico Angola Combatente, emitido pelo MPLA a partir de Brazzaville. O segundo álbum, Angola 74, saído pouco depois do 25 de Abril, trouxe algumas inovações mas manteve o estilo e os temas. Entre estes dois álbuns, Bonga viveu entre a Bélgica e a Alemanha, antes de se mudar para França, onde foi acolhido pelos angolanos Mário Clington (filho do citado Demósthenes de Almeida) e Rui Legot, ambos ligados à música e à militância pela contestação da situação política em Angola (Gomes 2024). Com Mário Clington integrou o conjunto Batuque, dedicado a sons afro-brasileiros e (depois da chegada de Bonga) ao semba. Bonga acabaria por se desvincular do grupo, criando em seguida o Duo Tião e Bonga, com o baiano Sebastião Rocha Perazzo. Na sequência, já com o saxofonista guineense Jo Maka, participou ainda do projeto Edja Kungali, com a colaboração de vários artistas africanos e sul-americanos.
Em Paris, Bonga tem vários encontros com Mário Pinto de Andrade, que via como um “conselheiro” (Scaraggi e Bonga 2024). A crítica anticolonial ressurge no terceiro álbum, Raízes (de 1975 e reeditado em 1978 por Maka, Perazzo e Bonga como Racines / De L’Angola Au Brésil), no qual abraça o Atlântico negro de Angola e Brasil. Sugere, na verdade, mais rotas do que raízes (Moorman 2019) ao comunicar “a possibilidade dos outrora colonizados estabelecerem alianças predicadas na crítica ao outrora colonizador, no descentramento deste, na destituição do seu poder de representação na História” (Cidra 2022: 76–77). De facto, em 1977/78, Bonga viajou para o Brasil a convite de Martinho de Vila, sambista com quem gravou algumas músicas. Em 1980, lança o LP Kandandu, editado em Portugal pela gravadora La Do Si Discos, ligada à comunidade cabo-verdiana. Nele não mais se vislumbravam posturas anticoloniais. De acordo com Filomeno Pascoal, era acima de tudo "um exemplo de fraternidade para os irmãos angolanos e africanos ao redor do mundo" (Pascoal 2018: 47). Contudo, a música de intervenção de Bonga não se quedou por aí.
Integrado cada vez mais no circuito da World Music, em particular dentro da produção musical de intérpretes das Antilhas e da África francófona (Cidra 2010: 150) – e não obstante as leituras exóticas de alguns agentes musicais –, Bonga passou a ser um artista reconhecido internacionalmente, especialmente em França, onde viveu por vários anos; em 2014, foi condecorado Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras de França. Na década de 1980, fez uma viagem aos EUA, onde permaneceu por cerca de oito meses dando concertos – um deles no Teatro Apolo, no Harlem, em homenagem a Amílcar Cabral. Participou de manifestações do partido dos Panteras Negras, conheceu ativistas do grupo e de outros movimentos, como o pensador negro brasileiro Abdias do Nascimento. Em 1985, ano em que passou a residir em Portugal, Bonga participou em Bruxelas num concerto em homenagem a Nelson Mandela.
Descontente com o rumo dos acontecimentos em Angola, a criação musical de Bonga – ora em português, ora em kimbundu – assenta a partir desta década na crítica social e na sátira política da realidade angolana. Disso é elucidativo o LP Reflexão (editado em 1988 pela Discossete), cuja canção “Acácias Feridas” encerra o disco com o lamento: “Cravo de Angola morreu, nunca [o] deixaram entrar na espingarda do soldado”. Êxitos como “Olhos molhados” (de 1988), “Mariquinha” (1991), “Água rara” (1999) e “Kambuá” (2011) trazem o reconhecimento do público português. Longe da sua terra natal, com largas décadas de divergências públicas com o MPLA, partido político que governa Angola desde a independência, Bonga tem regressado nos últimos anos ao seu país natal. Porém, atribulações com as autoridades locais – como boicotes e tentativas de boicotes a concertos seus – perpetuam, aos olhos do próprio, o sentimento de ser persona non grata para alguma nomenklatura do poder angolano.
Se as presenças de Bonga num comício-festa da UNITA (1988) e, mais recentemente, no hino da campanha deste partido (2022) parecem desagradar a alguns círculos políticos, o artista permanece vivo nas memórias de angolanos, africanos e portugueses. Desde os anos 1970, várias gerações o têm como referência central em alguma etapa das suas vidas (Gomes 2021: 334). Bonga é, muito provavelmente, o único octogenário com presença regular nos grandes festivais de música em Portugal. Continua a pugnar, por um lado, pelo engajamento dos músicos com o quotidiano do povo angolano e, por outro, pela preservação e valorização da cultura (linguística e de solidariedade) dos subúrbios da Luanda onde cresceu, a qual, fruto do colonialismo e da colonialidade, crê estar hoje em vias de extinção.
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