Portugal em Hollywood

- Title
- Portugal em Hollywood
- Abstract
- Durante o Estado Novo, a indústria cinematográfica dos Estados Unidos da América (EUA), habitualmente designada por Hollywood, produziu mais de quarenta filmes de ficção cujo enredo se desenrola, pelo menos parcialmente, em Portugal ou nas suas colónias. Em conjunto com as intervenções de políticos, diplomatas, propagandistas, jornalistas e ativistas, estes produtos comerciais contribuíram para a disseminação de imagens e ideias sobre Portugal, sendo que o cinema de Hollywood se destacava pelo amplo apelo de massas, pelo vasto aparato publicitário e pela distribuição em grande escala, tanto dentro quanto fora dos EUA (incluindo em Portugal, onde ocupava a maioria do mercado). Dado o parco envolvimento de figuras e organismos portugueses nestas produções, o seu estudo revela como a projeção internacional de Portugal neste período se deveu a impulsos externos e não apenas internos. Ainda assim, com a exceção da representação do colonialismo em Macau, a tendência geral foi para uma sintonia entre os discursos de Hollywood e o do Estado Novo, nomeadamente em termos do posicionamento do país na Segunda Guerra Mundial, na Guerra Fria e na ascensão do turismo.
- Description
- No início dos anos 1940, reconhecendo o potencial propagandístico do cinema e as limitações da produção portuguesa, António Ferro, diretor do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), elaborou uma estratégia para encorajar Hollywood a produzir filmes que promovessem Portugal, visando assim cooptar o poder dessa indústria (Ribeiro 2014). Embora Salazar não tenha dado seguimento ao plano proposto, o desejo de Ferro foi parcialmente materializado. É justamente nesta altura que a ficcionalização de Portugal começa a ser codificada de modo consistente por Hollywood, sendo Lisboa encenada numa dúzia de melodramas, de comédias românticas e de thrillers produzidos num curto espaço de tempo, inspirados pelo potencial dramático da concentração de refugiados e espiões na capital portuguesa no contexto da Segunda Guerra Mundial. Esta vaga de produções ganhou especial força após o sucesso de Casablanca (1942), cuja narrativa se centrava numa tentativa de fugir para Lisboa, encorajando o desenvolvimento de produtos semelhantes, relacionados com esse ponto de passagem (Mateus 2010). Os estúdios respondiam também ao apelo do Presidente Franklin D. Roosevelt para que os grandes meios de comunicação abordassem diversas dimensões da guerra, com vista a justificar a participação dos EUA (McLaughlin e Parry 2006).
O gabinete de propaganda de guerra do governo de Roosevelt, designado Office of War Information (OWI), pressionou ativamente Hollywood para evitar ofensas que pudessem comprometer as negociações com o Estado Novo quanto à eventual cedência da Base das Lajes aos Aliados, ou quanto ao embargo da venda de volfrâmio às potências do Eixo. Promoveu o cancelamento de projetos e a alteração de conteúdos, e impôs limites à exportação de certos filmes. Em Storm over Lisbon/Tormenta sobre Lisboa (1944), por exemplo, a protagonista foi reconvertida numa agente dos serviços secretos portugueses, que desmantelam uma rede de espionagem mercenária. Já no caso de The Conspirators (1944), o OWI proibiu a sua distribuição em Portugal, pois a caracterização de um polícia português como pró-Aliados podia ser vista como uma violação do estatuto oficial de neutralidade do país. Consequentemente, este conjunto de filmes associou Portugal a um imaginário de liberdade, omitindo as origens fascistas do regime e ocultando a oposição interna, ao mesmo tempo que retratava Lisboa e arredores como um oásis de paz e de luxo, que funcionava como entreposto na rota de fuga para os EUA de uma Europa devastada pela guerra, pela miséria e pela opressão. Esta visão benevolente da neutralidade portuguesa foi forjada em Washington e em Hollywood, com uma ligeira exceção no caso de Tormenta sobre Lisboa, filme sujeito a consulta prévia do consulado português em São Francisco, cujo representante requereu a remoção de duas frases de diálogo.
Apesar da extinção do OWI após a Segunda Guerra Mundial, nas décadas seguintes Hollywood cristalizou esta visão higienizada de Portugal. A perda de monopólios de exibição (determinada pelo Supremo Tribunal norte-americano em 1948) e a concorrência da televisão geraram uma quebra de lucros que Hollywood procurou compensar aumentando o número de produções rodadas na Europa, onde os custos eram mais baixos. Seguindo a prática de repetir fórmulas e tropos facilmente reconhecíveis pelo público, estas produções reproduziram a associação de Lisboa à espionagem, continuando a omitir quaisquer traços de autoritarismo na caracterização da sociedade portuguesa. Em obras como Lisbon/Lisboa (1956), a polícia aparece como uma força benigna que pune os vilões, implicitamente justificando a aliança dos EUA com o regime do Estado Novo, no contexto da Guerra Fria.
A par da conveniência logística, a ficcionalização de Portugal no cinema dos EUA foi marcada pela afinidade ideológica (Lopes 2017). Entre a vaga de filmes dos anos 1950 de teor marcadamente anticomunista, destaca-se um conjunto de dramas históricos sobre perseguições religiosas perpetradas por déspotas, alegorizando a repressão e o anticlericalismo da União Soviética (Eldridge 2006: 71-101). Este ciclo incluiu The Miracle of Our Lady of Fatima/O Milagre de Fátima (1952), uma grande produção que recriava a história das aparições marianas de 1917, com destaque para a mensagem divina de que a paz mundial dependeria da conversão da Rússia. Caso singular, na medida em que todas as personagens são portuguesas, o filme apresenta uma sociedade humilde e amplamente religiosa, vilificando as autoridades da Primeira República, equiparada pelo narrador a um regime de tipo soviético. A este, o filme contrapõe, no epílogo, o Portugal presente, exaltando o Santuário de Fátima, onde uma vasta multidão reza pela paz, e deste modo validando o regime do Estado Novo como bastião de catolicismo e de anticomunismo. Concebida pela produtora Warner Brothers, esta obra beneficiou de uma campanha promocional intensa e foi um dos maiores êxitos de bilheteira internacionais no ano da sua estreia, a que se seguiram repetidas exibições televisivas.
A sintonia foi menor no que se refere ao território colonial português, nomeadamente nos quinze filmes de ficção situados em Macau. A revolução chinesa de 1949 colocou esta colónia na chamada ‘cortina de bambu’, que separava o bloco ocidental do mundo comunista, fazendo de Macau um ponto vital para a China, como meio de contornar as sanções impostas após a Guerra da Coreia. Embora a reputação de Macau viesse de trás, nos anos 1950 foi amplamente publicitada a sua ligação aos casinos (na altura era o único o local da região que permitia o jogo) e ao contrabando, agravada pela ausência de taxas de conversão fixas do ouro, uma vez que Portugal não ratificara ainda o acordo monetário de Bretton Woods. Hollywood aproveitou estes elementos para histórias de intriga e aventura; consequentemente, com exceção do melodrama romântico Love Is A Many-Splendored Thing/A Colina da Saudade (1955), esses filmes davam destaque ao crime organizado, à pirataria e à espionagem, bem como ao tráfico de armas, de metais preciosos, de estupefacientes e de seres humanos.
As autoridades portuguesas em Macau eram caracterizadas, de forma explícita ou implícita, como corruptas e incompetentes, ainda que o gabinete de autorregulação de Hollywood procurasse conter a denigração de um país aliado: em Macao/Macau (1952), censurou as demonstrações mais flagrantes de racismo, de violência e de corrupção. Neste caso, o sensacionalismo e os estereótipos de Hollywood, privilegiando a tradição orientalista de apresentar a Ásia como um antro de vício e perdição, estavam desalinhados dos interesses do Estado Novo (Lopes 2016). As restantes colónias portuguesas praticamente não eram representadas ou referidas pela ficção cinematográfica dos EUA. No imaginário geográfico de Hollywood, o império português na Índia e em África permaneceu ausente – e, graças a isso, ausentes estiveram também as guerras coloniais.
Com exceção da breve onda de antiamericanismo durante a governação do Presidente Kennedy (1961-63), mais crítico do colonialismo português, as autoridades do Estado Novo aceitaram com crescente entusiasmo os pedidos de autorização para filmar em Portugal. Se os produtores norte-americanos eram atraídos pelos baixos salários e pela solarenga fotogenia do país, ao Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (sucessor do SPN) interessavam a entrada de dinheiro estrangeiro despendido nessas produções e, sobretudo, a promoção do turismo. Esta última era gerada pela difusão, nos próprios filmes, das paisagens nacionais, pela cobertura mediática das rodagens (as vedetas davam frequentes entrevistas na imprensa nacional e internacional em que elogiavam o país) e pelas campanhas publicitárias de Hollywood. Por exemplo, a distribuidora de A Man Could Get Killed/A Dança dos Diamantes (1966) recomendou aos exibidores americanos e europeus que enfatizassem o apelo turístico das localizações dessa comédia (Cascais, Lisboa, Setúbal, Sesimbra), através de brochuras e contactos com agências de viagens, com a TAP e com as Casas de Portugal.
Este e outros filmes da época, incluindo obras de grande projeção – como a coprodução anglo-americana On Her Majesty’s Secret Service/007 – Ao Serviço de Sua Majestade (1969) –, encorajaram e aproveitaram o desenvolvimento do turismo, numa altura em que este se tornou numa importante fonte de receitas para Portugal. Prolongando a imagem herdada da Segunda Guerra Mundial, até ao fim do Estado Novo Hollywood continuou a retratar o país como essencialmente cosmopolita, romântico e emocionante, pautado por praias, casas de fado, hotéis de luxo, casinos e vinho. Ou seja, para além do poder político, toda uma rede de interesses económicos beneficiava destas produções, desde o sector cinematográfico (para quem a colaboração com profissionais estrangeiros facilitava o acesso a conhecimento técnico) a variados negócios turísticos.
Os filmes nem sempre se alinhavam perfeitamente com a representação desejada pela ditadura, mas também não a contrariavam na sua essência – daí o muito reduzido número de cortes requerido pelos censores portugueses quando eles vieram a ser exibidos em Portugal. Maior era o contraste com a visão dos movimentos anticoloniais e seus apoiantes, que geraram a sua própria filmografia, fora de Hollywood (Laranjeiro 2021). Esses documentários militantes, a par de publicações, manifestações de rua e discursos em fóruns como a ONU, criticavam fortemente o regime (sobretudo pela sua política colonial), denúncias que no entanto não penetravam no país ficcionado e difundido a milhões de espectadores pela maior indústria de entretenimento do mundo.
Nas décadas que se seguiram ao 25 de Abril, sem que Hollywood tenha mostrado interesse pelo processo revolucionário português ou pressa em desenvolver parcerias semelhantes com o novo regime democrático, Portugal praticamente desapareceu do cinema norte-americano. Os poucos filmes dos EUA então rodados em Portugal eram produções independentes (em regra coproduções maioritariamente europeias, com algum capital americano) ou que se serviam do território para recriar outras geografias: Lisboa para simular o Paraguai, Macau para simular Xangai. Só na viragem para os anos 2020 é que a situação se alterou, com uma nova leva de aparições de Lisboa, e agora também do Porto, em grandes produções de Hollywood, de novo coincidindo com um boom turístico. Não há, pelo menos por enquanto, uma coerência evidente nas novas imagens, mas a articulação com o sector turístico tende a salientar elementos de atração de visitantes, sugerindo uma continuidade no modo de representação, de onde está ausente a transformação política do país.
- Creator
- Lopes, Rui
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Date Issued
- 13-02-2025
- References
- Eldridge, David. 2006. Hollywood’s History Films. Nova Iorque, NY: I.B. Tauris.
Laranjeiro, Catarina. 2021. Dos Sonhos e das Imagens. A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau. Lisboa: Outro Modo.
Lopes, Rui. 2016. ‘’A fabulous speck on the Earth’s surface’: Depictions of colonial Macao in 1950s’ Hollywood’, Portuguese Studies, 32, no. 1: 72-87. DOI: 10.5699/portstudies.32.1.0072.
Lopes, Rui. 2017. ‘Fado and Fatima: Salazar’s Portugal in US Film Fiction’, Film History: An International Journal, 29, no.3: 52-75. DOI: 10.2979/filmhistory.29.3.03.
Mateus, João Mascarenhas. 2010. ‘Uma cidade de espionagem internacional. Lisboa Segundo Hollywood’, Metakinema: Revista de Cine e Historia, 7 http://www.metakinema.es/metakineman7s4a2_Joao_Mascarenhas_Mateus_Lisbon_International_Intrigue_Hollywood.html.
McLaughlin, Robert L. & Sally E. Parry. 2006. We’ll Always Have the Movies: American Cinema During World War II. Lexington, KY: University Press of Kentucky.
Ribeiro, Carla. 2014. “António Ferro e a projeção atlântica de Portugal através do cinema”, Aniki: Revista Portuguesa da Imagem em Movimento, 1, no. 2: 151–75. DOI: https://doi.org/10.14591/aniki.v1n2.7.
Collection
Citation
Lopes, Rui, “Portugal em Hollywood,” Connecting Portuguese History, accessed March 7, 2025, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/112.
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