Bonga

- Title
- Bonga
- Abstract
- Nascido em Angola, Bonga é um dos principais intérpretes e criadores da música popular angolana. A sua obra faz parte não apenas da história contemporânea de Angola, mas também da história das canções de protesto contra o regime colonial português.
- Description
- Bonga (ou Bonga Kwenda, nome artístico de José Adelino Barceló de Carvalho, nascido em setembro de 1942, em Porto Quipire, Angola) é um cantor, compositor, letrista e percussionista (sobretudo de instrumentos de percussão de Angola como a dikanza). É um dos principais intérpretes e criadores da música popular angolana, e foi um destacado desportista e combatente anticolonial, na sua aceção mais lata (Lopes 2013). A sua produção musical faz parte da história contemporânea de Angola, mas também da história das canções de protesto contra o regime colonial português. No entanto, em Portugal, ao contrário do que sucede com personalidades do campo político ou literário, os cantores de protesto africanos encontram-se, regra geral, ausentes da memória cultural dominante sobre a Revolução dos Cravos, desconsiderados como cantores de Abril (Gomes 2024).
Este viés eurocêntrico ou “nacionalista” pode ser contornado estabelecendo conexões entre a história das lutas de libertação africana e as memórias dos músicos angolanos a viver na Europa, os quais, por sua vez, se conectaram com a música de protesto – portuguesa e internacional – com outros movimentos, políticos e culturais, de cariz anticolonialista, antirracista e anti-imperialista, em redor do mundo. A trajetória de Bonga relaciona-o com os imaginários anticoloniais, panafricanistas e de outras lutas que dominaram o período dos chamados “Anos 60 Globais” e da Revolução de 25 de Abril.
A sua vida enquanto desportista e cantor revolucionário coincide com uma forte efervescência política em torno de movimentos como o marxismo, o empoderamento negro e o terceiro-mundismo. O ano em que chega à metrópole, 1966, é o mesmo da Conferência Tricontinental de Havana e do alastrar da guerra colonial para o leste de Angola, episódios que marcariam o rumo da luta anticolonial, no “Ultramar” mas também na metrópole. A cultura de convivialidade da comunidade angolana na Europa desenvolvia-se então na tessitura de redes de solidariedade transcoloniais e internacionais, que ajudariam a criar (como diria Paul Gilroy) uma “esfera pública alternativa” no seio da capital do Império.
As sociabilidades que juntavam “embarcadiços” da marinha mercante, funcionários públicos de férias, músicos e desportistas africanos foram forças vitais que informaram o crescente envolvimento de Bonga no combate à ordem colonial. Entre as décadas de 1960 e de 1980, o seu percurso ilustra, paralelamente, a extensão das redes cinéticas da diáspora africana na Europa, por onde circulavam músicas e músicos, e cujas pontas conectavam Luanda e Lisboa, mas também estes dois centros urbanos a Paris e Roterdão.
Natural de uma pequena localidade na província do Bengo, a nordeste de Luanda, Bonga mudou-se ainda na infância para a capital angolana. Viveu no bairro “asfaltado” dos Coqueiros e nas Ingombotas e, pouco depois, nos “suburbanos” Marçal (tido como um viveiro musical da cidade), no Bairro Operário e no Rangel, bairros de população maioritariamente negra. No final da década de 1950, fez parte dos agrupamentos Kissueias – por onde passaram Carlos Lamartine, Nelito Soares e António José de Carvalho – e Kimbandas do Ritmo – acusados pela PIDE, em 1961, de comporem sub-repticiamente canções de teor político (Gomes 2021: 240).
O pai de Bonga era um escrivão da câmara eclesiástica e acordeonista amador, e um tio seu dirigente do Clube Atlético de Luanda, coletividade que congregou muitos anticolonialistas, entre os quais o seu treinador Demósthenes de Almeida (um são-tomense formado na metrópole). Foi neste clube que Bonga mais se evidenciou, sendo recordista dos 200m e 400m em Angola. Em 1966, ingressou no Sport Lisboa e Benfica, como atleta dessas especialidades. Em Portugal, ficou apreensivo com as atitudes e injúrias racistas de que era alvo nos treinos e nas competições, e não surpreende por isso que eleja, como maiores inspirações desse tempo, os atletas olímpicos Jesse Owens e John Carlos (Gomes 2021: 330).
Em casas de amigos ou pelos cafés de Lisboa (entre os quais se destaca o restaurante O Pique-Nique), Bonga confraterniza e “encontra o complemento emocional de que precisa na diáspora angolana e africana a residir em Portugal” (N’Ganga e Bonga 1997: 41). O cosmopolitismo e as novidades dos discos que os embarcadiços traziam de Cuba e de outros países da América Latina, aliados à preservação das tradições culturais angolanas, são para ele uma fórmula inspiradora. Estabelece laços de amizade também com os portugueses Adriano Correia de Oliveira e José́ Afonso. Bem presentes na sua memória estão as farras na casa do consulado de Cuba, em Lisboa, e na casa de Arménio Ferreira, angolano branco, médico do Sporting Clube de Portugal, filiado no Partido Comunista Português e homem de confiança de Agostinho Neto, que foi um dos responsáveis pela fuga do líder angolano para Marrocos, em julho de 1961.
Em Lisboa, Bonga continuava com um pé no circuito musical. Escreveu canções, usadas posteriormente por outros cantores, e tocou percussão ao lado de artistas como Vum-Vum, o Duo Ouro Negro (então o mais conceituado conjunto angolano na arena internacional) e também com Teta Lando e Lilly Tchiumba, com os quais apareceu no Casino Estoril tocando temas como «Paxi ni Ngongo» [«desgraça e sofrimento», em português] e «Muadiakiame», que afrontavam a ideologia colonial (Zau 2007: 168). Bonga participou também diretamente em ações subversivas dos movimentos de libertação. As viagens internacionais que fazia enquanto desportista levaram-no a transportar cartas clandestinas do MPLA. Apesar de nunca ter perfilhado o marxismo-leninismo, foi a prisão de alguns companheiros de uma célula política em Luanda que desencadeou a sua fuga para os Países Baixos, onde se tornaria músico profissional. Em Roterdão, encontrou um círculo de amizade idêntico ao de Lisboa: ‘marítimos’, estudantes exilados e militantes políticos cabo-verdianos, alguns deles com fortes afeições pela prática musical (Cidra 2022: 18).
Bonga participou então em eventos de poesia e em manifestações políticas pela libertação dos povos africanos do imperialismo português. Djunga de Biluca, um ex-marinheiro nomeado por Amílcar Cabral para representar o PAIGC nos Países Baixos, persuadiu-o a compor e cantar para a Morabeza, uma editora de música em afinidade com a conceção, proposta por Amílcar Cabral, da luta pela libertação como 'ato cultural’. Assim surge Angola 72, álbum que recebe a influência da música popular angolana e cujas letras (mesmo sem que de Biluca o soubesse) faziam dele uma declaração anticolonial: “Balukumenu", a segunda faixa, significa “Levantem-se” em kimbundu. Acompanhado na viola pelo compatriota Mário Rui Silva e pelo cabo-verdiano Humbertona, Bonga canta sobre a "exploração da matéria-prima angolana", as "dificuldades da vida diária das populações colonizadas”, devido à falta de necessidades básicas, e poemas de Mário de Andrade sobre o 'contrato' (trabalho forçado) (Pascoal 2018: 44-45).
O disco teve um impacto significativo, especialmente em Angola, onde chegava de forma furtiva ou através do programa radiofónico Angola Combatente, emitido pelo MPLA a partir de Brazzaville. O segundo álbum, Angola 74, saído pouco depois do 25 de Abril, trouxe algumas inovações mas manteve o estilo e os temas. Entre estes dois álbuns, Bonga viveu entre a Bélgica e a Alemanha, antes de se mudar para França, onde foi acolhido pelos angolanos Mário Clington (filho do citado Demósthenes de Almeida) e Rui Legot, ambos ligados à música e à militância pela contestação da situação política em Angola (Gomes 2024). Com Mário Clington integrou o conjunto Batuque, dedicado a sons afro-brasileiros e (depois da chegada de Bonga) ao semba. Bonga acabaria por se desvincular do grupo, criando em seguida o Duo Tião e Bonga, com o baiano Sebastião Rocha Perazzo. Na sequência, já com o saxofonista guineense Jo Maka, participou ainda do projeto Edja Kungali, com a colaboração de vários artistas africanos e sul-americanos.
Em Paris, Bonga tem vários encontros com Mário Pinto de Andrade, que via como um “conselheiro” (Scaraggi e Bonga 2024). A crítica anticolonial ressurge no terceiro álbum, Raízes (de 1975 e reeditado em 1978 por Maka, Perazzo e Bonga como Racines / De L’Angola Au Brésil), no qual abraça o Atlântico negro de Angola e Brasil. Sugere, na verdade, mais rotas do que raízes (Moorman 2019) ao comunicar “a possibilidade dos outrora colonizados estabelecerem alianças predicadas na crítica ao outrora colonizador, no descentramento deste, na destituição do seu poder de representação na História” (Cidra 2022: 76–77). De facto, em 1977/78, Bonga viajou para o Brasil a convite de Martinho de Vila, sambista com quem gravou algumas músicas. Em 1980, lança o LP Kandandu, editado em Portugal pela gravadora La Do Si Discos, ligada à comunidade cabo-verdiana. Nele não mais se vislumbravam posturas anticoloniais. De acordo com Filomeno Pascoal, era acima de tudo "um exemplo de fraternidade para os irmãos angolanos e africanos ao redor do mundo" (Pascoal 2018: 47). Contudo, a música de intervenção de Bonga não se quedou por aí.
Integrado cada vez mais no circuito da World Music, em particular dentro da produção musical de intérpretes das Antilhas e da África francófona (Cidra 2010: 150) – e não obstante as leituras exóticas de alguns agentes musicais –, Bonga passou a ser um artista reconhecido internacionalmente, especialmente em França, onde viveu por vários anos; em 2014, foi condecorado Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras de França. Na década de 1980, fez uma viagem aos EUA, onde permaneceu por cerca de oito meses dando concertos – um deles no Teatro Apolo, no Harlem, em homenagem a Amílcar Cabral. Participou de manifestações do partido dos Panteras Negras, conheceu ativistas do grupo e de outros movimentos, como o pensador negro brasileiro Abdias do Nascimento. Em 1985, ano em que passou a residir em Portugal, Bonga participou em Bruxelas num concerto em homenagem a Nelson Mandela.
Descontente com o rumo dos acontecimentos em Angola, a criação musical de Bonga – ora em português, ora em kimbundu – assenta a partir desta década na crítica social e na sátira política da realidade angolana. Disso é elucidativo o LP Reflexão (editado em 1988 pela Discossete), cuja canção “Acácias Feridas” encerra o disco com o lamento: “Cravo de Angola morreu, nunca [o] deixaram entrar na espingarda do soldado”. Êxitos como “Olhos molhados” (de 1988), “Mariquinha” (1991), “Água rara” (1999) e “Kambuá” (2011) trazem o reconhecimento do público português. Longe da sua terra natal, com largas décadas de divergências públicas com o MPLA, partido político que governa Angola desde a independência, Bonga tem regressado nos últimos anos ao seu país natal. Porém, atribulações com as autoridades locais – como boicotes e tentativas de boicotes a concertos seus – perpetuam, aos olhos do próprio, o sentimento de ser persona non grata para alguma nomenklatura do poder angolano.
Se as presenças de Bonga num comício-festa da UNITA (1988) e, mais recentemente, no hino da campanha deste partido (2022) parecem desagradar a alguns círculos políticos, o artista permanece vivo nas memórias de angolanos, africanos e portugueses. Desde os anos 1970, várias gerações o têm como referência central em alguma etapa das suas vidas (Gomes 2021: 334). Bonga é, muito provavelmente, o único octogenário com presença regular nos grandes festivais de música em Portugal. Continua a pugnar, por um lado, pelo engajamento dos músicos com o quotidiano do povo angolano e, por outro, pela preservação e valorização da cultura (linguística e de solidariedade) dos subúrbios da Luanda onde cresceu, a qual, fruto do colonialismo e da colonialidade, crê estar hoje em vias de extinção.
- Creator
- Gomes, Pedro David
- Relation
- CICS.NOVA
- Date Issued
- 21-01-2025
- References
- Cidra, Rui (2010), “Bonga”. In Salwa Castelo-Branco (org.), Enciclopédia da música em Portugal no século XX (volume 1 – A a C). Lisboa: Círculo de Leitores/ Temas e Debates, pp. 149–151.
Cidra, Rui (2022). Identidades de diáspora, cosmopolitismo e a promessa da cidadania: a lusofonia a partir das vozes de músicos das diásporas africanas. Análise Social, 57 (242), pp. 56–84. https://doi.org/10.31447/as00032573.2022242.03
Gomes, Pedro David (2021). “Lazer, cultura popular e colonialismo em Luanda: sociabilidades e resistências translocais numa história sobre música e automóveis (1957-1975)” [Tese de doutoramento, Universidade de Lisboa]. http://hdl.handle.net/10451/50390
Gomes, Pedro David (2024). “Os músicos angolanos e a música de protesto em Portugal ‒ reflexões para descentrar a história dos cantores de Abril”. Revista Crítica de Ciências Sociais, 133 (n.º especial “Nas margens do 25 de Abril: os futuros do passado”), pp. 77-96. https://doi.org/10.4000/11pr4.
Lopes, Filomeno (2013). Bonga Kwenda: um combatente angolano da liberdade africana. Torino, Paris e Luanda: Harmattan Italia, Centro de Estudos Populorum Progressio.
Moorman, Marissa (2019). “Bonga´s Transatlantic Routes”. Revista Transversos. Dossiê: Reflexões sobre e de Angola – inscrevendo saberes e pensamento, 15, pp. 445-452.
N’Ganga, João Paulo e Barceló de Carvalho (Bonga) (1997). Dendém de Açúcar. Coimbra: Pac. Artes gráficas / Imprensa de Coimbra.
Pascoal, Filomeno (2018). Bonga – marcas na oralidade angolana. Lisboa: Perfil Criativo.
Scaraggi, Elisa (2024). “'Deviam fazer-lhe um monumento em Angola', conversa com Bonga Kwenda sobre Mário Pinto de Andrade". Buala, 6 de novembro, 2024. https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/deviam-fazer-lhe-um-monumento-em-angola-conversa-com-bonga-kwenda-sobre-mario-pinto-de-a
Zau, Filipe (2007). Notas fora de pauta, Luanda, Lisboa, Caxinde: Prefácio, D.L.
Collection
Citation
Gomes, Pedro David, “Bonga,” Connecting Portuguese History, accessed March 7, 2025, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/102.
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