A Casa dos Estudantes Portugueses na Cidade Internacional Universitária de Paris | A Casa dos Estudantes Portugueses na Cidade Internacional Universitária de Paris | | |
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Description:“Hoje, 22 de maio de 1968, nós, trabalhadores e estudantes revolucionários, declaramos esta Casa primeiro território livre de Portugal” (Pereira 2020: 290). Eis o slogan dos militantes da secção portuguesa do Comité de Ação Trabalhadores Estudantes, formado a 16 de maio de 1968, ao ocuparem a Casa dos Estudantes Portugueses na Cidade Internacional Universitária de Paris. A França é então abalada por fortes convulsões políticas e centenas de trabalhadores e estudantes portugueses exilados em França participam nas manifestações, nas ocupações de fábricas e de universidades; uma parte deles envolve-se mesmo em confrontos com a polícia. Uma das formas de ação escolhida pelos ativistas é a ocupação da Casa dos Estudantes Portugueses que, durante 21 dias, acolhe assembleias gerais, debates, sessões de cinema, concertos e representações teatrais. Embora a residência universitária fosse financiada e gerida pela Fundação Calouste Gulbenkian, os ocupantes encaravam-na como um símbolo da ditadura portuguesa. A ocupação ilustra a dimensão internacional dos eventos de maio-junho de 1968: não se tratava apenas de protestar contra o general De Gaulle e o capitalismo em França, pois os protestos visavam as ditaduras e o imperialismo em todo o mundo (Bantigny 2018). Assim, na Cidade Universitária, são ocupadas várias residências de países onde vigoram ditaduras, como Espanha, Brasil e Grécia (Tronchet 2022). Apesar de ter sido inaugurada apenas em 1967, a Casa dos Estudantes Portugueses tem uma longa pré-história que ilustra as contradições da internacionalização da investigação científica portuguesa já nas primeiras décadas do século XX, e a posterior circulação transnacional de estudantes.
Uma Sociedade das Nações da Juventude
Durante a Primeira Guerra Mundial, as elites republicanas francesas desenvolvem uma ampla campanha de propaganda, que apresenta o conflito como uma oposição entre, por um lado, a democracia e a civilização francesas e, por outro, o autoritarismo e a brutalidade da Alemanha e dos seus aliados. Esta propaganda é difundida no estrangeiro, nos países aliados e neutrais, com o objetivo de obter apoio diplomático, militar e económico. Os dirigentes republicanos portugueses, liderados por Afonso Costa, apoiam a França e participam nessas ações. Para o primeiro-ministro português, a participação de Portugal na guerra é importante para legitimar o regime republicano recentemente implantado, assegurar a preservação das colónias africanas e afastar qualquer ameaça de anexação espanhola. Por estes motivos, a partir de 1917 Portugal envia 55 mil soldados para França.
Depois do fim da Guerra, alguns dirigentes franceses procuram assegurar a proeminência da França na Europa e reforçar as alianças entretanto forjadas. Uma das vertentes deste projeto é desenvolvida no domínio da "diplomacia universitária" (Tronchet 2013). O objetivo é desenvolver a cooperação universitária, fortalecendo a proeminência diplomática, política, económica e cultural francesa no plano internacional. Os estudantes estrangeiros são atraídos na expectativa de que possam, no futuro, vir a tornar-se embaixadores da França nos seus próprios países. Mas a chegada de estudantes estrangeiros levanta a questão do alojamento, uma vez que as pensões do Quartier Latin, à volta da Sorbonne, estão cheias. André Honnorat, Paul Appell e Émile Deutsch de la Meurthe empenham-se por isso na construção, de raiz, de um campus universitário, concebido como uma "babel estudantil" (Kévonian & Tronchet 2013) na qual os estudantes de todos os países possam conhecer-se, compreender-se e forjar amizades sólidas, base de uma paz duradoura. No sul de Paris é assim edificada uma "Sociedade das Nações da Juventude”. São privilegiados os países aliados da França e, a partir da segunda metade dos anos 1920, começam a erguer-se vários pavilhões.
Portugal é desde o início candidato à construção de uma residência, projeto em que Afonso Costa (que vive em Paris a partir de 1919) está fortemente envolvido. Juntamente com os dirigentes da Cidade Universitária, escolhe um terreno – ao lado do do Brasil – e tenta angariar os fundos necessários. Em 1924, o Orfeão Académico de Coimbra dá um concerto em Paris cujas receitas devem servir a construção do futuro pavilhão. Este projeto insere-se na linha da política externa promovida por Afonso Costa, nomeadamente no âmbito da conferência de Paris (1919-1920) e da Sociedade das Nações (SDN), em Genebra, a cuja Assembleia-geral o antigo primeiro-ministro português preside a partir de março de 1926. Para Afonso Costa, Portugal deve tomar parte ativa na Sociedade das Nações, de modo a afirmar-se no concerto das nações europeias. Também por isso, Portugal deve estar presente na Cidade Universitária, juntamente com os países que lutaram ao lado da França. O envio de estudantes para Paris deve ainda tornar patente a aposta dos republicanos no ensino e na investigação, em contraste com décadas de obscurantismo promovido, segundo o seu ponto de vista, pela Igreja Católica e pelo regime monárquico.
O “quarto português”: um primeiro passo?
Embora em março de 1926 o embaixador português em Paris, António da Fonseca, assegurasse que a construção teria início em breve, o projeto de Afonso Costa não chega a concretizar-se. A Primeira República portuguesa cai nos últimos dias de maio de 1926, e Afonso Costa perde influência. Armando da Gama Ochoa, um dos militares do golpe de 28 de maio, torna-se embaixador em Paris. Ainda assim, os dirigentes da nova ditadura militar criam um organismo que defende também a presença portuguesa na Cidade Universitária: em 1929 é fundada a Junta de Educação Nacional (JEN), que pretende promover o desenvolvimento da investigação. Com este fim, prevê-se o envio de jovens investigadores portugueses para o estrangeiro, para adquirirem conhecimentos que não são lecionados em Portugal e utilizarem equipamentos que não existem no país. Entre 1929 e 1936, a JEN financia a deslocação de 148 estudantes e investigadores, principalmente para França e Alemanha (Lopes 2018). Em Paris, os bolseiros sofrem com o elevado custo do alojamento e enfrentam grandes dificuldades para encontrar um quarto. Francisco Paula de Leite Pinto, futuro Ministro da Educação Nacional, queixa-se em novembro de 1929 de, num só sábado, ter visitado 53 hotéis e seis pensões. A Luís Simões Raposo, secretário-geral da JEN, transmite os seguintes alertas: “Não mandem para aqui bolseiro algum que visite Paris pela primeira vez” e “Não mandem ninguém depois de setembro”. Em 1931, Celestino da Costa, vice-presidente da JEN, visita a Cidade Universitária com André Honnorat, o principal obreiro deste empreendimento. Embora Portugal não dispusesse de meios para construir uma residência, a JEN financia a construção de um "quarto português" numa nova residência, a casa das províncias de França. Entre 1935 e 1940, ocupam sucessivamente este quarto Manuel Zaluar-Nunes, matemático, Manuel Tavares Chicó, historiador de arte, e Orlando Ribeiro, geógrafo. André Honnorat mantém a esperança de que Portugal – em parceria com o Brasil – possa construir a sua própria residência. No entanto, a JEN – que perde progressivamente autonomia e em 1936 se transforma em Instituto para a Alta Cultura, na dependência da Junta Nacional de Educação – não dispõe de meios para o fazer. O seu secretário-geral a partir de 1934, Francisco Leite Pinto, apesar de ter sido ele próprio poucos anos antes estudante em Paris, considera este investimento impensável para uma "nação que nem tem escolas primárias".
A surpresa Gulbenkian
Em 1945, a direção da Cidade Universitária deixa de pedir ao Instituto para a Alta Cultura a escolha de um estudante português, atitude em relação à qual o Instituto não exprime sequer qualquer reclamação. O envio de estudantes para as universidades de Paris deixa de ser visto como uma prioridade para as autoridades portuguesas, também pela influência que o Partido Comunista Francês entretanto começara a grangear nos meios académicos parisienses. Alguns estudantes portugueses conseguem, ainda assim, encontrar quarto na Cidade Universitária: é o caso de Marcelino dos Santos, de Aquino de Bragança ou de Edmundo Rocha, que residem por algum tempo na casa de Marrocos, onde tecerão relações com estudantes africanos que mais tarde virão a revelar-se muito úteis, no contexto das guerras coloniais.
Um novo imbróglio jurídico e diplomático precede a construção, na década de 1960, da residência portuguesa. Em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, o milionário de origem arménia Calouste Gulbenkian instala-se em Lisboa, aproveitando a neutralidade portuguesa e o seu regime fiscal vantajoso. Antes de morrer, em 1955, o magnata decide consagrar grande parte da sua herança a uma fundação a instalar na capital portuguesa. Pretende, além disso, que a sua vasta coleção de obras de arte – uma das maiores do mundo – seja reunida num museu em Lisboa. Muitas das suas obras encontram-se no entanto em Paris, na sua mansão privada situada a poucos metros da place de l’Étoile. A Fundação Gulbenkian pretende trazer estas obras de arte para Portugal, desejo a que os funcionários do Ministério da Cultura francês se opõem, argumentando que algumas dessas peças são obras-primas insubstituíveis que fazem parte do património francês. É o caso, nomeadamente, de uma “Diana Caçadora”, esculpida por Jean-Antoine Houdon, que Calouste Gulbenkian havia comprado em 1930 na União Soviética. Inicia-se aí um conflito que se prolonga por muitos meses. Por fim, a Fundação Calouste Gulbenkian consegue que todas as peças – sem exceção – do magnata do petróleo sejam exportadas para Portugal, oferecendo em contrapartida algumas concessões. É assim que a mansão de Gulbenkian em Paris passa a ser a sede de um centro cultural luso-francês e que a Fundação se propõe construir uma residência na Cidade Universitária, correspondendo, de resto, a uma reivindicação expressa por alguns estudantes que, em 1960, fundam a União dos Estudantes Portugueses em França.
Maio-Junho de 1968
A primeira pedra da residência é colocada em outubro de 1960, mas o edifício vem a abrir as suas portas apenas sete anos mais tarde, acolhendo estudantes, investigadores e artistas portugueses, franceses e de outras nacionalidades. O seu objetivo é contribuir para “as relações culturais e o intercâmbio intelectual entre Portugal e França”. Os diretores da Casa têm o cuidado de não admitir “agitadores”. Com efeito, desde o início dos anos 1960, a França vinha acolhendo milhares de jovens portugueses fugidos das guerras coloniais e da repressão ao movimento estudantil. Centenas de jovens portugueses vivem na região parisiense, tentando conciliar os estudos, a militância política e a sobrevivência material. Para residir na Casa dos Estudantes Portugueses têm preferência bolseiros de instituições portuguesas (Fundação Calouste Gulbenkian, Instituto de Alta Cultura, Junta de Energia Nuclear). Uma vez que estes dependem materialmente das suas bolsas e têm o compromisso de regressar a Portugal após a sua estadia parisiense, presume-se que deem mais garantias de sossego à direção da Casa dos Estudantes Portugueses. No entanto, apesar destes cuidados, verificam-se logo em 1968 algumas convulsões, quando alguns estudantes protestam contra o regulamento que impede as moradoras de receberem homens nos seus quartos. Trata-se de um tema que suscita contestação também noutras residências da Cidade Universitária, assim como noutros campus. O facto é que a ocupação, que tem início na noite de 22 de maio de 1968, é sobretudo obra de pessoas que não vivem na residência e, principalmente, de militantes maoístas. Os nomes dados às salas do edifício revelam as preferências dos ocupantes: sala Marx e Engels; sala Che Guevara; e ainda sala Bento Gonçalves, antigo secretário-geral do PCP, figura recuperada pelos militantes maoístas que alegam estar a reconstituir o verdadeiro Partido Comunista (e com isso, implicitamente, criticam o então líder do PCP, Álvaro Cunhal, que encaram como traidor do movimento operário). Durante vários dias, a Casa é gerida por um comité de ocupação, e lá multiplicam-se debates, concertos (de Luís Cília por exemplo), sessões de cinema e até uma representação teatral, quando a peça Le chant du fantoche lusitanien, de Peter Weiss, é pela primeira vez levada à cena em França.
A 12 de junho, os ocupantes abandonam a residência, que tinha sido designada por Casa dos Trabalhadores e Estudantes portugueses. Alguns deles são presos, tanto em França como em Portugal; outros partem para Itália para não serem incomodados. Os eventos de maio-junho, em geral, e a ocupação da Casa dos Estudantes Portugueses em particular, preocupam as autoridades da ditadura, que temem um efeito de contágio junto dos estudantes em Portugal. O “caso Maurice Béjart” comprova-o. Em 6 de Junho de 1968, o conhecido coreógrafo é expulso de Portugal depois da apresentação, no Coliseu de Lisboa, do seu bailado Romeu e Julieta. As autoridades portuguesas consideram que nessa representação “foram dirigidas à juventude exortações derrotistas”, nomeadamente o slogan “make love, not war”, julgado inaceitável em tempos de guerra em África. Justificando esta expulsão expeditiva junto do presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, que tinha convidado Béjart, Salazar revela ter seguido atentamente os eventos de maio-junho de 1968: “Deu-se o caso estranho de que a ocupação da Sorbonne pela massa estudantil foi precisamente feita durante muitos dias ao som do estribilho – faites l’amour, pas la guerre –; e as nossas informações são de que, com a insistente repetição do mesmo estribilho, foi também ocupada e pilhada a residência com que a Fundação Gulbenkian generosamente presenteou a universidade de Paris para instalar ali com dignidade e calma estudantes portugueses e estrangeiros”. Evocando a crise em França, Salazar diria no conselho de ministros de 11 de junho de 1968: “Entre nós tem de ser diferente: não podemos ter crise de autoridade: e logo ao primeiro sintoma temos de resolver o caso radicalmente, haja o que houver, seja com estudantes ou com operários”. Defendendo Béjart e a instituição que dirigia, o presidente da Fundação Gulbenkian, José de Azeredo Perdigão, ousa contradizer Salazar: “Salvo o devido respeito, Vossa Excelência está mal informada (…). As palavras que inspiraram os revoltosos – estudantes e operários, nacionais e estrangeiros, onde não faltavam emigrados políticos portugueses – e que eles, associados no mesmo movimento, gritavam quando enfrentavam as forças da ordem, deixaram escritas por toda a parte nos edifícios que ocuparam e pilharam, e se liam em cartazes que afixaram profusamente nas respetivas paredes, não foram “faites l’amour, pas la guerre”, mas outros estribilhos, outras máximas, não de paz e amor, mas de guerra total, proclamados pelos corifeus do comunismo, como Che Guevara, Mao Tse Tung, Lenine e tantos outros”.
A ocupação provoca assim tensões não apenas entre o governo português e a Gulbenkian, mas também entre esta fundação e a administração da Cidade Universitária parisiense, que considera que as regras da casa devem ser liberalizadas para permitir uma maior participação dos residentes na gestão dos pavilhões, reivindicações que a Fundação em parte recusa. Ainda assim, enquanto em vários pavilhões da Cidade os protestos prosseguem por vários anos (Kévonian & Tronchet 2022), a Casa dos Estudantes Portugueses mantém-se relativamente calma. Por um lado, a Fundação Calouste Gulbenkian continua a escolher “com critério” os residentes, principalmente bolseiros, que devem mais tarde regressar a Portugal. Por outro lado, aos olhos dos jovens exilados – e em particular dos refratários e desertores que chegam aos milhares a França – a casa é vista com desprezo, considerada com uma residência destinada a privilegiados, longe das fábricas e dos bairros de lata onde sobrevivem milhares de trabalhadores portugueses que várias organizações de extrema-esquerda pretendem politizar.
Durante a Revolução dos Cravos, a Casa dos Estudantes Portugueses foi palco de uma sessão de esclarecimento organizada por oficiais do Movimento das Forças Armadas. No entanto, como se vangloria o seu diretor, em 1974-1975 a residência não conhece sobressaltos políticos. Ao longo das décadas, ela torna-se a morada de centenas de estudantes, artistas e investigadores portugueses, não deixando até hoje de organizar e receber eventos culturais e artísticos.
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A fundação do PCP | A fundação do PCP | | |
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Description:A fundação do Partido Comunista Português (PCP) em 1921 destaca-se na história da esquerda europeia. Contrariamente à maioria dos países europeus, o comunismo em Portugal nasceu de uma costela do anarquismo, e não do socialismo. Portanto, a historiografia sobre o PCP tem enfatizado o caráter excecional da sua origem. Tem também sublinhado os “desvios” anarquizantes que caracterizaram o partido nos anos 1920 (e.g. Cunha 2022). Nesta breve nota sobre a sua fundação, não pretendo contestar a particular raiz anarquista do PCP, e sim redimensionar a excecionalidade do caso português, situando-o num quadro comparativo e transnacional. Debruçar-me-ei, nomeadamente, sobre a influência da esquerda espanhola, francesa e italiana e sobre o papel da Internacional Comunista, em Moscovo, na fundação e nos primeiros passos do PCP.
Na maioria dos países europeus, os fundadores dos partidos comunistas provinham das fações mais à esquerda da social-democracia, uma tendência política que formalmente se declarava marxista, mas que, na prática, tinha amiúde abjurado dos elementos mais radicais do marxismo. Nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial de 1914-1918, muitos partidos social-democratas adotaram uma estratégia pacífica e gradualista rumo ao socialismo, lutando por conquistas parciais e procurando ter uma presença institucional nos sistemas políticos liberais da época. No seio da social-democracia, porém, existiam correntes radicais e revolucionárias, que contestavam a deriva reformista das lideranças partidárias e sindicais, sobretudo nos países onde o socialismo era um movimento de massas, como em França, na Itália, Alemanha e Áustria-Hungria. O início da Primeira Guerra Mundial abriu uma fenda nestes partidos, com as suas lideranças a apoiarem o esforço de guerra dos respetivos governos (com algumas exceções, como a Itália ou a Sérvia), traindo, aos olhos das correntes radicais, os princípios internacionalistas do movimento. A guerra levou, nas palavras de Lenine, à falência da Segunda Internacional Socialista, que tinha até então agregado os diferentes partidos socialistas europeus.
A revolução russa de 1917 aprofundou ainda mais esta brecha, com a tomada do poder no antigo império czarista pelos bolcheviques, socialistas intransigentes e inimigos irreconciliáveis do reformismo social-democrata e da sua política de colaboração com o esforço de guerra. O apelo dos bolcheviques à cisão da social-democracia e a fundação da Terceira Internacional em Moscovo, em março de 1919, tiveram um grande impacto, dando origem à criação de dúzias de partidos comunistas por toda a Europa, e para além dela, no início da década de 1920.
Embora o principal alvo de interesse dos bolcheviques fossem as correntes de esquerda da social-democracia, a revolução russa exerceu forte atração sobre outras tradições políticas radicais e oposicionistas: anticolonialistas, nacionalistas, republicanos, e, com efeito, nos anarquistas e sindicalistas revolucionários. Em alguns países europeus (como Espanha e Portugal) e na América Latina, estes constituíam uma tendência maioritária no seio do movimento operário, ao passo que noutros países, como Itália, França ou Estados Unidos da América, formavam minorias importantes. Ali, os anarquistas protagonizaram muitas das grandes lutas operárias no contexto da crise económica e social que se seguiu ao final da guerra. Os anarquistas foram também seduzidos pela vitória bolchevique na Rússia e participaram nos primeiros congressos da Internacional Comunista, em 1920 e 1921. A partir de 1917, sob a influência da revolução russa e das agitações sociais da época, muitos libertários aceitaram conceitos em princípio estranhos à sua ideologia, como a ditadura do proletariado ou a ideia de uma vanguarda revolucionária (Zoffmann 2018: 226-246). O mesmo aconteceu também no chamado movimento sindicalista revolucionário, uma corrente do movimento operário que propugnava a ação direta e que era fortemente influenciado pelo anarquismo. Porém, a assimilação do bolchevismo pelos anarquistas e sindicalistas revolucionários não foi homogénea. Geralmente, os seus principais defensores provinham do setor mais jovem e intransigente do anarquismo, aquele que era menos ideologizado e estava mais ligado às lutas da época, enquanto que a velha guarda do movimento, mais moderada nas suas táticas e com maior bagagem teórica, se mostrava algo cética perante as novas ideias vindas de Moscovo (Zoffmann 2023: 170-177). O surto de agitações operárias em 1918-1920, em Portugal e por toda a Europa, e a esperança de que a revolução russa pudesse espalhar-se para o Ocidente contribuíram para manter o movimento coeso, mas, com o refluxo e a derrota destas lutas no início dos anos 1920, as divisões latentes vieram à tona (Telo 1980: 163-176).
As tensões entre partidários e opositores do bolchevismo acabaram por produzir cisões nas fileiras do anarquismo e do sindicalismo em quase todos os países onde estas ideologias tinham influência significativa. Surgiram frações pro-bolcheviques, que se integraram no movimento comunista, enquanto que um outro setor se manteve leal à velha doutrina libertária. O peso relativo das diferentes agrupações era, porém, variável consoante o país. Vejamos alguns exemplos europeus (sendo certo que na América Latina o processo foi bastante parecido): em Espanha, onde as ideias anarquistas tinham profundo enraizamento social, que remontava às agitações de 1868-1874, a cisão filo-comunista nas fileiras da grande Confederação Nacional do Trabalho foi muito reduzida. Limitou-se a uma centena de militantes da Catalunha, de Valência e de Aragão que, à volta do sindicalista Joaquín Maurín, aderiram em 1924 ao Partido Comunista (Bizcarrondo & Elorza 1999). Em Itália, esta rutura também foi pouco significativa, sendo representada por um pequeno grupo de membros da Unione Sindacale Italiana, ao redor de Nicola Vecchi e do jornal L’Internazionale (Antonioli 1990). Por outro lado, em França, a Confédération Nationale du Travail Unifiée, uma organização sindicalista de massas, acabou em 1922 por orientar-se maioritariamente para o comunismo, graças, em parte, à postura de alguns dos seus dirigentes históricos, como Pierre Monatte ou Alfred Rosmer. Os anarquistas franceses contrários à revolução russa ficaram em posição minoritária. A CGTU forneceu, portanto, uma sólida base sindical ao Partido Comunista Francês, criado em 1920 após uma cisão do Partido Socialista (Amdur 1987, pp. 27–50). Como já foi dito, o caso português é peculiar, porque aqui não só a força dos anarquistas e dos sindicalistas pró-bolcheviques era considerável (assim como em França), mas porque foram mesmo eles que criaram o Partido Comunista Português. Isto aconteceu em março de 1921, após um processo de debate na Federação Maximalista, na Juventude Sindicalista e em outras agrupações de militantes favoráveis à revolução russa. O recém-nascido PCP não conseguiu conquistar a grande organização sindicalista do país, a CGT, mas estabeleceu uma presença importante no seio dela (Madeira 2013: 17-58).
Como podemos ver, a criação do PCP por grupos vindos do anarquismo tem certas particularidades, mas não foi um acontecimento isolado ou excecional. Pelo contrário, fez parte de uma cadeia de cisões que abalaram o anarquismo a nível internacional. Os termos dos debates entre partidários e inimigos de Moscovo foram, aliás, bastante parecidos, respondendo a situações análogas: a derrota do processo revolucionário europeu e o crescente isolamento da Rússia soviética. Não só a criação do PCP foi parte dum processo internacional, como também foi condicionada pela influência direta de Moscovo e dos comunistas dos países vizinhos. Estas cisões foram coordenadas e impulsionadas desde Moscovo, onde muitos dos seus protagonistas estiveram em 1920 e 1921, participando nos congressos da Internacional Comunista e da sua frente sindical, a Internacional Sindical Vermelha (ISV). Os antes mencionados Maurín, Vecchi e Rosmer, por exemplo, estiveram lá no verão de 1921 (Tosstorff 2016: 348-420).
A ISV atribuiu a supervisão da luta pela CGT de Portugal ao espanhol Joaquín Maurín, amigo e colaborador de um dos mais importantes chefes da ISV em Moscovo, o catalão Andreu Nin. Maurín participou do congresso sindical da Covilhã em outubro de 1922, onde as teses pró-bolcheviques foram derrotadas pelos anarquistas. Seguindo as orientações da ISV, um sindicalista asturiano, Jesús Ibáñez, estivera já em Portugal no verão de 1922, onde procurara intervir a favor de Moscovo. Todavia, em momentos de crise, a Internacional Comunista chegou a interferir diretamente nos assuntos portugueses, como aconteceu em 1923 com a visita de Jules Humbert-Droz, a fim de resolver a divisão no seio do PCP entre os grupos de Carlos Rates e de Caetano de Sousa. Os sindicalistas pró-bolcheviques de Espanha contribuíram para a formação dos Núcleos Sindicalistas Revolucionários, que agruparam os apoiantes da ISV no seio da CGTP. Estes núcleos copiavam o modelo de plataformas semelhantes em Espanha, Itália e França. O seu órgão de imprensa, A Internacional, reproduzia conteúdos de jornais similares em Espanha (La Batalla), em França (La Vie Ouvrière) e em Itália (L’Internazionale), e a sua orientação era praticamente idêntica (Tosstorff 2016: 422-608). Na verdade, nenhum destes grupos alinhava com o que mais tarde se tornaria a ortodoxia comunista, mantendo alguns elementos da ideologia anarquista. Todavia, na sua fase formativa, o movimento comunista internacional era ainda bastante heteróclito. Foi apenas após a campanha de “bolchevização” impulsionada em 1924 pelo dirigente da Internacional Comunista Grigori Zinoviev, e, sobretudo, a partir do auge do estalinismo, que o movimento comunista internacional realmente se homogeneizou (Studer 2023: 60-78).
Em conclusão, o caso do nascimento do PCP tem peculiaridades nacionais, mas não é totalmente estranho aos processos que decorriam noutros países, onde todas as grandes organizações anarquistas conheceram cisões. O ecletismo anarquizante do PCP originário não era excecional naquela época. O PCP nunca esteve isolado, e teve relações estreitas com a Internacional Sindical Vermelha de Moscovo graças à mediação dos comunistas espanhóis, sobretudo de personagens provenientes do anarquismo e do sindicalismo, como Maurín ou Ibáñez.
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A vigília da Capela do Rato | A vigília da Capela do Rato | | |
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Description:Ao final da tarde de dia 30 de Dezembro de 1972, por volta das 19h30, uma mulher aproximou-se do microfone colocado junto ao altar da Capela de Nossa Senhora da Bonança, a «Capela do Rato», situada no nº 1-B da Calçada Bento da Rocha Cabral, em Lisboa. Anunciou que se encontrava ali em nome de um grupo de cristãos para «comunicar uma decisão e pôr um problema a toda a comunidade», lendo uma declaração que dava conta de uma vigília de 48 horas, em jejum, como forma de protesto contra a guerra colonial.
O celebrante da missa que acabara de terminar, o padre João Seabra Diniz, disse estar surpreendido com o gesto, mas deixou à consciência de cada um dos presentes a posição a tomar em face do repto lançado por aquela mulher, Maria da Conceição Moita, e pelo pequeno grupo que a acompanhava. Informado mais tarde do que se passava na capela pela qual era responsável, o padre Alberto Neto fez saber que desconhecia que aquela iniciativa iria ocorrer, mas que não se opunha a ela.
No dia seguinte, um domingo, celebraram-se as missas habituais das 11h e das 12h30, em que os oficiantes, os padres António Janela e Armindo Garcia, em lugar de proferirem homilias, leram um texto redigido em conjunto com o padre Alberto Neto, onde afirmavam, entre o mais: «Seja qual for a nossa posição diante deste gesto, ele tem um sentido interpelativo de tal densidade que não o podemos ignorar».
A última expressão parecia fazer eco dos versos da «Cantata da Paz» de Sophia de Mello Breyner («Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar»), entoada numa anterior iniciativa do mesmo grupo de católicos, levada a cabo na Igreja de São Domingos, na passagem de ano de 1968 para 1969, a qual visava igualmente denunciar, através de uma vigília pela paz, a guerra colonial e a atitude complacente da hierarquia da Igreja perante ela. Por vicissitudes várias, com destaque para a intervenção discordante do pároco da igreja, essa jornada não teve a projecção desejada, o que não dissuadiria os seus promotores, desde há muito empenhados na oposição à ditadura, de lançarem novas acções de protesto. Entre eles, destacavam-se os nomes de Luís Moita, antigo sacerdote, que em 1967 se doutorara em Ética na Universidade Lateranense de Roma, do arquitecto Nuno Teotónio Pereira, do advogado e jornalista Francisco de Sousa Tavares, do advogado Vítor Wengorovius, da pedagoga Catalina Pestana e de Bart Reker, padre holandês da Congregação dos Sagrados Corações.
No Verão de 1972, enquanto passava férias no Algarve, Luís Moita tinha amadurecido a ideia de realizar uma nova vigília contra a guerra. Logo que chegou a Lisboa, partilhou o projecto com Nuno Teotónio Pereira, seu amigo e companheiro de muitas lutas, e – segundo depoimento do próprio Moita – com Francisco Cordovil, estudante de Economia que, no decurso da vigília, viria a ser responsável pela articulação com as Brigadas Revolucionárias (BR) e com os grupos de católicos que, às portas de várias igrejas de Lisboa, distribuiriam panfletos sobre os debates em curso na Capela do Rato, também conhecida por «Capela da JEC» [Juventude Escolar Católica], exortando a que aí comparecessem para uma jornada pela paz – a qual, naquele contexto, era naturalmente um gesto de oposição ao regime.
Enquanto isso, no interior do templo, aprovavam-se moções que condenavam a cumplicidade dos bispos portugueses «na política de exploração colonial praticada pelo governo fascista português», prosseguindo os debates sob o lema «A Paz é Possível», que o Papa Paulo VI anunciara como consigna das celebrações do Dia Mundial da Paz de 1973. Os participantes, cujo número máximo terá oscilado entre 200 e 300 pessoas, organizaram-se em assembleias, cujos coordenadores foram escolhidos no próprio local, fosse para discutirem a presença portuguesa em África (com destaque para o papel da Igreja no colonialismo), fosse para abordarem especificamente o tema da guerra ultramarina. Uma segunda moção, aprovada na tarde de dia 31 de Dezembro, considerava, entre o mais, «justa a luta dos povos das colónias». Horas depois, chegaria ao local uma mensagem de solidariedade enviada por um grupo de católicos do Porto, que tinha no advogado Mário Brochado Coelho uma das suas principais figuras.
Cerca das 19 horas, as forças policiais começaram a concentrar-se em redor da Capela e, pelas 20h30, já se encontravam lá dez carrinhas com polícia de choque e cães, além de mais viaturas de outras forças de segurança. Com o trânsito controlado e os acessos à igreja cortados, seguiu-se um breve compasso de espera, após o que um graduado da PSP, o capitão Américo Maltez Soares, entrou no templo e, por volta das 20h45, deu aos presentes um prazo de dez minutos para que abandonassem o local. Estes não só não acataram a ordem como começaram a entoar em coro «Perdoai-lhes, Senhor, que eles não sabem o que fazem», o que levou diversos agentes da PSP a entrar na capela e a arrastar pela força os que resistiram. Noventa e uma pessoas foram colocadas em duas carrinhas, que as conduziram à esquadra situada no antigo Convento das Trinas do Rato, no largo com o mesmo nome. Depois de identificadas, a esmagadora maioria delas foi posta em liberdade, mas catorze – a saber, Nuno Teotónio Pereira, José Luís Galamba de Oliveira, Maria Benedita Galamba de Oliveira, Francisco Pereira de Moura, Homero Cardoso, Luís Moita, Manuel Coelho Carvalho, João Cruz Morais Camacho, João da Fonseca Quá, Francisco Louçã, Hermenegildo José Carmo Lavrador, Jorge Wemans, João Pimentel e Miguel Teotónio Pereira – foram levadas para as instalações do Governo Civil de Lisboa e, já de madrugada, para a prisão de Caxias, onde permaneceram detidas cerca de quinze dias à guarda da Direcção-Geral de Segurança, a sucessora da PIDE.
O episódio, que talvez pudesse ter terminado aqui, adquiriu repercussão nacional e internacional, convertendo-se num «caso», em larga medida devido à reacção das autoridades. No dia seguinte, 1 de Janeiro, os padres António Janela e Armindo Garcia, concertados com o padre Alberto Neto e com D. António Ribeiro, desrespeitaram a ordem policial que mandara encerrar a capela e aí celebraram missa, após o que foram detidos e levados para a sede da polícia política, na Rua António Maria Cardoso. Ali acorreu, num gesto inédito, o Patriarca de Lisboa, o qual afirmou que só abandonaria o local acompanhado dos dois sacerdotes – que foram de facto libertados ao fim de pouco tempo. O governo de Marcello Caetano, que abordou o tema na suas «Conversas em Família» transmitidas pela RTP, teve outro gesto de força – «exibição de força, demonstração de fraqueza», anotaria Vergílio Ferreira no seu diário – e demitiu os doze funcionários públicos que tinham sido detidos na Capela do Rato, acto que foi impugnado junto do Supremo Tribunal Administrativo pelos advogados Francisco Salgado Zenha, Francisco de Sousa Tavares e Jorge Sampaio, e que suscitou diversas acções de solidariedade com os demitidos, à cabeça dos quais se encontrava Francisco Pereira de Moura, professor do Instituto Superior de Economia, antigo procurador à Câmara Corporativa e líder da Comissão Democrática Eleitoral.
A 10 de Janeiro, o Patriarcado de Lisboa emitiu uma nota sobre os acontecimentos, que, apesar de considerada demasiado ambígua e tímida por vários dos protagonistas da vigília, representou uma tomada de posição notável da Igreja sobre um protesto contra a ditadura. Dias depois, em 27 de Fevereiro, o caso da Capela do Rato motivaria uma acesa troca de palavras entre o deputado da «ala liberal» Miller Guerra e o «ultra» Cazal-Ribeiro, levando a que aquele se demitisse da Assembleia Nacional, facto que, a juntar-se à demissão de Francisco Sá Carneiro, constituiu um golpe profundo nas esperanças de renovação do regime a partir de dentro, acabando a seu modo por contribuir, ainda que remotamente, para a eclosão do 25 de Abril de 1974.
O contexto do protesto
A vigília pela paz da Capela do Rato inscreve-se num movimento de dissidência de alguns sectores católicos perante o Estado Novo, que remontava, pelo menos, aos tempos da campanha eleitoral de Humberto Delgado, em 1958, e ao pro memoria do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, e que se prolongou na década de 1960 através de diversos episódios, como a presença de católicos na revolta da Sé, no golpe de Beja e na crise académica de 1962, na «rebelião» no Seminário dos Olivais (em 1967-68), no surgimento de publicações como Direito à Informação, O Tempo e o Modo, Concilium, Cadernos Necessários, África Livre, Cadernos sobre a Guerra Colonial. Colonialismo e Lutas de Libertação, A Palavra e o Tempo, Cadernos de Reflexão da JUC, do Boletim Anticolonial (BAC) e dos Cadernos GEDOC, nas actividades do Movimento de Renovação da Arte Religiosa, da editora Moraes, do Círculo do Humanismo Cristão, do Centro Nacional de Cultura e do Centro Cultural de Cinema, ou na criação das cooperativas culturais Pragma e Confronto, além de cooperativas de consumo, como a LISCOOP, de Manuel Bidarra.
Os ventos de renovação eclesial trazidos pelo Concílio Ecuménico do Vaticano II, bem como a acção de Paulo VI, que em 1964 visitou Bombaim por ocasião do Congresso Eucarístico aí realizado, a par do prosseguimento, sem fim à vista, da guerra colonial em África, e da explosão contestatária em várias partes do mundo, fosse a favor dos direitos dos negros americanos, fosse contra a guerra no Vietname, fosse do Maio de 68 em Paris, reforçaram numa minoria de católicos o sentimento de que era necessário abandonar o modelo inconsequente do oposicionismo do «stencil e do policopiador», feito à base de papéis e de abaixo-assinados, e passar a formas mais radicais e directas de «acção». Alguns sacerdotes, de resto, já haviam trilhado caminhos de maior confronto com as autoridades, com destaque para os párocos de Belém e da Lixa (Felicidade Alves e Mário de Oliveira, respectivamente), pelo que, no seio do oposicionismo católico, um pequeno núcleo mais activo e ousado decidiu passar aos actos, visíveis e projectáveis para a opinião pública no seu todo, primeiro com a vigília de São Domingos, depois com a da Capela do Rato, as quais procuraram ser, antes de mais, jornadas que, pela sua espectacularidade e impacto, sinalizassem a existência de crentes descontentes com a natureza ditatorial do regime e com a guerra que este empreendia, bem como com a atitude complacente da hierarquia da Igreja perante aquele estado de coisas.
O protesto do Rato ocorre, pois, num momento de desilusão perante as promessas liberalizadoras trazidas por Marcello Caetano, e surge também no contexto da subida de António Ribeiro ao Patriarcado de Lisboa. Havia, assim, o efeito de uma dupla renovação: uma, na esfera política, que se afigurava bloqueada e gasta, e que começara até, como sempre sucede na agonia e no estertor das ditaduras, a dar sinais de endurecimento e de clausura; outra, na esfera eclesial, que ainda não se mostrava perfeitamente nítida na direcção que haveria de tomar, já que D. António, tendo um estilo claramente diferente de Gonçalves Cerejeira, seu antecessor, parecia preferir a prudência do silêncio e a ambiguidade dos gestos, em que tanto condenava a invasão de um templo pelas forças policiais como acabava por, em finais de 1973, afastar o padre Alberto Neto das funções de responsável pela Capela da JEC, nomeando-o coadjutor da paróquia de S. João de Brito.
Se estas são as coordenadas em que se processou a vigília, um dos seus traços mais originais – e controversos – foi ter-se realizado em articulação com um dos movimentos de luta armada que à época despontavam, as Brigadas Revolucionárias, de Carlos Antunes e Isabel do Carmo, naquilo que foi, de resto, um caminho de aproximação à «acção directa» que, antes ou depois, seria trilhado por algumas vanguardas contestatárias católicas da Europa e da América Latina.
Cinquenta anos volvidos, ainda hoje é difícil determinar com precisão o grau de envolvimento e de cooperação entre os católicos contestatários portugueses e as BR, sendo ele descrito de formas muito distintas em função dos vários protagonistas – mais acentuado numas situações, menos visível noutras. Parece exagerado dizer-se, como o pretenderam alguns dirigentes das Brigadas, que a vigília foi uma acção da sua autoria, por si planeada e organizada, do princípio ao fim. Parece mais seguro concluir que elas desempenharam um papel instrumental, mas decisivo, nalgumas dimensões do protesto, nomeadamente na distribuição de panfletos e de propaganda por vários pontos de Lisboa, feita através da deflagração de explosivos de baixa potência que, ainda assim, causaram ferimentos graves em duas crianças e provocaram natural comoção e alarme social. O regime e os seus adeptos mais fervorosos não deixaram de aproveitar esta cumplicidade revolucionária para questionar a pureza e o pacifismo dos propósitos da jornada do Rato, verberada por publicistas que falaram de «terrorismo de capela», ou por então jovens jornalistas, como Alberto João Jardim, que atacaram aquilo que era, em seu entender, uma contradição entre as palavras e os actos: entre os apelos à paz feitos na capela e o recurso à violência nas ruas de Lisboa.
A ligação de alguns membros do núcleo organizador da vigília às BR – com destaque para Nuno Teotónio Pereira e para Luís e Maria da Conceição Moita – prosseguiu nos primeiros meses de 1973, e redundaria na prisão dos católicos em finais do ano e sua sujeição a brutais torturas e sevícias. A relativa tolerância do momento da vigília, quando que as detenções não duraram mais de quinze dias, mudou radicalmente e, no dia 25 de Abril de 1974, Teotónio Pereira e os irmãos Moita encontravam-se presos em Caxias, aguardando longas e duras penas de prisão.
Contexto internacional
O «caso da Capela do Rato» teve uma assinalável repercussão externa, evidenciada, por um lado, na imprensa de outros países e, por outro, na correspondência diplomática, seja das representações estrangeiras em Lisboa ou das portuguesas no estrangeiro. No dia 4 de Janeiro de 1973, no diário Komsomolskaia Pravda, órgão oficial da Organização da Juventude Soviética, podia ler-se uma breve notícia:
«Agência TASS. Paris. Na noite do primeiro de Janeiro, a polícia de Lisboa deteve 12 participantes de uma manifestação religiosa pacífica, que se realizou num dos templos da capital de Portugal sob a palavra de ordem "Serviço em nome da paz". Transmite de Lisboa a agência France Press. Os manifestantes tencionavam realizar uma discussão pública sobre a guerra que, durante muitos anos, o militarismo português conduz contra a população das suas colónias africanas.»
Três dias depois, o Pravda, órgão do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética, noticiava:
«Cerca de 50 católicos progressistas portugueses, reunidos num dos templos de Lisboa, declararam uma greve de fome em sinal de protesto contra a guerra colonial realizada por Portugal em África. A eles juntaram-se mais cerca de cem pessoas. Os grevistas lançaram um apelo às forças progressistas do país para criarem um comité nacional da paz».
Se a censura à imprensa acabava por abrir um intransponível fosso entre a verdade nacional (para usar uma expressão de Gustavo Cordeiro Ramos) e a verdade real, em muitos casos as distorções não se devem exclusivamente à falta de liberdade de imprensa. O Pravda falava de um apelo à criação de um comité nacional da paz, apelo que nunca foi feito. De facto, se olharmos para o que diziam os jornais estrangeiros, encontraremos muitas imprecisões, algumas delas indesculpáveis: um artigo do Frankfurter Rundschau, que a Embaixada de Portugal em Bona fez chegar a Lisboa em 9 de Fevereiro de 1973, informava da existência de uma vigília na Igreja de São Domingos (sic), interrompida por uma «acção policial espectacular» que levou à detenção de duzentas pessoas, entre as quais o «arquitecto António Pereira» (sic). A notícia tinha toques romanescos, veiculados também pelo The Guardian, aludindo a «homens robustos vestidos à paisana [que] agarraram energicamente uma mulher com dois filhos e tiraram-na para fora da Igreja de São Domingos de Lisboa e metendo-a num carro preto». Após esta cena, retirada de uma novela de espionagem, o jornal alemão dizia que «a polícia do Estado se sente ameaçada como há muito já não acontecia », sem no entanto indicar em que se baseava para extrair tão retumbante conclusão. Possivelmente mais próxima da realidade estava outra análise do Frankfurter Rundschau: «parece que a correlação de forças na clandestinidade portuguesa mudou e, no lugar dos anarquistas e comunistas, tornaram-se activos principalmente os católicos».
Um artigo publicado no Le Soir em 15 de Janeiro de 1971, da autoria de Colette Braeckman, enviada de Bruxelas a Lisboa, não falava de uma liderança católica da oposição, mas da possível aliança entre cristãos e outros dissidentes. Para que se tenha uma ideia da dimensão das repercussões internacionais deste caso – e da importância das redes de solidariedade em funcionamento –, o nº 29 do boletim da Portuguese Canadian Democratic Association (Março de 1973), de Toronto, trazia uma ampla notícia sobre os acontecimentos, chegando a publicar os principais documentos relativos ao caso. Segundo aquele boletim, vários católicos estavam a ser encaminhados ao gabinete do secretário do Ministro do Interior, onde, perante um juiz e um militar (o capitão Cascais), eram confrontados com um questionário elaborado pelo próprio Ministro. Muito longe dali, a embaixada portuguesa em Brasília fazia chegar a Lisboa panfletos distribuídos nos círculos portugueses no Recife, alguns dos quais se destacavam por um radicalismo que parecia contestar a própria oportunidade da vigília, dizendo: «a festa do Natal é aproveitada pela burguesia para fazer propaganda da paz». Nos Estados Unidos, registam-se manifestações contra o colonialismo português em Boston, em Julho de 1973. Já antes, em 22 de Janeiro desse ano, a Embaixada em Washington informa as Necessidades que pedira ao Departamento de Estado um reforço de segurança, não apenas nas suas instalações, mas também na missão de Portugal, nos consulados, na Casa de Portugal e nos escritórios da TAP em Nova Iorque. O Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros guarda diversos documentos – e até objectos, como autocolantes ou crachás – de acções de contestação à política de Caetano, nomeadamente pelo boicote à aquisição de produtos portugueses. Sensivelmente por essa altura, o Comitato italiano di sostegno alla lotta Portoghese contro la dittatura distribui em Milão, à porta do Teatro Lírico, onde iria actuar Amália Rodrigues, panfletos dizendo que a cantora era «objectivamente cúmplice do regime fascista português». O boletim informativo desse comité, com o título Osare lottare, osare vincere, noticiará, no seu número de Março, a prisão em Lisboa, no início do ano, de trinta católicos. Na Haia, distribuem-se cartazes das Brigadas Revolucionárias.
Se não é possível aquilatar da intensidade da acção dos diversos grupos de solidariedade com os oposicionistas que por essa altura florescem por toda a parte, o seu número é por si só revelador: a título de exemplo, podem citar-se a Comissão de Apoio aos Prisioneiros Políticos (Bélgica), a Comissão de Auxílio aos Presos Políticos (Bélgica), a Comissão de Auxílio aos Prisioneiros Políticos Portugueses (Suécia), o Comité Francês para a Libertação dos Presos e Exilados Políticos em Portugal e Espanha, o Comité Italiano para a Restauração das Liberdades Democráticas em Portugal, o Comité Pró-Amnistia dos Presos e Exilados Políticos de Portugal e Espanha (Venezuela), o Comité Uruguaio Pró-Amnistia dos Presos e Exilados Políticos de Portugal e Espanha, o Comité Venezuelano em Prol da Democracia e da Liberdade em Portugal, a Conferência Canadiana para a Amnistia aos Presos e Exilados Políticos Portugueses, o Conselho Ibérico-Americano para a Libertação dos Presos Portugueses e Espanhóis, a par de iniciativas concretas como a Conferência sobre a Tortura (Paris, Abril de 1971).
A capacidade para estabelecer contactos com o exterior não se cingia já às organizações tradicionais e mais estruturadas; pequenos grupos de orientação mais radicalizada conseguem estabelecer pontes e criar redes na Europa. A organização O Grito do Povo, por exemplo, impulsionada por Pedro Baptista e por José Pacheco Pereira, cria laços com a direcção de O Comunista, de Paris; igualmente no Porto, os núcleos gerados em torno da cooperativa Confronto, da editora Afrontamento e dos Cadernos Necessários – que Cunhal atacará, chamando-lhes «uns tantos "Cadernos" teorizantes» –, estabelecem contactos com a esquerda radical não maoísta, principalmente italiana, nomeadamente com os grupos Il Manifesto, Avanguardia Operaia e Lotta Continua, que mostravam um interesse crescente pela situação portuguesa. De Paris, João Freire viaja até Itália, em 1969 e 1970, na esteira de Manuel Villaverde Cabral, e aí estabelece contactos de resto, pouco frutíferos com membros dos grupos Potere Operaio e Lotta Continua, indo também à Bélgica, entre outros lugares, apoiar os mineiros grevistas do Limbourg. Segundo João Freire, com o apoio de gente de Lovaina, Fernando Belo publicava os Cadernos Necessários. Muito do património ideológico da extrema-esquerda é trazido por portugueses vindos do estrangeiro: Francisco Sardo surgiu com o trotsquismo da Liga Comunista Revolucionária (de Alain Krivine e Daniel Bensaïd); Torcato Sepúlveda e Pinho Monteiro enviam do exílio o internacional-situacionismo; o espontaneísmo da forma maoísta do MRPP é teorizado «para português» por Amadeu Lopes Sabino e Sebastião Lima Rego. É também à luz deste estado de coisas na cena internacional que devem ser situadas as notícias relativas ao caso da Capela do Rato – nem sempre veiculadas pela imprensa.
Como é evidente, aquelas notícias reflectiam a linha ideológica dos periódicos que as divulgavam. O órgão oficial do Partido Comunista Italiano, L‘Unitá, fala de uma «brutale irruzione in una chiesa di Lisbona», adiantando que tinham sido detidas oitenta pessoas, entre as quais Pereira de Moura, Teotónio Pereira, Luís Moita e o jornalista da Flama Homero Cardoso. Para este jornal, as bombas que explodiram em Lisboa eram «di limitata potenza», ideia partilhada pelo Avanti!, que falava em engenhos de «potenza relativamente ridotta», expressão também usada pelo Avvenire. O Rhodesia Herald tinha, como é natural, uma opinião diferente: depois de intitular que Lisboa foi varrida por uma nova vaga de explosões («Lisbon hit by new outbreak of bombings»), refere os ferimentos nas crianças e diz que os engenhos eram potentes («crudely made but powerful devices»), atribuindo a autoria dos atentados à Acção Revolucionária Armada (ARA). Os jornais sul-africanos tinham também uma visão negativa, intitulando as notícias de forma carregada: «Bomb blasts rock Lisbon» (The Star, de 2-I-1973) ou «Blasts rock Lisbon» (Pretoria News, de 2-I-1973). Mais tarde, os jornais da Rodésia informariam que a polícia portuguesa se encontrava no encalço de dois homens que se faziam transportar num carro branco, tendo as investigações abrangido, inclusivamente, a região do Algarve. «Lisbon hunt for anti-war bombers», noticiava o Rhodesia Herald.
Saliente-se, em todo o caso, que as publicações estrangeiras, mesmo sem os constrangimentos da censura, acabaram por destacar exactamente os mesmos aspectos dos jornais portugueses, dando maior realce às explosões – e aos ferimentos em crianças – do que à vigília pela paz. Tal não significa dizer que o encontro do Rato e a repressão que sobre ele se abateu foram esquecidos pela imprensa mundial. As representações diplomáticas portuguesas apressaram-se a fazer chegar a Lisboa essas notícias, veiculadas pelos órgãos de comunicação social estrangeiros. O problema é que alguns deles eram próximos da Igreja, como La Chiesa nel Mondo, cujo nº 7, de Fevereiro de 1973, «renova os ataques contra Portugal», para usar as palavras do embaixador Eduardo Brazão, em aerograma enviado para Lisboa a 13 de Fevereiro daquele ano. Aquela publicação limitava-se, em boa verdade, a transcrever a Nota do Patriarcado, extraída de La Croix, e uma carta-aberta da «Comunidade do Rato», de 21 de Janeiro. Aliás, o artigo do La Croix já havia sido remetido de França, pela embaixada em Paris. No texto que acompanha a Nota do Patriarcado, o La Croix refere que, na jornada pela paz no Rato, participaram «muitas centenas de pessoas», que cerca de dez viaturas da polícia chegaram por volta das 20h30 do dia 31 de Dezembro, tendo preso aproximadamente vinte pessoas.
Mais incisiva era a apreciação dos semanários católicos The Tablet e The Catholic Herald. Os textos são de tal forma perturbadores que o Ministério dos Estrangeiros redige uma súmula, numa extensa nota que envia à Direcção-Geral de Segurança. O Tablet, na sua edição de 20 de Janeiro, veiculava informações fornecidas pelo Conselho Mundial das Igrejas, segundo as quais o Patriarca de Lisboa, procurado por alguns membros do grupo que organizou a jornada do Rato, teria dito que ela não constituía um acto cristão, pelo que não reprovava qualquer possível atitude repressiva da polícia. A notícia de The Tablet descreve com bastante rigor e pormenor o que se passara no Rato, apontando para a concentração de cerca de trezentas pessoas, e não omitindo sequer a prisão dos padres Janela e Garcia, além dos nomes, recorrentemente citados, de Teotónio Pereira e de Pereira de Moura. No telegrama que envia para Lisboa, o embaixador António de Faria termina expressivamente: «como era de esperar, relato fornecido Tablet “por cortesia Conselho Mundial Igrejas” e aproveitado por aquele semanário omite qualquer referência explosões bombas e vítimas que causaram».
Mais tarde – bastante mais tarde –, a Esprit fará uma resenha muito completa dos acontecimentos, desde os incidentes do Rato às prisões de finais de 1973, numa nota assinada «A. F.» [Ariane Favre], com o título «Les cris du peuple».
Da África do Sul, o Rand Daily Mail fazia uma análise política do evento, dizendo que a detenção dos contestatários poderia significar um aumento de tensão («degree of nervousness») no Governo por causa das explosões ocorridas em Lisboa e da proximidade das eleições. Já The Rhodesia Herald, enviado pelo consulado-geral de Portugal em Salisbúria, limitava-se a dar notícia em breves linhas, acrescentando, todavia, que informações não confirmadas davam conta da existência de dois sacerdotes entre os detidos. Para esse periódico, à jornada em prol da paz teriam comparecido cerca de duzentos dos «chamados católicos progressistas». As Necessidades transmitiam muitas destas notícias ao Ministério do Ultramar e à Direcção-Geral de Segurança.
A vigília pela paz, como se vê, não passou despercebida nos meios de informação internacionais. Em todo o caso, foi dado maior destaque à questão dos ferimentos em crianças provocados pelos rebentamentos de explosivos na capital portuguesa. Em alguns casos, os títulos são elucidativos: «Bombas ferem três crianças em Lisboa» (Diário de Brasília, de 3-1-1973); «Bombas ferem crianças em Lisboa» (Folha de S. Paulo, de 2-1-1973); «Drei Kinder verletzt» (General Anzeiger, de 2-1-1973); «Kinder durch Bomben verletzt» (Frankfurter Rundschau, de 2-1-1973); «Sette bombe a Lisbona. Feriti tre ragazzi» (La Stampa, de 2-1-1973); «Bomb blasts hit Lisbon, three hurt» (Evening Press, de 1-1-1973); «2 injured in Lisbon blasts» (Evening Press, de 2-1-1973); «Children hurt by Lisbon bomb» (Irish Times, de 1-1-1973); «Children hit by bomb blast» (Daily Mirror, de 1-1-1973); «Children injured in bomb blast» (Liverpool Daily Post, de 1-1-1973). Mesmo os periódicos que não colocavam os ferimentos nas crianças nos títulos davam grande destaque a esse facto na respectiva notícia, como sucede com os venezuelanos El Universal e Últimas Noticias, os italianos L’Avvenire, Il Popolo, Notte, ou Paese Sera, o francês Le Figaro, o brasileiro Folha da Tarde, os ingleses The Times, The Daily Telegraph e Western Mail. As duas vagas bombistas seriam objecto de atenção por vários órgãos de comunicação social estrangeiros, como os italianos Corriere della Sera, Il Secolo d’Italia, Il Globo, os sul-americanos El Universo ou Jornal de Brasília e até o argelino El Moujahid. Por seu turno, o correspondente em Lisboa do periódico espanhol ABC, José Salas y Guirior, utiliza um estilo original para descrever o incidente, ainda que haja alguns lapsos na notícia que transmite a Madrid. «Como siempre, la Policía actuó con rapidez. Una vez más se comprobó que los autores que depositaron los artefactos furtivamente en lugares tan propicios como papeleras, cajas de correo y sitios de basuras, fueron jóvenes bien vestidos y de aspecto acomodado», escreveu.
Depois, há jornais que procuram fazer o enquadramento político das acções bombistas, mas sem grande rigor. Assim, por exemplo, The Daily Telegraph estabelece uma ligação entre o PCP e as Brigadas Revolucionárias, quando, na verdade, esses grupos não só não tinham quaisquer laços como até rivalizavam pela hegemonia do terrorismo doméstico. A confusão era tão grande que, em Dar-es-Salam, um porta-voz da FRELIMO se vê na contingência de desmentir rumores de envolvimento daquela organização nas explosões de Lisboa, imputando-as à ARA (ligada ao PCP) ou às BR. Por seu turno, The Rhodesia Herald, como se viu, atribui erroneamente a autoria dos atentados à ARA. Já Die Welt pretende ver – também erroneamente – as explosões como um «prelúdio das eleições parlamentares». O título do artigo de Die Welt é ilustrativo: «Portugal: Bomben zum Auftakt der Wahlen». Este jornal tenta, aliás, estabelecer um nexo causal entre as eleições francesas e as explosões, aludindo a um suposto apoio do Partido Comunista Francês à acção bombista ocorrida em Lisboa. Outro periódico alemão, o Frankfurter Allgemeine Zeitung, numa extensa notícia do seu correspondente em Madrid, que tratava quer da acção policial na Capela do Rato, quer da explosão de bombas em Lisboa, dizia que a detenção de Pereira de Moura tinha um significado especial para a oposição da CDE no próximo acto eleitoral. Le Monde dizia que fora detido «Pereira Moura, professor de economia de renome internacional, católico de esquerda, e um dos dirigentes mais estimados da oposição democrática ao governo de M. Caetano». Não era essa, sublinhe-se, a opinião de alguns sectores mais radicais da oposição; por essa altura, nas páginas do jornal A Voz do Desertor, Pereira de Moura será apelidado de «neo-colonialista notório», por ter sido candidato da CDE nas eleições de 1969 – o que constitui uma manifesta injustiça, dada a sua presença, ainda que discreta, na Capela do Rato, e as consequências que esse gesto teria para a sua carreira académica.
O texto em que se procede a uma tentativa mais elaborada de análise do caso, situando-o num contexto internacional, pertence provavelmente a Santana Mota, correspondente de O Estado de S. Paulo em Lisboa. Com o título «A paz e a política», o artigo, saído em 14 de Janeiro, é muito parcial, mas vale a pena ser transcrito pelo comentário que faz:
«Os chamados católicos progressistas insistem, por toda a parte, em criar dificuldades às relações da Igreja com o Estado.
Portugal não podia fugir à regra. A concentração de oito dezenas de fiéis católicos numa pequena igreja de Lisboa com o fim de praticarem jejum durante 48 horas em prol da paz, e mais particularmente contra a “guerra colonial”, é daquelas manifestações que não podem deixar de causar atrito entre os dois poderes.
O Estado, se não interfere, permite que o exemplo frutifique e que a subversão se utilize de um bom disfarce para alcançar os seus fins.
A Igreja, por seu turno, inibida de condenar um ato que aparentemente corresponde aos propósitos do próprio Papa, também não pode deixar de verberar a interferência da política nos seus domínios particulares.
É verdade que os fiéis concentrados na tal igreja com “tão humano e religioso propósito” tiveram a infeliz tática de se deixar citar como exemplo pelos panfletos espalhados na cidade por meio das explosões dos engenhos terroristas que deflagraram no último dia do ano findo em vários pontos de Lisboa.
Uma tão estranha solidariedade e afinidade não podia deixar de ser suspeita, quer à Igreja quer aos poderes de segurança civil. Mas se aos primeiros era fácil intervir sem qualquer contemplação pelos propósitos ocultos ou manifestos de tal “jejum”, já o mesmo não acontecia com a Igreja.
De qualquer forma os aludidos fiéis haviam-se recolhido a um pequeno templo católico para implorar a Deus a paz que o pontífice aconselhara por tema de súplica universal. Censurá-los a Igreja por isso seria mais que um contra-senso, seria uma heresia.
Assim, diante de caso tão intrincado, as autoridades religiosas e as autoridades civis decidiram solucionar o problema sem levantar maiores atritos entre ambos.»
Além do carácter inusitado do protesto, e do facto de o mesmo decorrer no interior de uma capela da Igreja, considerada um dos esteios do regime, a sua coincidência temporal com a revelação dos massacres de Wiriyamu, feita pelo padre Adrian Hastings, um sacerdote católico, demonstrava a existência de graves fissuras quer no catolicismo português, quer na esfera eclesial como um todo, patentes na acção de Paulo VI, que atrás se referiu.
Os «contestatários do Rato» visavam, acima de tudo, denunciar a guerra colonial e a cumplicidade da Igreja no esforço bélico, não tendo propriamente um programa político ou um modelo de sociedade alternativo, partilhado por todos. Depoimentos prestados por alguns dos líderes da jornada, anos depois, permitem sustentar que, ao menos para alguns deles, como Nuno Teotónio Pereira, a Tanzânia de Nyerere, com a sua ideia de «socialismo africano» (Ujamaa), recolhia apreço, admiração até, mesmo que não fosse considerada um modelo transponível para a realidade portuguesa. De qualquer modo, muitos dos participantes na jornada – gente da elite de Lisboa, altamente escolarizada – mostravam indisfarçável simpatia pela causa terceiro-mundista e pela busca de alternativas aos dois grandes blocos da Guerra Fria, fosse no quadro dos «não-alinhados», fosse através de caminhos próprios.
Há notícia de conexões, mesmo que incipientes, a grupos estrangeiros, como aquele que Joaquín Ruiz Giménez reunira em torno dos Cuadernos para El Diálogo. No entanto, em termos comparativos, o protesto do Rato ficou a larga distância fosse dos sit-ins que então se realizavam nas universidades americanas, fosse das sentadas que, nas igrejas de Espanha, sobretudo do País Basco, se rebelavam contra a repressão franquista.
Na vigília do Rato conflui também uma «internacional de referências» composta por muitos acontecimentos e figuras, desde Che Guevara a Martin Luther King, passando por Dom Hélder Câmara, pela «pedagogia do oprimido» de Paulo Freire, pelos questionamentos eclesiais e políticos da Igreja pós-conciliar. Ao mesmo tempo, e como é evidente, o contacto com redes de emigração clandestina, a experiência dos desertores, as organizações destes em vários países da Europa, o eterno fascínio por Paris e as viagens ao estrangeiro, por motivos pessoais e profissionais, criaram em muitos dos participantes na vigília sentimentos cosmopolitas de pertença a um mundo mais vasto e a noção – em parte libertadora, em parte opressora – de que Portugal se afastava cada vez mais desse mundo, como o comprovavam, de resto, as sucessivas derrotas que o país averbava nas Nações Unidas.
Para esse «internacionalismo» contribuiu também a própria estrutura transnacional da Igreja, o universalismo da sua mensagem e, a par dele, a circulação de pessoas, informações e ideias que Roma propiciava. Um dos organizadores do protesto, Luís Moita, estudara na Cidade Eterna, não sendo aliás caso único. A sua irmã, Maria da Conceição Moita, estivera em Paris com amigos, assistira lá a um filme sobre Luther King e, quando tentou projectá-lo na Igreja de Santa Isabel, foi proibida pela PIDE, facto que recordou como fulcral na sua radicalização. Nuno Teotónio Pereira, por seu turno, mantinha desde há muito numerosos contactos internacionais, tendo inclusive estado em Cuba. Em suma: não é exagero dizer-se que, sem ter procurado mimetizar experiências estrangeiras, desde logo pela disparidade de meios e de possibilidades de actuação, a vigília do Rato teve-as presentes, talvez como modelo inspirador, ainda que em termos algo difusos e naturalmente distantes.
Um balanço possível
Cinquenta anos depois, é possível dizer-se que, seja pelo tempo, seja pelo modo, a vigília do Rato constituiu o gesto de maior impacto público da oposição católica ao Estado Novo, mesmo não tendo a relevância de outros episódios, como o protagonizado pelo bispo do Porto. Levada a cabo por um pequeno grupo de meia-dúzia de católicos (Nuno Teotónio Pereira, Luís e Maria da Conceição Moita, Francisco e João Cordovil, António Matos Ferreira e José Galamba de Oliveira), com apoio das Brigadas Revolucionárias e dos meios estudantis, ela foi capaz de mobilizar outros segmentos da população, inclusive não-crentes, e beneficiou muito da peculiar conjuntura política e social do crepúsculo do marcelismo.
Não tendo tido sequência nem dado azo a protestos posteriores – ao contrário, por exemplo, das sucessivas ondas de «sentadas» nas igrejas que assolaram a Espanha franquista –, a vigília da Capela do Rato constituiu acima de tudo um gesto simbólico, como de resto era propósito dos seus organizadores. Esse simbolismo viria a revelar-se decisivo para a imagem da Igreja portuguesa no pós-25 de Abril, permitindo-lhe apresentar-se com algumas credenciais democráticas por ocasião da Revolução: sintomaticamente, Teotónio Pereira tomou a palavra na manifestação do 1º de Maio de 1974 em nome dos «católicos progressistas». De maneira talvez paradoxal, os católicos do Rato prestaram um involuntário serviço à instituição que criticavam; do mesmo passo, também contribuíram para questionar de maneira mais vasta a guerra colonial e, sem dúvida, para o paulatino desgaste do regime que a prosseguia. Efémera na duração e limitada no alcance, protagonizada por um número ínfimo de contestatários ousados e corajosos (as «minorias abraâmicas» enaltecidas por D. Hélder Câmara), a vigília da Capela do Rato alcançou objectivos muito superiores aos meios de que dispunha, em larga medida por culpa da reacção excessiva das autoridades. Sem receio de exagero, pode dizer-se que se saldou num incontestável triunfo, mesmo que na altura poucos se tenham apercebido disso, a começar pelos seus organizadores. É essa a singular vantagem do tempo e da perspectiva da História.
Nota: a primeira parte deste texto foi publicada na revista Visão/História, nº 74, 2023. [show more]
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Abolição da pena de morte | Abolição da pena de morte | | |
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Description:A pena de morte, como punição administrada pelo Estado, com base na lei, foi uma prática comum ao longo da História humana, tanto no Ocidente como noutras partes do mundo. Como prática violenta, foi sendo questionada de forma casuística ao longo do tempo. Na verdade, até ao séc. XVIII – altura em que a sua justificação prática e jurídica foi posta em causa nalguns pontos da Europa Ocidental – era uma norma (de jure ou de facto) que decorria do direito de regulação social atribuído aos poderes instituídos.
Na Europa, foi executada com algum recato até aos finais da Idade Média, altura em que passou a ser um instrumento de poder fulcral do Estado Moderno, apostado que estava este em afirmar o monopólio da violência legítima, impondo a pena de morte na base do aparato jurídico e penal que advinha da autoridade e do poder centralizado e absoluto – do Rei, da Igreja, ou da República. De meados até finais do séc. XIX, em vários países do Ocidente, a pena de morte deixou de ser aplicada a crimes políticos, tendo sido restringida ao domínio comum, com a finalidade de dissuadir e controlar o criminoso. Assim, nos finais do séc. XIX e inícios do séc. XX, são já muitos os países que optam por abolir a pena de morte – como aconteceu em Portugal, em 4 de julho de 1867 –, tendo ficado fragilizada muita da argumentação que sustentava a filosofia e a prática dos países “mortícolas”, isto é, aqueles onde prevalecia a aplicação desta pena. Este primeiro patamar do abolicionismo – reforçado pela adesão dos países escandinavos no início do séc. XX – foi mais tarde superado por uma segunda vaga, iniciada no pós-II Guerra Mundial em países como a Áustria, a Finlândia, a Itália e a Alemanha Ocidental, e depois concluído, na última década do séc. XX, pela esmagadora maioria dos países europeus, em função de normas impostas por declarações e convenções universais (adotadas sob a inspiração da ONU e do Conselho da Europa), pela sensibilidade humanitarista que resultou na recusa da aceitação do sofrimento humano e do uso gratuito da violência, e da própria inutilidade da pena como forma de controlo da criminalidade. Depois da queda da URSS, os países que antes se encontravam incluídos no Bloco de Leste também seguiram o abolicionismo: Alemanha Oriental, Roménia, Hungria, República Checa, Eslováquia e, mais tarde, Polónia, Sérvia, Croácia e Macedónia.
Embora lentamente, o abolicionismo estendeu-se não só à esmagadora maioria dos países europeus, mas a muitas novas democracias (incluindo a África do Sul e as Filipinas), deixando de fora os Estados Unidos (na maioria dos seus estados), a China e alguns países do Médio Oriente e da Ásia. Em 2022, existiam 148 países abolicionistas, 114 dos quais com abolição para todos os crimes, e 25 abolicionistas de facto; do total, apenas 9 mantinham a pena de morte para crimes comuns. Em contrapartida, 55 países continuavam a ter a pena de morte na lei, embora, na esmagadora maioria, sem a aplicarem na prática. A China, o Vietname e a Coreia do Norte mantêm uma política de total sigilo, pelo que se desconhece a verdadeira dimensão do problema nesses países. No mesmo ano de 2022, os dados conhecidos apontam para a ocorrência de execuções por pena capital nos EUA (18), no Egito (24), na Arábia Saudita (196) e no Irão (576), num total de 883. Sabe-se que ocorreram execuções na China, mas não é possível determinar o seu número (Relatório da Amnistia Internacional para o Ano de 2022).
A abolição da pena de morte constitui hoje um patamar de civilização consagrado por normas jurídicas internacionais, que exercem uma pressão abolicionista forte sobre os estados retencionistas, tendo-se constituído como um indicador – e como um travão – para a entrada desses estados nos areópagos que se guiam por princípios democráticos e pelo respeito pelos Direitos Humanos (como é o caso do Conselho da Europa). Embora a natureza da pena de morte enquanto questão política se tenha alterado, em substância os argumentos dos “mortícolas” e os princípios filosóficos, humanitários, jurídicos e práticos dos abolicionistas não mudaram desde os finais do séc. XVIII, altura em que alguns estados liberais, munidos de instrumentos jurídicos e institucionais novos, puderam prescindir do barbarismo desta punição, até aí aplicada em praça pública com a finalidade de atemorizar os súbditos. Neste sentido, o abolicionismo é um legado do liberalismo e do pensamento de iluministas como Beccaria.
A obra Dei delitti e delle pene, de César Bornesano, marquês de Beccaria, publicada em 1764, condensou as preocupações mais avançadas da consciência da época sobre a legitimidade e a utilidade da pena de morte, revolucionando os códigos penais modernos e dando azo a um profundo debate sobre o regime prisional e sobre o sistema punitivo contemporâneos. Repudiou a ideia de pena como expiação da culpa – tão cara ao espírito inquisitorial ainda bem vivo na sua época – e questionou a intimidação e a “exemplaridade” dos autos de fé e das execuções públicas porque, como considerava, “A pena de morte é (...) funesta à sociedade pelos exemplos de crueldade que fornece aos homens.” Na sua inovadora perspetiva, a pena teria de visar mais a prevenção do mal futuro do que a reparação do crime cometido; portanto, ela só faria sentido se tivesse como meta a correção do delinquente. “O objetivo da pena não é, portanto, outro senão impedir que o delinquente cause novos danos aos seus concidadãos e evitar que outros façam o mesmo”. Exemplar para a sociedade seria – se ocorresse – a reabilitação do condenado, e não a pena de morte, por não permitir a graduação do castigo e por ser inapelável e definitiva.
Buscando argumentos na ideia de contrato social de Rousseau, Beccaria considerava que não fazia nenhum sentido considerar que o homem se poderia dispor a ceder o direito de lhe tirarem a vida: “a soberania e as leis não são senão a soma das pequenas liberdades que cada um cedeu à sociedade”. O fundamento da punição só podia residir na utilidade comum e esta na lei moral, que havia de considerar iníqua qualquer condenação que ultrapassasse o interesse geral. Tudo se resumia então em saber se a pena de morte seria útil e necessária: excluindo da sua argumentação as dimensões filosófica e teológica, o autor deslocou o problema para os domínios utilitaristas do direito e da política. De ora em diante, o problema passou a ser formulado em termos políticos, sob o signo da discussão de saber se a pena capital pode ser substituída por outras penas, sem risco de aumento da criminalidade. Ora – considerava Beccaria –, se há meios mais eficazes do que a pena última para prevenir a prática de crimes futuros, então ela não só é inútil, como é desnecessária. Assim, propôs a substituição da pena capital pela pena de trabalhos forçados para toda a vida – a “escravidão perpétua”. A par da defesa da abolição da pena de morte, o ensaio de Beccaria foi ainda modelar na crítica feroz à condução arbitrária dos processos criminais, condenando a tortura como forma tradicional de captação de confissões.
Mercê destes avanços doutrinários, pequenos estados aboliram a pena de morte de jure e de facto: a Toscana (em 1786), alguns novos países independentes na América do Sul e Central (como a Venezuela, em 1863, e a Costa Rica, em 1877), e também Portugal (em 1867), sendo que, neste último caso, o pioneirismo se aliou ao facto de no nosso país a abolição nunca mais ter sido revertida, com exceção da sua aplicação em período de guerra (em 1916). No entanto, no contexto do séc. XIX tais casos são ainda excecionais; no início do séc. XX, irão juntar-se-lhes os países escandinavos (a Noruega em 1905, a Suécia em 1921, e a Dinamarca em 1930) e alguns outros países sul-americanos.
A estratégia abolicionista segue em todos os países uma prática comum, orientada por princípios humanitários, jurídicos e políticos. Começou por se lutar pela restrição dos motivos para a aplicação da pena de morte, pela suplicação de comutações pelo Rei, ou pela condenação das práticas de martírio executadas em praça pública. Em Portugal, é famoso o episódio ocorrido em Lisboa em 16 de abril de 1842, em que, sob enorme comoção pública, morrem Matos Lobo, o réu condenado, e o prior encarregado de o confortar, fulminado por uma apoplexia. Também o padre que o substituiu acabou por desfalecer à vista do cadafalso, instalado no Terreiro de Santos.
Do domínio humanitário, os liberais partiram para o campo jurídico, procurando abolir a pena de morte nos Códigos e nas Constituições. É um processo complexo, de avanços e recuos, que dá passos largos quando os tratadistas conseguem guindar-se à condição de deputados ou de ministros. Em Portugal, ficou célebre o trabalho doutrinário e político de D. António Aires de Gouveia, Lente da Universidade de Coimbra (o “bispo vermelho”, como ficou conhecido), que foi deputado e ministro da Justiça em 1865 e em 1892. Apodava a pena de morte de “impiedade”, “sacrilégio”, “insulto à civilização”. Assim como noutros países, em Portugal a oportunidade de consagrar a abolição na lei surgiria com a reforma das cadeias, matéria de natureza essencialmente política, que se decidia em função da capacidade do estado para punir ou dissuadir o criminoso e para conceber e administrar formas de cativeiro mais ajustadas às novas teorias de correção e regeneração do preso. O criminoso podia, em suma, ser castigado de outras formas, até mais “aflitivas” e em graus diferenciados, até à “escravidão perpétua”.
Neste contexto, o abolicionismo era, em finais do séc. XIX, uma matéria que, não ignorando os princípios filosóficos e jurídicos, se discutia em termos utilitaristas: as estatísticas demonstravam que a sua aplicação não constituía forma eficaz de dissuasão. O direito de recurso dos condenados, que começou a ser consagrado nos Códigos de muitos países, atirava os presos durante décadas para “corredores da morte”, o que além do mais podia resultar na demonstração de erros crassos dos tribunais, como aconteceu no caso da aplicação da pena de morte a Sacco e Vanzetti (EUA, 1927), cujo erro jurídico só foi reconhecido cinco décadas mais tarde. Nos países europeus que detinham largos espaços coloniais e territórios inóspitos (como era o caso de Portugal), o degredo e a deportação em massa para colónias penais e para campos de concentração passaram a ser formas de erradicar os “indesejáveis” e “incorrigíveis”, condenando-os a uma “morte perpétua”.
Vivemos hoje sob o efeito da última grande vaga de abolições ocorridas na última década do séc. XX, quando países como a Irlanda (1990), a Itália (1994), a Espanha (1995), a Bélgica (1996) ou o Reino Unido (1998) – para darmos só exemplos significativos – aboliram, em definitivo, a pena de morte dos seus Códigos. Até ao início dos anos 1990, a União Soviética ou a África do Sul ocupavam lugares cimeiros no número de pessoas executadas; hoje, tanto a África do Sul como as antigas repúblicas soviéticas aboliram a pena de morte de jure (e, tanto quanto se pode saber, de facto). Para estas tomadas de decisão históricas, muito terá contribuído a “landmark Soering”, uma decisão (com capacidade para criar precedente jurídico) do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos perante o apelo feito por Soering, um cidadão alemão que se encontrava na iminência de ser extraditado para os EUA, onde, segundo o seu apelo, corria o risco de ser “sujeito a tratamento degradante e à pena de morte”. A responsabilização dos países pela extradição de cidadãos para locais onde correm o risco de ser sujeitos à pena de morte foi incluída na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e esta modalidade de pena foi proibida (1989), o mesmo acontecendo no Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), aprovado em 1989. Norma semelhante foi consagrada no Protocolo com vista à Abolição da Pena de Morte, da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, adotado em 1990 pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos.
Em 1989, aproximadamente 80 países tinham abolido a pena de morte, enquanto a maioria (100) eram ainda retencionistas. Porém, no início do séc. XXI eram já 123 os Estados abolicionistas, tendo o seu número aumentado para 148 em 2022, dando ideia de um movimento imparável, com exceção de alguns estados norte-americanos, do Médio Oriente e da Ásia.
Ao contrário do que acontecia no séc. XIX, onde minorias esclarecidas foram responsáveis pelo abolicionismo, mesmo em países onde era comum afirmar-se que a população, de forma geral, defendia a sua manutenção, hoje tais decisões parecem antes derivar do respeito pelo direito à vida e à segurança individual, consagrados no Art. 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e nas Convenções e Protocolos subsequentes, bem como do efeito de uma consciência humanitarista generalizada.
Subsiste, evidentemente, a defesa da pena de morte em países como os EUA, com base em juízos genéricos e de difícil comprovação prática. Para os seus defensores, a pena dissuadiria os criminosos, faria justiça às famílias das vítimas, permitiria a “vingança” de atos terroristas horrendos ou de crimes muito graves. Por último, em alguns estados democráticos tem-se defendido que a maioria da população, ao contrário dos decisores, apoia a aplicação da pena de morte. Para responder a esta questão, em 2001 a Irlanda promoveu um referendo, com vista a ser retirada da Constituição qualquer referência à morte como penalidade, mesmo em casos de emergência, consulta que colheu o voto favorável de 62,08% da população.
Para a abolição da pena capital em todo o mundo, organizações como a Amnistia Internacional lutam hoje pelo integral conhecimento da sua aplicação, combatendo o sigilo que se verifica em países como a China, e contrariando ainda a ideia, muito generalizada nos EUA, de que a “morte limpa” (por injeção letal ou eletrocussão) constituiria uma solução humanista, por não infligir dor ao condenado.
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Acordo Cultural Luso-Brasileiro de 1941 | Acordo Cultural Luso-Brasileiro de 1941 | | |
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Description:Assinado no Rio Janeiro a 4 de setembro de 1941, o Acordo Cultural Luso-Brasileiro representou a cunhagem simbólica do imenso esforço de cooperação cultural entre os “Estados Novos” do varguismo e do salazarismo. Esta cooperação havia sido emblematizada na participação brasileira nas comemorações do duplo centenário de 1940 e, como expressão de reciprocidade e agradecimento, no envio, em 1941, de uma missão/embaixada especial portuguesa ao Brasil (Paulo 1994). O acordo foi assinado no Palácio do Catete, sede da Presidência da República na cidade do Rio de Janeiro, por Lourival Fontes, diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda brasileiro (DIP), e António Ferro, diretor do Secretariado da Propaganda Nacional português (SPN). Não obstante ter correspondido a um esforço de aproximação bilateral, o estreitamento de laços entre os dois regimes produziu efeitos escassos, diversos e impermanentes, em planos como o económico e de alinhamento político externo (Santos 2006). As suas ressonâncias foram sobretudo de ordem propagandística, assentes na ideia de um desígnio histórico-linguístico e cultural partilhado.
Nos decénios de 1930 e 1940, o comércio transatlântico do impresso no espaço luso-brasileiro foi estimulado por políticas para o livro, a edição e a leitura. Neste domínio, a circulação fazia parte de uma estratégia política mais vasta, relacionada com o lastro histórico e cultural, primordialmente a partir da década de 1930 (ainda antes da instituição da ditadura de Getúlio Vargas), quando se verificou a implementação de uma política pan-lusitanista (Serrano 2014), prosseguida com especial ênfase por António de Oliveira Salazar. É neste âmbito que se podem também situar a ação cultural do Instituto Nacional do Livro, fundado no Brasil em 1937 (Tavares 2020), ou a instituição da Secção do Intercâmbio Luso-Brasileiro no SPN, em Lisboa (já fruto do Acordo Cultural de 1941), incluindo a publicação de instrumentos impressos que materializassem ou exibissem a aproximação entre os regimes de Portugal e do Brasil, de que a revista Atlântico constitui um dos exemplos mais flagrantes. Nesta dinâmica, inscrevem-se igualmente a inauguração do Instituto Luso-Brasileiro de Alta Cultura, em 1935, e, ainda antes, o acordo ortográfico de 1931, congraçando a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Ciências de Lisboa, e correspondendo a uma diligência de apaziguamento da clivagem que havia sido criada com a Reforma Ortográfica republicana de 1911.
A aproximação cultural delineada no Acordo de 1941 pode assimilar-se a um impulso sem precedentes rumo a uma confluência estratégica das políticas nacionalistas de ambos os lados do Atlântico. De certo modo, o Acordo Cultural Luso-Brasileiro traduz, nos planos formal e diplomático-simbólico, uma estratégia de sancionamento de afinidades, vinculada diretamente a interesses políticos e orientações ideológico-culturais, que instrumentalizam o lastro histórico e a língua comum para forjar um reportório memorialístico, concretizando iniciativas diversas, com destaque para a propaganda através da cultura escrita. Esta estratégia aproveitava laços intelectuais que vinham de trás (remontando ao final do século XIX), bem como a presença coetânea (nos anos 1940) de personagens-charneira do mundo extra-governativo, como a do editor e livreiro António de Sousa Pinto, por exemplo (Medeiros 2015).
O Acordo Cultural de 1941 foi fundamentalmente um arranjo político, e não tanto um tratado diplomático ou acordo comercial. Ele outorgava visibilidade a uma atuação deliberada, cuja razão se baseou no desígnio original de estabelecer laços culturais e políticos suscetíveis de atualizar uma conceção de nação cuja força motriz doutrinária se fundasse na partilha, de natureza extraterritorial, de uma língua e de uma história. António Ferro, em discurso de 1941, definia os pressupostos do Acordo, defendendo a existência de uma força nacionalizadora, que apelidava de “pátria flutuante”, espraiando-se por vários continentes através do mar (Ferro 1949: 35). Por sua vez, o seu homólogo Lourival Fontes insistia em que a língua portuguesa constituía um “vínculo indelével” entre as duas nações (Atlântico 1942, n.º 1, p. 2). No quadro dos instrumentos administrativos de operacionalização recíproca de vários aspetos do Acordo, ficou definida a criação de duas secções de representação de interesses, no seio dos dois organismos responsáveis, em cada um dos países, pela política cultural: a Secção Portuguesa, no interior do DIP (mais efémera e incapaz de sobreviver à queda da ditadura de Getúlio Vargas), e a Secção Brasileira, dentro do SPN, a qual conheceu uma presença duradoura na arquitetura institucional do Estado português; mesmo após o fim do Estado Novo no Brasil, permaneceu até 1974 como Secção de Intercâmbio Luso-Brasileiro.
O Acordo, sublinhe-se, não se cingia ao mundo da comunicação escrita. Esta ocupava apenas uma parcela do conjunto de catorze eixos de promoção cultural em sentido amplo, prevendo um feixe ambicioso e diversificado de atribuições: 1) intercâmbio e publicação de artigos inéditos; 2) intercâmbio de fotografias; 3) envio ao Brasil e a Portugal de conferencistas, escritores e jornalistas; 4) colaboração recíproca e com orientação comum quanto ao noticiário; 5) criação da revista Atlântico; 6) troca de publicações de turismo e propaganda; 7) divulgação do livro português no Brasil e do livro brasileiro em Portugal; 8) emissões radiofónicas e permuta de programas radiofónicos de interesse comum; 9) prémio pecuniário anual, atribuído conjuntamente; 10) permuta de exposições de arte e intercâmbio de artistas brasileiros e portugueses; 11) intercâmbio de atualidades cinematográficas; 12) facilidades para o turismo luso-brasileiro; 13) estudo do folclore luso-brasileiro e edições comuns sobre o tema; 14) comemoração de datas históricas de interesse comum (Atlântico 1942, n.º 2, pp. 180-182).
A realização de concertos, conferências, exposições e feiras dava desde logo o mote para uma série de iniciativas que foram animando o programa cultural e propagandístico, injetando temas brasileiros em Portugal e tópicos portugueses no Brasil. Decorrendo em diversos locais e cidades dos dois países, o grosso dos certames concentrou-se no primeiro lustro dos anos 1940, coincidindo com a coexistência de ambos os “Estados Novos”, persistindo mais esparsamente depois de 1945 e até ao final da década, apenas em Portugal, um conjunto de realizações.
Na implementação desta política cultural, os impressos ocuparam um lugar estratégico de difusão e salvaguarda do reiteradamente propalado património comum. Este ia da publicação de periódicos como Atlântico: revista luso-brasileira, Brasília, Boletim da Secção Brasileira do Secretariado da Propaganda Nacional ou Terra de Vera Cruz, à edição das coleções “Documentos dos Arquivos Portugueses que Importam ao Brasil” ou “Atlântico”. Para o caso português, por exemplo, é no interior da política editorial do Acordo de 1941 que emerge o apoio e subsidiação de instâncias e projetos pela Secção Brasileira, tais como o Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de Coimbra e Brasília, provavelmente a revista luso-brasileira de mais longa duração (1942-1968). Arregimentando um feixe de artistas e intelectuais portugueses e brasileiros, esta dinâmica editorial procurava dar visibilidade ao Acordo, mas também a outras vertentes do projeto político então gizado. A lógica deste encontro entre regimes homónimos, largamente vertida no Acordo Cultural de 1941, revelou uma intenção política claramente respaldada nos projetos nacionalistas que nos anos finais do decénio de 1930 e na primeira metade do seguinte marcaram a obra, a retórica e os propósitos ideológico-programáticos dos governos de Brasil e Portugal.
O esteio deste encontro de vontades não correspondeu necessariamente a uma partilha absoluta de estratégias e de modos de viabilização de uma colaboração institucional de alto nível entre os dois países. A interlocução de um ideário de matriz nacionalista operou-se a partir de propósitos específicos, modulados por interesses e proposições de fundamentação diversa. Do lado português, o impulso soube perdurar e ser mais intensamente assumido, erigindo uma mobilização estruturada em torno de um pressuposto que assimilou a história e a cultura nacionais à afirmação de uma conceção política pan-lusitanista. Forjada e estimulada pela propaganda dos organismos públicos, essencialmente portugueses, a política do pan-lusitanismo conduzia a aproximação, destacando o lugar do Brasil no passado quinhentista português (Serrano 2014). Sob este imperativo, inúmeras estratégias de propaganda foram criadas no sentido de realçar o lastro histórico comum, reafirmado na colonização do Brasil como uma espécie de montra de um passado português que se procurava apresentar como glorioso. A compatibilidade de intuitos era confrontada por solidariedades internacionais e por interesses socioeconómicos nem sempre convergentes – incluindo discrepâncias em posicionamentos de natureza simbólica e de memória histórico-ideológica, a exemplo do desconforto gerado nas hostes portuguesas quanto a certos temas apresentados por participantes brasileiros no Congresso de História Luso-Brasileiro em 1940, como é o caso o do dissídio das inconfidências setecentistas (Blotta 2009). Apesar de tais discordâncias, a cooperação luso-brasileira é largamente motivada pela necessidade legitimista de dois regimes de natureza autoritária, alicerçada em dinâmicas ideológicas e narrativas compagináveis, gravitando em redor da proposta de unidade linguística e de uma comunidade histórico-cultural na qual radicaria em medida não pequena a razão de ser da nação. O fim do Estado Novo brasileiro não interrompeu certa colaboração cultural sem deixar a descoberto as tensões e contradições que o processo nunca deixou de possuir.
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Ágoas, Frederico | Ágoas, Frederico | | |
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Baleação | Baleação | | |
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Description:A história marítima de Portugal não se resume à denominada epopeia dos Descobrimentos nos séculos XV e XVI, ou às travessias e contactos posteriores que o Império Colonial motivou até meados do século XX. Ela contém outras facetas, menos propensas a narrativas de glória e conquista, e extravasa os limites do Império Português, integrando não só outros impérios e geografias, como jogos de força político-económicos e arranjos socioculturais transnacionais. A baleação é um caso elucidativo dessas abrangências e interdependências, e um capítulo menos conhecido, mas muito relevante, da história marítima portuguesa.
Os arquipélagos atlânticos dos Açores e de Cabo Verde, cuja posição geoestratégica privilegiada sempre contrariou a sua condição periférica, foram desde tempos recuados portos de escala obrigatórios para navios das mais variadas origens, que aí ancoravam para abastecimento, aguada e recrutamento de tripulação. Entre as várias embarcações que passaram pelas ilhas, destacam-se os navios baleeiros norte-americanos. Embora presentes nas águas portuguesas desde a segunda metade do século XVIII, foi na centúria seguinte que a indústria baleeira americana se afirmou como uma das atividades comerciais mais proeminentes do mundo. Antes da difusão do gás e da eletricidade como principais fontes de energia, o óleo de cachalote era utilizado como combustível para a iluminação pública.
As barcas baleeiras saíam dos portos da Nova Inglaterra e passavam anos no mar, atravessando vários oceanos e fundeando em diferentes portos durante a longa viagem. E se, por um lado, alguns dos tripulantes norte-americanos desertavam nestas paragens, por outro, muitos ilhéus embarcavam no seu lugar. De Cabo Verde e dos Açores (conhecidos como Western Islands) milhares fugiram, clandestinos, da fome, da penúria, ou do alistamento militar. Outros foram contratados como mão-de-obra barata. A frota americana aproveitava essa força de trabalho e os ilhéus procuravam tirar partido da oportunidade, sem muitas vezes imaginarem a vida árdua e penosa que os esperava no alto-mar. Inexperientes, ocupavam a base da hierarquia naval: eram green hands. Anos mais tarde, alguns deles chegaram a imediatos e capitães. À época, açorianos e cabo-verdianos eram cidadãos portugueses, embora muito diferentes entre si. Para os americanos, porém, estes dois coletivos constituíam um só: the Portuguese. Na década de 1860, os apelidados Gees (Melville 1856) – assim tratados derrogatoriamente – representavam um quarto das tripulações baleeiras (Busch 1985). Mas os castelos de proa e os porões dos navios caracterizavam-se por uma enorme diversidade cultural: diferentes línguas, etnias e culturas interagiam tanto a bordo quanto em terra, com toda a complexidade sociológica que essa coexistência implicava.
Em terra, a atividade baleeira implementava-se também, sobretudo nos Açores, e ao seu desenvolvimento não foi alheia uma prestigiada família americana que permaneceu no arquipélago durante várias gerações: os Dabney. Entre 1806 e 1892, os três cônsules americanos nos Açores partilhavam este apelido. E foi o segundo deles, Charles W. Dabney, que em 1854 instalou a primeira unidade industrial baleeira na ilha do Faial. Foi também por iniciativa do terceiro cônsul, Samuel Dabney, e de outro americano residente no Faial, em parceria com um ex-capitão baleeiro açoriano, que se constituiu em 1876 a primeira armação baleeira nos Açores, na ilha do Pico.
Além dos múltiplos e profundos impactos nas ilhas, a baleação norte-americana abriu caminho para a emigração rumo aos Estados Unidos da América, inaugurando um dos fluxos migratórios portugueses mais expressivos. Foi a baleação que esteve na origem desta diáspora. E, se é verdade que na segunda metade do século XIX a indústria baleeira norte-americana entra em declínio, é também a partir dessa altura que alguns açorianos e cabo-verdianos logram ser capitães e proprietários de navios baleeiros. Já no dealbar do século XX, alguns oficiais cabo-verdianos adquirem antigas baleeiras obsoletas e convertem-nas em transporte de carga e de passageiros, instituindo o Packet Trade, outro importante canal de ligação atlântico. Os Brava Packets fizeram inúmeras viagens entre a Nova Inglaterra e as ilhas de Cabo Verde, dando novo impulso às correntes migratórias.
Apesar do definhamento da baleação americana no final do século XIX e, com ela, das vagas migratórias a bordo dos navios baleeiros, a emigração insular prosseguiu, não obstante as medidas restritivas impostas pelo governo dos Estados Unidos à entrada de estrangeiros. O Immigration Act de 1924 estabeleceu limites apertados quanto ao número de imigrantes que poderiam cruzar as fronteiras do país e, embora tenha vigorado durante as décadas seguintes, em 1958 – com a erupção do vulcão dos Capelinhos, na ilha do Faial –, abriu-se um regime de exceção, o Azorean Refugee Act, verificando-se uma retoma expressiva da emigração açoriana.
A baleação abriu caminho para a emigração dos ilhéus que, posteriormente, se envolveriam também noutras atividades em terra, com particular destaque para a indústria (na Nova Inglaterra) e para a pesca e agricultura (na Califórnia), sendo de salientar que foram baleeiros açorianos que fomentaram a baleação costeira nesta região da costa Oeste, com a constituição de companhias baleeiras, a partir da década de 1850 (Mayone Dias 1979, Bertão 2006).
A história da baleação portuguesa é indissociável da história da baleação norte-americana. Se a participação dos Açores na baleação pelágica (em mar alto) americana desponta, nos séculos XVIII e XIX, numa conjuntura internacional que determina o seu florescimento, no século XX a baleação costeira açoriana ganha autonomia e especificidade próprias, estabelecendo-se como uma atividade económica relevante na região. O último quartel do século XIX assistiu a uma mudança na participação portuguesa na indústria baleeira global. Nos Açores, a instalação de vigias nos pontos altos da costa permitiu continuar a atividade baleeira a partir das bases costeiras. Os botes norte-americanos foram reconstruídos pelos carpinteiros navais locais, tornando-os mais leves e esguios, com espaço para mais um tripulante, adaptados à entrada e saída dos exíguos portos insulares criados sobre o recorte vulcânico das ilhas. A baleação estendeu-se a todas as ilhas, e prolongou-se por mais de um século com as mesmas técnicas de caça utilizadas na baleação norte-americana. Em 1954, Robert Clarke designou-a de “indústria relíquia” (Clarke 1954). E, se em 1851 a presença portuguesa na baleação internacional fora imortalizada pelo escritor norte-americano Herman Melville, no clássico da literatura Moby Dick, um século depois, a caça à baleia açoriana foi objeto de estudo e inspiração para filmes e livros de Orson Welles, Chris Marker e Mario Ruspoli, ou Antonio Tabucchi, entre outros. A visão romântica e épica da baleação foi veiculada tanto por observadores externos como pelas gentes locais.
Na realidade, a baleação insular continuava plenamente integrada na economia internacional. Os óleos de cetáceos eram exportados para os países europeus mais industrializados (Inglaterra, Alemanha, Itália e França), onde encontravam novas aplicações nas indústrias de armamento, em lubrificantes industriais, em couros e detergentes, entre outras. No final da Segunda Guerra Mundial, com a paralisação das frotas baleeiras que operavam no Antártico, a baleação nos Açores chegou a ser responsável por 40% do total das capturas mundiais de cachalote (Clarke, 1954). A economia de guerra acelerou a industrialização da atividade em terra, mas, no mar, a baleação continuou a ser uma atividade artesanal, com um confronto direto entre o homem e a baleia. Neste período, a indústria baleeira também se estendeu ao arquipélago da Madeira e foi retomada no continente português, na região de Setúbal.
A partir da década de 1960, a indústria baleeira nos Açores entrou gradualmente em crise. As mudanças eram induzidas por transformações globais externas. Por um lado, os óleos de cachalote eram substituídos pela utilização de produtos sintéticos, tendo os preços sofrido uma queda progressiva. Por outro, assistia-se a uma mudança cultural sobre a proteção da vida marinha, e a baleia tornou-se num símbolo nos discursos de conservacionismo ecológico de novas organizações como a Greenpeace. A pressão regulatória internacional reduziu o comércio de produtos baleeiros, conduzindo à Moratória da Comissão Baleeira Internacional (1982), que entrou em vigor em 1986. Antes dessa data, a indústria açoriana já entrara em decadência – não só pela falta de mercados para os seus produtos, mas também pela dificuldade de recrutamento e devido à concorrência da pesca do atum, mais segura e rentável.
A baleação nos Açores foi paulatinamente convertida em património, ganhando inclusive, em 1998, forma de lei (Decreto Legislativo Regional n.°13/98/A). No entanto, a narrativa patrimonial não contempla as muitas complexidades que a história da baleação encerra. Ela convoca o passado baleeiro, mas quase sempre de forma seletiva e parcial, fragmentando uma história comum aos dois arquipélagos e veiculando representações sociais de tónica regional, desligadas de contextos mais amplos, e que negligenciam histórias conectadas e globais.
Atualmente, a baleação surge como um poderoso discurso de coesão regional. Num território descontínuo e com fortes assimetrias locais, distingue-se como uma experiência histórica comum a todas as ilhas açorianas, que enaltece a coragem e a capacidade de superar as difíceis condições de vida. Recentemente, um projeto de história oral (Arquivo de Memórias da Baleação) recolheu mais de cem entrevistas a todos os baleeiros vivos, com o propósito de entender o impacto social, económico e cultural da baleação nas comunidades insulares; um outro projeto (ADBA – Arquivo Documental da Baleação Açoriana), focado no património arquivístico, dedica-se à pesquisa e inventariação de acervos documentais relativos à baleação açoriana. Ambos desafiam a política patrimonial a ser mais inclusiva.
Foram as comunidades locais que começaram por recuperar as embarcações e casas dos botes, processo continuado mais tarde pela musealização das antigas fábricas, com apoios públicos. Desde 1993, e cada vez mais, a observação de cetáceos – o whale watching – atrai, todos os anos, milhares de turistas à região. A transição da baleação para o ecoturismo está hoje consumada. Todavia, as narrativas históricas plurais sobre a baleação – tão diversas quanto as condições socioeconómicas de cada ilha e os homens que a praticaram – correm o risco de se diluir nos discursos e políticas que acentuam continuidades e glórias mais do que ruturas e insucessos.
Na longa duração, fosse pelas circunstâncias geográficas e socioeconómicas dos arquipélagos da Macaronésia, pelas conjunturas internacionais, ou ainda pelos conhecimentos técnicos transmitidos ao longo de várias gerações, constata-se que a baleação teve uma extraordinária longevidade em território português. O seu fim irreversível deu lugar, no entanto, a uma mudança de paradigma e a um novo ciclo baleeiro, que só existe devido a um passado transnacional que relaciona Portugal e os seus arquipélagos com os EUA e a Europa, e que demonstra bem as inter-relações a diferentes escalas num mundo global. [show more]
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Béla Guttmann | Béla Guttmann | | |
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Description:O futebol tornou-se ao longo do século XX num dos principais terrenos de produção e banalização de identificações nacionais. Da discussão sobre os estilos de jogo aos debates sobre a utilização de jogadores naturalizados, passando pela organização de grandes eventos desportivos, são múltiplos os canais através das quais os discursos e as práticas de diferentes agentes e instituições do mundo do futebol comunicam com projetos ideológicos e políticos de caracterização de um povo enquanto totalidade mítica. A esta demanda identitária, que procura transformar o particular e o contingente – a forma como onze homens se organizam num dado momento dentro de um campo relvado – no símbolo da essência intemporal e imutável de um coletivo, uma história migrante do futebol pode responder com o recenseamento da diversidade das formas de o jogar e com o reconhecimento das interconexões entre elas. Se é impossível compreender a introdução do futebol em Portugal sem olhar para as trajetórias dos jovens das elites nacionais que estudaram em Inglaterra ou para o contributo dos representantes dos interesses comerciais britânicos aqui, também é difícil pensar o desenvolvimento do jogo sem considerar a sua inserção noutras redes internacionais. O estudo da profissionalização do futebol português e da sua transformação em espetáculo popular não pode ignorar o papel desempenhado por um conjunto de técnicos e atletas provenientes de contextos muito diversos. Entre eles, destaca-se o caso de Béla Guttmann.
A partir de meados da década de 1920, o aumento da competitividade desportiva levou os clubes portugueses de futebol a procurarem treinadores estrangeiros, originários de países onde o profissionalismo já se encontrava institucionalizado. Entre eles, destacaram-se os técnicos húngaros. Muitos chegaram a Portugal fugindo de perseguições religiosas e políticas, ou da guerra; alguns procuravam apenas melhores condições de trabalho e reconhecimento profissional. Entre 1924, quando Akös Tezler iniciou funções no Futebol Clube do Porto, e 1962, quando Béla Guttmann conduziu o Benfica à conquista da sua segunda Taça dos Campeões Europeus consecutiva, dezenas de treinadores provenientes daquela região da Europa dirigiram equipas portuguesas. Józseph Szabó, Mihaly Syska, Magyar Ferenc, Lippo Hertzka, János Biri, Julius Lelovtic ou Rudolf Jenny, entre outros, transformaram decisivamente a forma de jogar futebol em Portugal no período de entreguerras. Consigo não traziam apenas o que, por facilidade de expressão, se designou como “estilo húngaro”. Muitos deles haviam aprendido sobre sistemas táticos ou métodos de treino com os “mestres escoceses” que, por não encontrarem nas ilhas britânicas as condições necessárias para desenvolver o seu métier, no final da I Guerra Mundial trabalharam em Viena, Budapeste ou Praga. Antes de chegarem a Portugal, quase todos os membros desse grupo de húngaros tinham passado, como jogadores e treinadores, por diversos campeonatos europeus. Foi o conhecimento acumulado por essa experiência que tentaram adaptar às condições de trabalho que encontraram nos clubes portugueses.
Béla Guttmann nasceu a 27 de Janeiro de 1899 em Budapeste, uma das capitais do Império Austro-Húngaro, e morreu no dia 28 de Agosto de 1981 em Viena, capital da Áustria. Foi um dos grandes jogadores húngaros e um dos mais importantes treinadores de futebol do século XX. Filho de um casal de professores de dança (Abraham e Eszter Guttmann), Béla encontrou no futebol terreno para a construção de uma trajetória de mobilidade social ascendente e para a integração na sociedade húngara pós-emancipação, em processo de modernização cultural.
Ao longo da sua carreira como atleta, que se estendeu de 1917 a 1934, jogou em clubes como o Törekvés e o MTK de Budapeste (Hungria) ou o Hakoah de Viena (Áustria), além de, durante a primeira grande vaga de crescimento do futebol nos Estados Unidos da América, ainda na década de 1920, ter também representado o New York Giants e o New York Hakoah. Ao serviço de outra equipa americana, o Hakoah All Stars, encetou a sua primeira grande tournée pela América do Sul, desempenhando uma variedade de funções: jogador, mas também treinador e organizador da digressão. As filiações dos vários clubes por onde passou eram muito diversas: se o MTK, o Círculo Húngaro dos Educadores da Cultura do Corpo, fundado em 1888, era uma instituição da burguesia liberal de Budapeste, que aspirava a uma “hungaridade universal”, o Hakoah de Viena e o Hakoah de Nova Iorque, pelo contrário, representavam o projeto sionista de um “judaísmo muscular”. Assim, as escolhas de carreira de Béla Guttmann enquanto jogador não podem ser lidas como simples expressão de uma orientação política, mas devem também, ou sobretudo, ser interpretadas como parte de um projeto de afirmação profissional e de busca de segurança pessoal. A mudança de Budapeste para Viena acontece quando o profissionalismo já havia sido instituído na Áustria, ao contrário do que sucedia na Hungria. A emigração para a América do Norte resulta das enormes diferenças salariais observadas entre os clubes da Europa e dos Estados Unidos, onde o futebol era organizado segundo as regras das indústrias culturais. Nos EUA, Guttmann conheceu a fortuna, mas também a ruína financeira: terá perdido todas as suas poupanças e investimentos após o crash de 1929, o que contribuiu, a par da falência do primeiro campeonato americano de futebol, para o seu regresso à Europa no início dos anos 1930.
Enquanto jogador, destacou-se como um médio-centro completo, com excelente condição física, com capacidade para defender e atacar, recuperar, passar e transportar a bola, ajudando a transformar os padrões de desempenho daquela posição específica, no quadro da divisão do trabalho de equipas organizadas segundo o modelo da pirâmide escocesa, 2-3-5. Foi seis vezes internacional húngaro, tendo ainda muito jovem abdicado de jogar pela seleção do seu país, como consequência de conflitos com dirigentes federativos, suscitados pela má organização da participação húngara nos Jogos Olímpicos de Paris de 1924, e em particular pelo descaso demonstrado em relação às necessidades dos atletas.
Iniciou o seu percurso no Hakoah de Viena, em 1934-35, ainda com o estatuto de jogador-treinador. Logo depois, assumiu o seu primeiro cargo a tempo inteiro como treinador no Enschede (hoje Twente), dos Países Baixos, para mais tarde regressar ao Hakoah de Viena. Quando começou a II Guerra Mundial, era treinador do Újpest, clube ao serviço do qual conquistou a mais importante competição europeia da época, a Taça Mitropa.
Apesar de quase nunca o ter referido em entrevistas e intervenções públicas, entre 1939 e 1945 esteve na clandestinidade. Foi nesse período que, escondido em Budapeste, conheceu a sua esposa Mariann, que o acompanhou pelo resto da vida. Em 1944 foi internado num campo de trabalho dos fascistas húngaros do Partido da Cruz de Flechas, de onde encetou uma fuga com o seu colega e amigo Ernö Erbstein, outro grande treinador da escola húngara que se destacou ao serviço do Torino, de Itália. Depois da Guerra, num tempo de escassez de bens, inflação e mercado negro, Guttmann incluiu no seu contrato com o Vasas de Budapeste, um clube liderado à época por empresários do sector alimentar, uma cláusula que incluía o pagamento de uma percentagem do salário em géneros: batatas, farinha, banha, açúcar, entre outros bens essenciais.
Entre 1945 e 1974, mudou de país 15 vezes, e 21 vezes de clube. Números impressionantes, talvez até inéditos, mas não totalmente invulgares entre os grandes treinadores da época. Dirigiu grandes e pequenas equipas na Holanda, na Jugoslávia, na Hungria, na Roménia, em Itália, na Argentina, em Chipre, no Brasil, em Portugal, no Uruguai, na Suíça e na Grécia. É considerado um dos mais brilhantes elementos de uma geração de treinadores húngaros – entre os quais se encontram também Márton Bukovi ou Gusztáv Sebes – cujo trabalho conjunto ajudou a criar uma das grandes equipas da história do futebol, a Aranycsapat, a “equipa de ouro”, nome pelo qual ficou conhecida a seleção húngara na década de 1950. Este grupo de treinadores impulsionou também mudanças táticas e técnicas no futebol mundial, ao introduzir dinâmicas ainda inexploradas no modelo WM, até então o sistema de referência no plano internacional, que tinha sido implementado por Herbert Chapman no Arsenal de Londres na segunda metade da década de 1920. No final dos anos 1940, no Kispest (mais tarde Honvéd), Guttmann treinou muitos dos jogadores que fizeram a fama do futebol daquele país, como Ferenc Puskás ou József Bozsik. Após o termo deste contrato, não regressou à Hungria. Sagrou-se campeão em Itália, com o AC Milan, onde também trabalhou com jogadores de nível mundial, tendo aí conhecido em detalhe os sistemas defensivos das equipas italianas, que ganhariam reconhecimento próprio na ideia de catenaccio. O ano de 1956 foi crucial no seu percurso: adquiriu nacionalidade austríaca, com o apoio dos dirigentes federativos daquele país, e, depois da revolta húngara, dirigiu no exílio a equipa do Honvéd, numa digressão pela América do Sul que lhe abriria a possibilidade de treinar o São Paulo. Terá sido um dos responsáveis pela implementação do sistema 4-2-4 naquele clube brasileiro, esquema tático que acabou por ser adotado pela seleção campeã do mundo em 1958. O ponto alto da sua carreira foi vivido ao serviço de um clube português, o Sport Lisboa e Benfica, que treinou pela primeira vez entre 1959 e 1962.Não obstante o lugar central de Guttmann na história do futebol mundial, resultado desta trajetória singular, na imaginação portuguesa o seu nome evoca habitualmente duas histórias: a conquista de duas Taças dos Clubes Campeões Europeus consecutivas pelo Benfica, nas épocas de 1960-61 e 1961-62, em finais disputadas contra o Barcelona e o Real Madrid, poderosas equipas espanholas cujo estilo de jogo também foi moldado por jogadores e técnicos húngaros; e o mito da maldição que teria lançado sobre a equipa da Luz depois de ser despedido – em conflito, como tantas vezes ao longo da sua carreira, com dirigentes cuja gestão autoritária, patrimonialista e clientelar chocava com o seu projeto de profissionalização do desporto –, profetizando que nem em 100 anos o clube voltaria a vencer uma competição europeia. Para quebrar a maldição, e depois de mais uma final perdida em 2013, em fevereiro de 2014 o Sport Lisboa e Benfica inaugurou uma estátua de dois metros do seu antigo treinador. Três meses mais tarde, voltou a perder uma final europeia, desta feita frente ao Chelsea.
Deixando estes episódios de lado, a longa história deste treinador de futebol permite-nos considerar o desenvolvimento do futebol e a profissionalização do jogo a nível planetário. Ao mesmo tempo, o estudo do seu percurso em Portugal, inserido no quadro de uma prosopografia de uma geração de treinadores húngaros, vem questionar a relação entre estilos de jogo e representações da identidade nacional: talvez se possa argumentar que o futebol português foi inventado por treinadores húngaros. Ou talvez seja possível ir ainda mais longe e dizer que, quando chegou a Portugal, Guttmann, tal como outros seus compatriotas antes dele, nem seria já um treinador húngaro. Nas suas próprias palavras: “Durante a minha longa carreira estive em muitos países e trabalhei em alguns deles. Sempre que via uma boa ideia de jogo roubava-a e guardava-a para mim. Ao fim de algum tempo, fazia um cocktail com esses ingredientes surripiados“ (Claussen 2015: 131). O futebol português, tal como o futebol húngaro, austríaco ou brasileiro, ou qualquer outro, emerge como o resultado dessa mistura de influências, intrinsecamente transnacional.
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Bernardo Peres da Silva (1775-1844) | Bernardo Peres da Silva (1775-1844) | | |
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Description:Bernardo Peres da Silva nasceu no dia 15 de outubro de 1775, em Neurá-o-Grande, na ilha de Goa (ou Tiswadi), no seio de uma família brâmane católica. A morte dos seus pais deixou-o órfão cedo, e a responsabilidade pela sua educação coube ao seu tio-avô, o Pe. Caetano Peres da Silva. Estudou filosofia e latim no antigo seminário jesuíta de Rachol, entretanto confiado à ordem italiana dos Vicentinos, antes de se formar como médico no Hospital Real Militar, em Panelim, onde terá sido discípulo do físico-mor António José de Miranda e Almeida. No final da década de 1790, casou com Inácia da Conceição de Menezes, com quem teve dez filhos. Também nessa altura, iniciou o seu percurso político no senado da câmara de Goa.
A Goa em que Peres cresceu era uma colónia em mudança. O século XVIII foi marcado pelo declínio de Goa como entreposto do comércio marítimo internacional, pela perda dos territórios da Província do Norte, entre os atuais estados do Maharastra e do Gujarate, pela autonomização administrativa de Moçambique face ao Estado da Índia e por uma ligação cada vez mais ténue aos distantes enclaves de Macau e Timor. Estas perdas territoriais foram compensadas pela expansão das fronteiras da colónia para as regiões que ficariam conhecidas como Novas Conquistas. Entre as décadas de 1760 e 1780, o território de Goa quase triplicou, com a anexação de aproximadamente 2800 km² de terreno, incluindo cerca de 280 aldeias e cem mil pessoas, na sua esmagadora maioria hindus. Apesar disso, no final do século a Índia ocupava um lugar cada vez mais marginal no contexto de um império português crescentemente centrado no Atlântico.
No que diz respeito ao percurso de Bernardo Peres da Silva, no entanto, a mudança mais significativa foi provavelmente o protagonismo crescente das elites católicas goesas na vida política e social da colónia. Desde o século XVI, a conversão das populações locais levara à emergência de uma elite nativa, cristianizada e ocidentalizada, capaz de mobilizar o conhecimento da língua portuguesa e da cultura política europeia para contestar o seu lugar subalterno na ordem colonial. Nas décadas de 1760 e 1770, a ascensão desta elite seria consagrada pela promulgação de medidas que equiparavam formalmente os goeses católicos aos portugueses nascidos no Reino. Na prática, porém, continuavam a existir diversos mecanismos de discriminação, e os goeses estavam impedidos de aceder aos principais cargos da administração colonial.
Quando Peres tinha 12 anos, a tensão entre estas expectativas de igualdade e os seus limites práticos seria posta em evidência pela alegada “Conjuração dos Pintos”, que abalou a colónia em 1787. Os líderes desta suposta conspiração para “expulsar os brancos” e estabelecer uma “nova república” eram militares e clérigos brâmanes, uma parte dos quais tinha estudado em Roma e Lisboa. As suas aspirações assentavam em noções enraizadas de superioridade de casta e de preeminência local. Mas eram também inspiradas pelo exemplo recente da Revolução Americana, sobre a qual alguns dos implicados confessavam ter lido, e pela circulação transnacional de uma linguagem política que enfatizava temas como “liberdade” e “felicidade pública”.
A alegada conspiração foi brutalmente reprimida pelas autoridades portuguesas. Mais tarde, depois de mais de uma década de ocupação britânica da colónia (entre 1799 e 1813, no contexto das Guerras Napoleónicas), as tensões reacender-se-iam com a chegada das notícias da revolução liberal de 1820. Os primeiros rumores sobre o pronunciamento militar que tivera lugar no Porto no dia 24 de agosto daquele ano, exigindo o regresso do rei D. João VI do Brasil e a promulgação de uma constituição, chegaram a Goa em março do ano seguinte, por via da imprensa britânica e de cartas enviadas de Bombaim e de Bengala. Estes rumores foram recebidos com entusiasmo pelo pequeno núcleo liberal existente na colónia, composto por funcionários e militares portugueses, por luso-descendentes e por alguns goeses católicos, que desde o final da década de 1810 circulavam entre si exemplares do jornal O Portuguez, editado em Londres por Rocha Loureiro, assim como cópias da Constituição de Cádis de 1812.
Os acontecimentos que se seguiram reproduziam, em grande medida, o guião dos movimentos revolucionários do sul da Europa, recentemente analisados por Maurizio Isabella (2023). Na madrugada do dia 16 de setembro de 1821, o palácio do governo, em Pangim, foi cercado por centenas de soldados de vários regimentos. O vice-rei, D. Diogo de Sousa, conde de Rio Pardo, foi deposto e, no seu lugar, foi eleita uma junta provisional de governo. Ao raiar da manhã, foram lidas proclamações aos soldados e ao povo, em que os revoltosos anunciavam o fim da “tirania” e do “despotismo”, ao som de vivas ao rei, à nação e à constituição. Nos dias seguintes, a junta ordenou ainda que se adotasse provisoriamente a Constituição de Cádis, até que estivesse finalizada a elaboração de um texto constitucional português.
Bernardo Peres da Silva, então já com mais de 40 anos, desempenhou um papel importante nestes acontecimentos. Foi em sua casa que tiveram lugar algumas das reuniões que antecederam o pronunciamento, e foi por via dos seus contactos com a comunidade goesa de Bombaim que os conspiradores se mantiveram a par das notícias do Reino. Mais foi com a eleição dos representantes da colónia às cortes constituintes, que Peres se afirmou como a principal figura do primeiro liberalismo em Goa. A eleição decorreu de forma indireta, e só as províncias – maioritariamente católicas – das Velhas Conquistas tomaram parte. Em janeiro de 1822, os eleitores escolheram Peres como um dos três deputados do Estado da Índia, na companhia de outro brâmane católico, Constâncio Roque da Costa, e do médico português António José de Lima Leitão, veterano da legião portuguesa que servira nos exércitos napoleónicos.
Os três deputados tiveram uma viagem atribulada até ao Reino, através de um império em ebulição. Temporariamente detidos no Brasil, no rescaldo da independência da colónia sul-americana, chegaram a Lisboa em maio de 1823, onde testemunharam o colapso da primeira experiência constitucional portuguesa, na sequência da revolta da Vilafrancada. Peres permaneceu em Lisboa durante o ano seguinte, endereçando várias memórias sobre a situação política e económica de Goa ao rei D. João VI e aos seus ministros. Segundo os informadores da coroa, terá também consagrado o seu tempo à leitura de livros “subversivos” sobre os “princípios desorganizadores” do liberalismo constitucional e, pelas referências citadas nos seus escritos, das obras de economistas políticos franceses, como Jean-Baptiste Say e Antoine Destutt de Tracy. Regressou a Goa em 1825, nomeado intendente de agricultura da colónia, sendo acompanhado por instruções secretas para que fosse mantido sob vigilância apertada.
Impedido de assumir o cargo para que fora nomeado, Peres voltou a ser eleito deputado em 1827, na sequência da promulgação da Carta Constitucional de 1826. Mas, uma vez mais, quando desembarcou em Lisboa o curto interlúdio constitucional já tinha sido interrompido pela restauração do regime absolutista. Forçado a deixar Portugal, rumou primeiro a Inglaterra e depois ao Brasil, juntando-se assim à “internacional liberal” de exilados políticos espalhados pela Europa e pelas Américas, no rescaldo das revoluções e contrarrevoluções da década de 1820.
Foi durante o exílio brasileiro que escreveu a sua principal obra doutrinária, o Dialogo entre um Doutor em Philosophia e um Portuguez da India na cidade de Lisboa sobre a constituição politica do Reino de Portugal. Publicado em 1832, no Rio de Janeiro, este curto panfleto apresentava-se como uma defesa da Carta Constitucional. Mais do que nos debates teóricos sobre os méritos dos diferentes modelos constitucionais, no entanto, o Dialogo centrava-se numa narrativa da narrativa da história de Goa que contrastava o despotismo e a violência que tinham pautado os 300 anos de domínio colonial, desde que os portugueses “sulcando primeiro que outros mares dantes não navegados abriram caminho para tantas e tão horríveis devastações”, com a promessa de redenção representada pela Carta de 1826.
Esta narrativa do passado e do futuro de Goa inseria-se num contexto global. Neste sentido, Peres citava pensadores como Montesquieu, Jeremy Bentham e Benjamin Franklin, e incluía várias referências aos sistemas políticos do Reino Unido e, sobretudo, dos Estados Unidos da América. Era nestes exemplos que se inspirava para imaginar a regeneração de Goa, no seio de um império constitucional onde a opinião pública, a separação de poderes, a representação política e o progressivo desaparecimento das barreiras entre raças e castas levariam a que goeses e portugueses beneficiassem, como irmãos, dos “frutos da árvore da constituição”.
Peres regressou a Portugal em 1834, na sequência da vitória liberal na Guerra Civil de 1832-34, e pouco tempo depois foi nomeado por D. Pedro IV para o cargo de prefeito do Estado da Índia, que no novo (e efémero) sistema administrativo proposto por Mouzinho da Silveira deveria substituir o de governador. Pela primeira e única vez, um nativo assumia um lugar cimeiro do governo colonial. O prefeito chegou a Goa no dia 10 de janeiro de 1835 e assumiu o governo quatro dias depois, dando início a uma série de reformas administrativas. Duas semanas mais tarde, no entanto, foi deposto por um golpe militar encabeçado por oficiais portugueses e luso-descendentes. Num clima marcado pelo agudizar das tensões políticas e raciais, os revoltosos acusavam Peres de ser um “implacável inimigo dos brancos” e de pretender a independência de Goa, seguindo o exemplo do Brasil e da conjuração de 1787.
Preso e obrigado a deixar Goa, Peres refugiou-se em Bombaim, onde contou com o apoio da comunidade goesa da cidade e, principalmente, do negociante Sir Roger de Faria, um dos pioneiros do comércio de ópio para a China. Depois de uma tentativa frustrada de montar uma expedição, financiada por Roger de Faria, para recuperar a sua posição em Goa, Peres deixou Bombaim e instalou-se no enclave português de Damão, onde estabeleceu um governo no exílio. Só em 1837 o antigo prefeito regressaria a Goa, depois da chegada de um novo governador enviado do reino. Eleito novamente deputado no ano seguinte, Peres partiu uma vez mais para Lisboa, onde tomou finalmente o seu lugar nas cortes e onde acabaria por falecer em 1844.
Os restos mortais de Bernardo Peres da Silva permanecem numa campa anónima no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa. Em Portugal, a sua memória foi rapidamente esquecida e, duzentos anos depois da revolução liberal de 1820, nenhuma rua ou monumento comemora o único goês a ter governado o Estado da Índia. Em Goa, pelo contrário, até ao início do século XX Peres continuou a ocupar um lugar importante na produção literária e historiográfica das elites católicas. Nas décadas seguintes, porém, a influência crescente do nacionalismo indiano e o fim do colonialismo português levaram a um gradual esquecimento. Hoje em dia, embora exista uma estátua na sua terra natal, Neurá, e um BPS Sports Club em Margão, Peres é uma figura praticamente desconhecida para a maioria dos goeses.
Apesar deste esquecimento, que só agora começa a ser colmatado, o percurso de Bernardo Peres da Silva é representativo das possibilidades e contradições que marcaram a Era das Revoluções. A sua vida atravessou alguns dos momentos importantes deste período à escala transnacional, desde as revoluções liberais da década de 1820 à desagregação dos impérios ibéricos nas Américas, passando pela emergência do que o historiador britânico C. A. Bayly designou como o “pensamento liberal indiano” e até ao desenvolvimento do comércio de ópio, que nos anos seguintes transformaria a história do colonialismo europeu na Ásia. Interligando o Índico e o Atlântico, tantas vezes artificialmente separados pela historiografia, este percurso coloca em evidência a circulação global de ideias e de projetos políticos que caracterizou estas décadas e a forma como eles foram apropriados e reconcetualizados pelas populações coloniais.
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Brujas, Lisboa, Madrid (1930) | Brujas, Lisboa, Madrid (1930) | | |
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Description:María Enriqueta Camarillo y Roa de Pereyra (Coatepec, México, 19 de janeiro de 1872 – Cidade do México, 13 de fevereiro de 1968) fez parte do movimento modernista (Villanueva Eguia Lis 2018), embora na sua obra literária se perceba a influência do Romantismo (Martínez Andrade 2012: 721). Camarillo cresceu num ambiente em que a literatura era de grande importância. A sua mãe, Dolores Roa Bárcenas, escrevia e dedicou-lhe o ensaio A mi pequeña y adorada hijita María Enriqueta (Fiscal 1997: 184-184) e o seu tio José María Roa Bárcena era membro da Academia Mexicana da Língua (Rosenberg 1935: 59). Camarillo é considerada a primeira escritora profissional mexicana (Granillo Vázquez 2016: 1185) e em 1951 foi nomeada para o Prémio Nobel da Literatura. Foi uma autora muito prolífica, que cultivou uma grande variedade de temas, estilos e géneros literários (Rosenberg 1935: 72). Para além de colaborar em revistas e jornais, como no El Universal, no El Mundo Ilustrado e na Revista Azul, publicou contos, romances, poesia, ensaios, relatos de viagens e memórias (Martínez Andrade 2012: 721). Dedicou parte da sua obra às crianças e aos jovens, destacando-se neste âmbito os cinco volumes de Rosas de la infancia, uma antologia ilustrada de poemas e contos que fez parte do programa educativo mexicano até 1960, a pedido do Secretário da Educação Pública, José Vasconcelos (Guerrero e Flores 2022: 54).
A vasta obra de Camarillo teve grande repercussão e reconhecimento por parte da crítica contemporânea (Phillipps-López 2020: 63-64). Para citar um exemplo, o seu romance El secreto (Editorial-América, 1922) ganhou o prémio de melhor romance estrangeiro atribuído pela crítica literária francesa. Foi traduzido para francês por Agathe Valéry e Mathilde Pomès, e publicado na coleção Les Cahiers Féminins (Librairie Bloud & Gay, 1926). Também foi traduzido para português por Dulce L. de Figueiredo (Empresa Literária Fluminense, 1926) e para italiano por Clara Bartolomei (Istituto di Cultura Italo-Ibero-Americano, 1930) (Hernández Palacios 2017).
A par da sua faceta literária, Camarillo obteve o diploma de piano pelo Conservatório Nacional de Música do México (1895). Compôs obras musicais, deu concertos e ministrou aulas de piano (Fiscal 1997: 185). Como veremos adiante, a música está presente de forma significativa na sua obra literária, tanto na musicalidade da sua poesia como na linguagem metafórica que utiliza. Camarillo também deu aulas de espanhol (Martínez Andrade 2012: 723) e traduziu do francês obras de Charles Augustin Sainte-Beuve, Henri F. Amiel, M. A. Bertille de Beuverand de la Loyère (Champol) e Rodolphe Töpffer (Soltero Sánchez 2002: 7).
A sua biografia é marcada por viagens. Devido à eleição do seu pai, Alejo Ambrosio Camarillo Rebolledo, para deputado federal, em 1879 a família mudou-se de Coatepec para a Cidade do México. Alguns anos depois, em 1895, estabeleceram-se em Nuevo Laredo, quando o pai foi nomeado administrador do imposto do timbre (Fiscal 1997, 185). Mais tarde, a partir de 1898, ao casar com Carlos Hilario Pereyra Gómez, historiador hispanista, María Enriqueta Camarillo regressou à Cidade do México. Devido ao trabalho do seu marido como diplomata, residiria também em Cuba, nos Estados Unidos, na Bélgica, na Suíça e em Espanha (Martínez Andrade 2012: 722-723). Regressou ao México em 1948, onde faleceu aos 96 anos (Fiscal 1997: 181).
Camarillo publicou Brujas, Lisboa, Madrid quando vivia em Espanha. No verão de 1913, o casal Pereyra-Camarillo instalou-se em Bruxelas, uma vez que Carlos Pereyra fora nomeado para o cargo de embaixador do México na Bélgica e nos Países Baixos durante o mandato de Victoriano Huerta. Um ano mais tarde, a eclosão da Primeira Guerra Mundial e o derrube do governo de Huertas levou à mudança temporária do casal para Lausanne e, finalmente, para Madrid, em 1916 (Martínez Andrade 2012: 722-723). É neste contexto que se situam no livro as experiências de viagem de Camarillo. Cronologicamente, as notas biográficas sobre Bruges e Madrid podem ser enquadradas nos períodos em que viveu na Bélgica, quando Pereyra era diplomata, e em Espanha, nos primeiros anos do exílio, quando foi surpreendida por situações pitorescas. Em janeiro de 1926, viajou com o seu marido para Portugal, onde passaram um breve período. Nessa altura, Camarillo assinou contrato com a Empresa Literária Fluminense para a tradução e publicação da sua obra, na série intitulada “Coleção Maria Enriqueta”. No final, apenas três volumes foram publicados: o já citado El secreto, Entre el polvo de un castillo e Cuentecillos de cristal (Hernández Palacios 2017). Nas páginas de Camarillo, encontramos uma referência aos revolucionários (Camarrillo 1930: 52), que pode ser interpretada como uma cronologia post quem sobre a instauração da Primeira República Portuguesa (Martínez Andrade 2012: 723).
O capítulo dedicado a Portugal intitula-se “Una mirada a Portugal” e é constituído por duas crónicas ou subcapítulos: “La bella Portugal” e “Calle de Coimbra”. Ao contrário de outros relatos de viagem, Camarillo não oferece informações sobre o percurso ou sobre os monumentos que visitou, mas uma série de pinceladas que ilustram as impressões causadas pelas cores, cheiros e sons das ruas. Manuel Beguer assinalou que “Brujas, Lisboa, Madrid no es una novela más ni es un libro de viajes. No se describen en él esas poblaciones. María Enriqueta quiso tan sólo dar a conocer el alma de esas ciudades, y lo consiguió. Quienes hayan visitado tales sitios comprenderán mejor que nadie el mérito de la obra, que tiene algo de novela, mucho de historia y no poco de poesía” (Dotor 1943: 252).
Ao descrever Lisboa, recorre a uma metáfora musical e caracteriza-a como um lugar de sonho, onde o tempo parou e o Romantismo sobreviveu:
“Pero hablar de Portugal después de visitar a la reina del Norte, es como pasar de un preludio de Chopin a un andante de Mendelssohn. No se parecen Brujas y Lisboa, por ejemplo; mas estemos seguros de que si un mago transformase en mujeres a las dos ciudades, éstas, al encontrarse de pronto, volarían a darse un estrecho abrazo de comprensión y amistad. Es que las dos, por igual, tienen tal vida interior de ensueño y de poesía, que esa atmósfera les brota por los poros, sale dulcemente de ellas, como un vaho, y las envuelve enteras, haciendo que el viajero, al recordarlas, se pregunte, mirando indeciso a lo lejos: / —¿Las he visto, en verdad, o es sólo un engaño de la fantasía?...” (Camarillo 1930: 47-48).
Esta descrição de Lisboa através de um esboço impressionista parece referir-se a uma cidade encantada. É uma forma muito pessoal de apresentar as cidades, parecendo dotá-las de personalidade e sentimentos. É, precisamente, a nostalgia evocada pelas ruas de Lisboa que lhe permite conectar-se com o seu México natal:
“Sí, el reloj de sus torres se paró en lejano tiempo; y Lisboa y sus hermanas sueñan, se idealizan, aman y cantan, viendo el mar a lo lejos con las hermosas pupilas nostálgicas de sus hijos, pupilas en cuyo fondo parecen caber cielos y mares —¡tan grandes son, tan misteriosas, tan hondas!... / (Así son también los ojos mejicanos: inmensos como los horizontes, ardorosos como los ponientes...)” (Camarillo 1930: 48).
A literatura de viagem está impregnada na biografia da escritora. Assim, em diferentes momentos de Brujas, Lisboa, Madrid observa-se que Camarillo se divide entre o aqui (o novo e diferente) e o ali (o conhecido e familiar). As comparações estabelecidas entre a capital portuguesa e o México partem de associações sensoriais e sentimentais. Camarillo caracteriza Portugal a partir da alteridade, através de comparações constantes. Assim, permite ao leitor, mais do que observar pelos seus olhos, sentir o que ela sente. Nesta perspetiva, é mesmo possível falar de uma viagem interior da autora, que se apropria do espaço e se imbui da cultura sendo, ao mesmo tempo, estrangeira. Ao referir-se ao português, faz alusão à sonoridade e inclui, mais uma vez, uma metáfora musical para marcar as diferenças em relação ao espanhol:
“¿Y qué decir del idioma? Que no está fabricado por hombres, sino por abejas. ¡Tal es la miel de su acento y la dulzura de sus inflexiones!... / Alguien dijo que la lengua portuguesa es el español sin huesos. Y esto es verdad; cuidadosamente fueron extraídas las durezas, y el portugués salió por fin como el caño del agua en el pilón, cantante, persuasivo, mimoso, agraciado, convincente, acariciador. / Y ésta es la voz con que habla Portugal, bellamente timbrada en el hombre, dulcemente acentuada en el niño y en la mujer.” (Camarillo 1930: 50-51)
Em “Calle de Coimbra”, Camarillo descreve uma rua. Não oferece informações sobre os edifícios ou sobre as características do mobiliário urbano, mas expressa o que ela inspira, os sentimentos de tempo estagnado que a imagem antiga e romântica lhe provoca. Esta ideia é também observada quando a autora alude à estrutura urbana de Lisboa, pois acredita que, graças a ela, a cidade será capaz de evitar o impacto do progresso do século XX, marcado pelo desenvolvimento dos meios de transporte:
“Estas calles en escalera, tan antiguas, tan románticas, hechas para la leyenda, para ser cantadas en romance, no están ni pueden estar profanadas por los automóviles. […] No rasgarán el ambiente de esas calles los caballos que arrastran berlinas, ni romperá su paz el timbre de las bicicletas. Y como esas calles son angostas, no han de bajar a ellas los aeroplanos... ¡Dichosas mil veces, porque han podido levantar sus puentes levadizos, para impedir que la vida moderna eche abajo lo que el Tiempo labró con mano amante!” (Camarillo 1943: 51-52).
Esta observação mostra possivelmente a resistência de Camarillo às mudanças do século XX e o seu gosto por uma estética romântica de certa forma ancorada no passado (Soltero Sánchez 2002: 360). Nesse sentido, subscrevia a ideia de que num livro de viagens a imaginação e a memória coexistem. Camarillo confessa aos seus leitores que trouxe de Portugal a memória de uma solitária e misteriosa rua de Coimbra:
“¡No vengáis a estos sitios vosotros, los frívolos que sólo sabéis reír!... Aquí, las ventanas y los balcones están cerrados; en ellos no hay mujeres asomadas. La música de vuestras serenatas alegres no conmovería las paredes carcomidas de estas casas legendarias... ¡No vengáis! Esta calle no habla de amor terreno. Mas... si os atraen la soledad, el silencio, el dolor, entonces... ya os daré las señas para que vengáis. / Por ahora, la calle es mía, sólo mía...” (Camarillo 1930: 56)
Depois de uma leitura atenta de “Uma mirada a Portugal”, não restam dúvidas de que a viagem de Camarillo deixou impressões profundas na sua memória. Foi também um marco na sua projeção internacional, uma vez que, além de ter publicado várias obras em português, em 1930 foi nomeada sócia correspondente do Instituto Histórico do Minho (Hernández Palacios 2017). Nesta perspetiva, Brujas, Lisboa, Madrid é um exemplo do carácter transnacional da obra literária de Camarillo.
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