Bernardo Peres da Silva (1775-1844)
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- Bernardo Peres da Silva (1775-1844)
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- Bernardo Peres da Silva nasceu no dia 15 de outubro de 1775, em Neurá-o-Grande, na ilha de Goa (ou Tiswadi), no seio de uma família brâmane católica. A morte dos seus pais deixou-o órfão cedo, e a responsabilidade pela sua educação coube ao seu tio-avô, o Pe. Caetano Peres da Silva. Estudou filosofia e latim no antigo seminário jesuíta de Rachol, entretanto confiado à ordem italiana dos Vicentinos, antes de se formar como médico no Hospital Real Militar, em Panelim, onde terá sido discípulo do físico-mor António José de Miranda e Almeida. No final da década de 1790, casou com Inácia da Conceição de Menezes, com quem teve dez filhos. Também nessa altura, iniciou o seu percurso político no senado da câmara de Goa.
A Goa em que Peres cresceu era uma colónia em mudança. O século XVIII foi marcado pelo declínio de Goa como entreposto do comércio marítimo internacional, pela perda dos territórios da Província do Norte, entre os atuais estados do Maharastra e do Gujarate, pela autonomização administrativa de Moçambique face ao Estado da Índia e por uma ligação cada vez mais ténue aos distantes enclaves de Macau e Timor. Estas perdas territoriais foram compensadas pela expansão das fronteiras da colónia para as regiões que ficariam conhecidas como Novas Conquistas. Entre as décadas de 1760 e 1780, o território de Goa quase triplicou, com a anexação de aproximadamente 2800 km² de terreno, incluindo cerca de 280 aldeias e cem mil pessoas, na sua esmagadora maioria hindus. Apesar disso, no final do século a Índia ocupava um lugar cada vez mais marginal no contexto de um império português crescentemente centrado no Atlântico.
No que diz respeito ao percurso de Bernardo Peres da Silva, no entanto, a mudança mais significativa foi provavelmente o protagonismo crescente das elites católicas goesas na vida política e social da colónia. Desde o século XVI, a conversão das populações locais levara à emergência de uma elite nativa, cristianizada e ocidentalizada, capaz de mobilizar o conhecimento da língua portuguesa e da cultura política europeia para contestar o seu lugar subalterno na ordem colonial. Nas décadas de 1760 e 1770, a ascensão desta elite seria consagrada pela promulgação de medidas que equiparavam formalmente os goeses católicos aos portugueses nascidos no Reino. Na prática, porém, continuavam a existir diversos mecanismos de discriminação, e os goeses estavam impedidos de aceder aos principais cargos da administração colonial.
Quando Peres tinha 12 anos, a tensão entre estas expectativas de igualdade e os seus limites práticos seria posta em evidência pela alegada “Conjuração dos Pintos”, que abalou a colónia em 1787. Os líderes desta suposta conspiração para “expulsar os brancos” e estabelecer uma “nova república” eram militares e clérigos brâmanes, uma parte dos quais tinha estudado em Roma e Lisboa. As suas aspirações assentavam em noções enraizadas de superioridade de casta e de preeminência local. Mas eram também inspiradas pelo exemplo recente da Revolução Americana, sobre a qual alguns dos implicados confessavam ter lido, e pela circulação transnacional de uma linguagem política que enfatizava temas como “liberdade” e “felicidade pública”.
A alegada conspiração foi brutalmente reprimida pelas autoridades portuguesas. Mais tarde, depois de mais de uma década de ocupação britânica da colónia (entre 1799 e 1813, no contexto das Guerras Napoleónicas), as tensões reacender-se-iam com a chegada das notícias da revolução liberal de 1820. Os primeiros rumores sobre o pronunciamento militar que tivera lugar no Porto no dia 24 de agosto daquele ano, exigindo o regresso do rei D. João VI do Brasil e a promulgação de uma constituição, chegaram a Goa em março do ano seguinte, por via da imprensa britânica e de cartas enviadas de Bombaim e de Bengala. Estes rumores foram recebidos com entusiasmo pelo pequeno núcleo liberal existente na colónia, composto por funcionários e militares portugueses, por luso-descendentes e por alguns goeses católicos, que desde o final da década de 1810 circulavam entre si exemplares do jornal O Portuguez, editado em Londres por Rocha Loureiro, assim como cópias da Constituição de Cádis de 1812.
Os acontecimentos que se seguiram reproduziam, em grande medida, o guião dos movimentos revolucionários do sul da Europa, recentemente analisados por Maurizio Isabella (2023). Na madrugada do dia 16 de setembro de 1821, o palácio do governo, em Pangim, foi cercado por centenas de soldados de vários regimentos. O vice-rei, D. Diogo de Sousa, conde de Rio Pardo, foi deposto e, no seu lugar, foi eleita uma junta provisional de governo. Ao raiar da manhã, foram lidas proclamações aos soldados e ao povo, em que os revoltosos anunciavam o fim da “tirania” e do “despotismo”, ao som de vivas ao rei, à nação e à constituição. Nos dias seguintes, a junta ordenou ainda que se adotasse provisoriamente a Constituição de Cádis, até que estivesse finalizada a elaboração de um texto constitucional português.
Bernardo Peres da Silva, então já com mais de 40 anos, desempenhou um papel importante nestes acontecimentos. Foi em sua casa que tiveram lugar algumas das reuniões que antecederam o pronunciamento, e foi por via dos seus contactos com a comunidade goesa de Bombaim que os conspiradores se mantiveram a par das notícias do Reino. Mais foi com a eleição dos representantes da colónia às cortes constituintes, que Peres se afirmou como a principal figura do primeiro liberalismo em Goa. A eleição decorreu de forma indireta, e só as províncias – maioritariamente católicas – das Velhas Conquistas tomaram parte. Em janeiro de 1822, os eleitores escolheram Peres como um dos três deputados do Estado da Índia, na companhia de outro brâmane católico, Constâncio Roque da Costa, e do médico português António José de Lima Leitão, veterano da legião portuguesa que servira nos exércitos napoleónicos.
Os três deputados tiveram uma viagem atribulada até ao Reino, através de um império em ebulição. Temporariamente detidos no Brasil, no rescaldo da independência da colónia sul-americana, chegaram a Lisboa em maio de 1823, onde testemunharam o colapso da primeira experiência constitucional portuguesa, na sequência da revolta da Vilafrancada. Peres permaneceu em Lisboa durante o ano seguinte, endereçando várias memórias sobre a situação política e económica de Goa ao rei D. João VI e aos seus ministros. Segundo os informadores da coroa, terá também consagrado o seu tempo à leitura de livros “subversivos” sobre os “princípios desorganizadores” do liberalismo constitucional e, pelas referências citadas nos seus escritos, das obras de economistas políticos franceses, como Jean-Baptiste Say e Antoine Destutt de Tracy. Regressou a Goa em 1825, nomeado intendente de agricultura da colónia, sendo acompanhado por instruções secretas para que fosse mantido sob vigilância apertada.
Impedido de assumir o cargo para que fora nomeado, Peres voltou a ser eleito deputado em 1827, na sequência da promulgação da Carta Constitucional de 1826. Mas, uma vez mais, quando desembarcou em Lisboa o curto interlúdio constitucional já tinha sido interrompido pela restauração do regime absolutista. Forçado a deixar Portugal, rumou primeiro a Inglaterra e depois ao Brasil, juntando-se assim à “internacional liberal” de exilados políticos espalhados pela Europa e pelas Américas, no rescaldo das revoluções e contrarrevoluções da década de 1820.
Foi durante o exílio brasileiro que escreveu a sua principal obra doutrinária, o Dialogo entre um Doutor em Philosophia e um Portuguez da India na cidade de Lisboa sobre a constituição politica do Reino de Portugal. Publicado em 1832, no Rio de Janeiro, este curto panfleto apresentava-se como uma defesa da Carta Constitucional. Mais do que nos debates teóricos sobre os méritos dos diferentes modelos constitucionais, no entanto, o Dialogo centrava-se numa narrativa da narrativa da história de Goa que contrastava o despotismo e a violência que tinham pautado os 300 anos de domínio colonial, desde que os portugueses “sulcando primeiro que outros mares dantes não navegados abriram caminho para tantas e tão horríveis devastações”, com a promessa de redenção representada pela Carta de 1826.
Esta narrativa do passado e do futuro de Goa inseria-se num contexto global. Neste sentido, Peres citava pensadores como Montesquieu, Jeremy Bentham e Benjamin Franklin, e incluía várias referências aos sistemas políticos do Reino Unido e, sobretudo, dos Estados Unidos da América. Era nestes exemplos que se inspirava para imaginar a regeneração de Goa, no seio de um império constitucional onde a opinião pública, a separação de poderes, a representação política e o progressivo desaparecimento das barreiras entre raças e castas levariam a que goeses e portugueses beneficiassem, como irmãos, dos “frutos da árvore da constituição”.
Peres regressou a Portugal em 1834, na sequência da vitória liberal na Guerra Civil de 1832-34, e pouco tempo depois foi nomeado por D. Pedro IV para o cargo de prefeito do Estado da Índia, que no novo (e efémero) sistema administrativo proposto por Mouzinho da Silveira deveria substituir o de governador. Pela primeira e única vez, um nativo assumia um lugar cimeiro do governo colonial. O prefeito chegou a Goa no dia 10 de janeiro de 1835 e assumiu o governo quatro dias depois, dando início a uma série de reformas administrativas. Duas semanas mais tarde, no entanto, foi deposto por um golpe militar encabeçado por oficiais portugueses e luso-descendentes. Num clima marcado pelo agudizar das tensões políticas e raciais, os revoltosos acusavam Peres de ser um “implacável inimigo dos brancos” e de pretender a independência de Goa, seguindo o exemplo do Brasil e da conjuração de 1787.
Preso e obrigado a deixar Goa, Peres refugiou-se em Bombaim, onde contou com o apoio da comunidade goesa da cidade e, principalmente, do negociante Sir Roger de Faria, um dos pioneiros do comércio de ópio para a China. Depois de uma tentativa frustrada de montar uma expedição, financiada por Roger de Faria, para recuperar a sua posição em Goa, Peres deixou Bombaim e instalou-se no enclave português de Damão, onde estabeleceu um governo no exílio. Só em 1837 o antigo prefeito regressaria a Goa, depois da chegada de um novo governador enviado do reino. Eleito novamente deputado no ano seguinte, Peres partiu uma vez mais para Lisboa, onde tomou finalmente o seu lugar nas cortes e onde acabaria por falecer em 1844.
Os restos mortais de Bernardo Peres da Silva permanecem numa campa anónima no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa. Em Portugal, a sua memória foi rapidamente esquecida e, duzentos anos depois da revolução liberal de 1820, nenhuma rua ou monumento comemora o único goês a ter governado o Estado da Índia. Em Goa, pelo contrário, até ao início do século XX Peres continuou a ocupar um lugar importante na produção literária e historiográfica das elites católicas. Nas décadas seguintes, porém, a influência crescente do nacionalismo indiano e o fim do colonialismo português levaram a um gradual esquecimento. Hoje em dia, embora exista uma estátua na sua terra natal, Neurá, e um BPS Sports Club em Margão, Peres é uma figura praticamente desconhecida para a maioria dos goeses.
Apesar deste esquecimento, que só agora começa a ser colmatado, o percurso de Bernardo Peres da Silva é representativo das possibilidades e contradições que marcaram a Era das Revoluções. A sua vida atravessou alguns dos momentos importantes deste período à escala transnacional, desde as revoluções liberais da década de 1820 à desagregação dos impérios ibéricos nas Américas, passando pela emergência do que o historiador britânico C. A. Bayly designou como o “pensamento liberal indiano” e até ao desenvolvimento do comércio de ópio, que nos anos seguintes transformaria a história do colonialismo europeu na Ásia. Interligando o Índico e o Atlântico, tantas vezes artificialmente separados pela historiografia, este percurso coloca em evidência a circulação global de ideias e de projetos políticos que caracterizou estas décadas e a forma como eles foram apropriados e reconcetualizados pelas populações coloniais.
- Creator
- Ferreira, José Miguel
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Abstract
- Médico, revolucionário, deputado, exilado político e estadista, Bernardo Peres da Silva é hoje praticamente desconhecido fora do círculo restrito dos especialistas na história de Goa. Durante 18 curtos dias do mês de janeiro de 1835, no entanto, Peres foi o primeiro e único goês a ter nas mãos as rédeas do governo da colónia. Ponto culminante de uma vida atribulada, que atravessou três continentes, o breve governo de Peres torna-o uma figura singular na história global do período que os historiadores convencionaram designar como a Era das Revoluções. O seu percurso como defensor do liberalismo constitucional e crítico feroz do despotismo colonial é demonstrativo das possibilidades abertas pelo terramoto político e conceptual desencadeado pelas crises e revoluções que marcaram a viragem do século XVIII para o século XIX. Mas é também revelador dos limites da emancipação política num sistema colonial.
- Date Issued
- 11-11-2024
- References
- Abreu, Miguel Vicente de (1862). Relação das alterações políticas de Goa, desde 16 de Setembro de 1821 até 18 de outubro de 1822. Nova Goa: Imprensa Nacional.
Bayly, C. A. (2012). Recovering Liberties. Indian Thought in the Age of Liberalism and Empire. Cambridge: Cambridge University Press.
Isabella, Maurizio (2023). Southern Europe in the Age of Revolutions. Princeton: Princeton University Press.
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Collection
Citation
Ferreira, José Miguel, “Bernardo Peres da Silva (1775-1844),” Connecting Portuguese History, accessed November 21, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/30.