Trabalho doméstico
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- Trabalho doméstico
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- Durante séculos, o conceito ocidental de família encontrou fundamento no “tripé do patriarcado”, exercido sobre três formas de subordinação: da mulher perante o homem, do filho perante o pai, do criado perante o amo. Para a crítica das duas primeiras formas de subordinação, destaca-se o papel do feminismo para a erosão do modelo patriarcal, ou dos estudos históricos e sociológicos que conduziram à progressiva valorização ontológica e social da criança enquanto portadora de direitos próprios. A última forma de subordinação não ocupou, contudo, uma história das ideias com o mesmo peso das primeiras duas. Em Portugal, na década de 1950 ainda era possível encontrar a apologia do serviçal doméstico enquanto naturalmente obediente, e inferior, ao seu Senhor. A partir do final da década de 1960, as palavras “serviçal” ou “criada” foram substituídas por “trabalhador(a)/empregada (o) doméstica(o)”. Apesar da mudança na nomenclatura, este trabalho continuou a manter traços de servilismo, pois que acorrentado à sua natureza informal, invisível e difícil de escrutinar pelas leis do trabalho. À escala global, as sociedades sustêm formas de subordinação destes trabalhadores ao arrepio de quaisquer direitos e, por essa razão, a história do trabalho doméstico é uma de perpetuação de desigualdades de género, de classe e de raça sem rival. Em Portugal, uma mulher que fosse trabalhadora doméstica interna, na década de 1950, podia continuar a ser declarada como “não-remunerada”, desde que, trabalhando por conta de um não-parente, não recebesse remuneração, embora retribuída com cama e mesa. Porém, esta forma de desvalorização não é recente. Fatores históricos, sociais, económicos e culturais justificam-na.
O arranque dos processos de industrialização num conjunto de países da Europa Ocidental, desencadeados a partir dos finais do século XVIII, assinala os primeiros movimentos migratórios em massa do campo para a cidade. Aconteceu em Inglaterra, França, Alemanha, Espanha, como também em Portugal, com importantes variações de cronologia. Estas travessias humanas estão bem assinaladas na narrativa histórica dominante. Porém, tal narrativa tende a escamotear a dupla face, feminina e masculina, das migrações. Se os camponeses chegavam à orla das cidades para trabalhar nas fábricas, fortalecendo o ideal da masculinidade obreira e produtiva, jovens camponesas destituídas de mais qualidades além de serem mulheres sem alfabeto partiam à procura de trabalho doméstico. A revolução silenciosa provocada por trabalhadores que, no campo, se agarravam às ervas para terem o que comer, mas dali fugiram, é de enorme relevância para a história do trabalho doméstico. É a partir desse momento histórico que irá começar a sua progressiva desvalorização, ligada a uma crescente feminização e não-especialização, plasmadas na reconhecida categoria de “criadas para todo o serviço”, recrutadas por famílias de classe média. Correspondendo a um padrão de “life-cycle servant” (Laslett 1977), jovens raparigas, muitas vezes ainda crianças, iniciavam trabalho no espaço privado, ficando subordinadas à tutela dos amos, a maior parte das vezes até contraírem matrimónio, outras vezes contribuindo para as estatísticas do celibato feminino, unidas por laços de fidelidade aos senhores da casa. O recrutamento de crianças menores de 12 anos para o serviço doméstico é uma realidade que, na década de 1940, colhe mais de 15% do total de recrutamento de criados em Portugal. Afinal, esta é a causa que explica a raiz da palavra “criada”, pois que os patrões assumiam o dever de “criar” os criados da casa, e o ordenamento jurídico atribuía aos primeiros poderes de proteção, cuidado e tutela, correção e punição sobre os últimos (Código Civil de 1867).
O trabalho doméstico representou um grupo ocupacional maioritário nos séculos XIX e na primeira metade do século XX em muitos países do continente europeu. Era o destino previsível de muitas mulheres a quem a escola havia sido negada e cujo horizonte de expectativas acabava na condição de jornaleira, se não mendiga, sujeita às estações da fome e do frio. O facto de se tratar de um trabalho portas adentro, em coabitação com os patrões, não facilitou o processo de formação de uma consciência de classe coletiva, como também não suscitou o interesse dos sindicatos. O primeiro sindicato, o London and Provincial Domestic Servants’ Union, inaugurado na Oxford Street, é constituído em 1890 (Adams 1989), mas irá embater contra um conjunto enorme de adversidades, em especial o facto de este trabalho não ser interpretado da mesma forma que outros. Em Portugal, o Sindicato do Serviço Doméstico, desvinculado de uma orientação católica, surgiu apenas após a queda do regime salazarista, ao contrário do Sindicato Livre das Empregadas Domésticas, de certa forma ainda dependente da Obra de Santa Zita, cujo papel não deve ser escamoteado. De pendor assistencialista, e ligado à Ação Católica Portuguesa, desenvolveu desde o início da década de 1930 múltiplas ações de alfabetização, catequização, formação profissional e abrigo, à semelhança de instituições congéneres na Europa.
Além de não colherem apoio de organismos representativos na esfera laboral, as trabalhadoras domésticas foram continuamente estigmatizadas como desobedientes, falhas de carácter moral, usurpadoras e predadoras sexuais quando, ironicamente, se encontram sobrerrepresentadas nas estatísticas de vítimas de doenças venéreas, de abandono ou de mães solteiras. Este conjunto de estereótipos não se esvaneceu; no início do século XX, foi declarado um problema social. Com efeito, em 1911, “The servant roblema” foi definido pelo Dicionário de Oxford como “a dificuldade de obter e controlar criadas” (Todd 2014). Quatro décadas mais tarde, em Portugal a questão foi enunciada em moldes semelhantes, levando à mobilização de debates parlamentares, relatórios médicos, ensaios eclesiásticos, relatórios policiais e testemunhos patronais. Sem exceção, diversas forças sociais denunciavam a crescente desobediência das trabalhadoras domésticas. Um jovem proprietário da região de Estremoz chegou a endereçar uma carta a António de Oliveira Salazar em torno do iminente perigo de os criados quererem tomar o lugar dos patrões, num gesto de temerosa vingança e inversão da ordem natural das coisas (Brasão 2012: 155). Ao contrário destes receios, não se verificou qualquer sublevação desta classe profissional, e as condições de trabalho não se alteraram. Mas a enunciação do problema das criadas revelava, afinal, que os termos da negociação das condições materiais e imateriais de trabalho estavam a deixar de ser exclusivamente unilaterais. Por outro lado, a enunciação do “problema das criadas” revela aspetos que nos fazem refletir sobre a relação entre a feminização do trabalho e a progressiva degradação e precarização das trabalhadoras, relembrando que, no passado, os criados eram usados como símbolo de status, por oposição às serviçais, em regra menos expostas ao círculo social de visita à casa.
O trabalho doméstico remunerado tem um peso significativo nos sistemas sociais, nomeadamente na economia dos cuidados, mas não é acompanhado de reconhecimento económico, social e simbólico correspondente. Este paradoxo é tanto mais penalizador quanto podemos aceitar que ele tem um valor incalculável para as sociedades contemporâneas, assegurando que múltiplos estratos sociais possam emprestar maior qualidade ao tempo livre de que dispõem, sem esgotarem as suas forças na domesticidade reprodutiva ligada à manutenção, higiene, limpeza, alimentação, vigília e cuidado dos mais vulneráveis, no seio da família. Por outro lado, a narrativa histórica do trabalho doméstico permite identificar uma das maiores revoluções na história das mulheres, até há pouco igualmente negligenciada. É justamente à custa da massificação do trabalho doméstico que se deu de forma mais acelerada a emancipação das mulheres de classe média para o mercado de trabalho (tanto na Europa, como na América).
Numa fase mais recente, pós-colonial, o recrutamento traduz-se numa forma transmigratória, reproduzindo formas de dominação e de subalternidade em países terciarizados do Norte Global, que voltam a ir colher jovens raparigas e rapazes a países empobrecidos. Países outrora subjugados pelas potências colonizadoras exportam mão-de-obra doméstica para as antigas potências colonizadoras. Os Estados resistem a reconhecer este trabalho, deixando na escuridão e desproteção uma massa predominantemente formada por mulheres. De acordo com a OIT, o trabalho doméstico representa atualmente uma das mais importantes ocupações para milhões de pessoas. Dos 75,6 milhões de pessoas a trabalhar nesta atividade em todo o mundo, 76,2% são mulheres; desse total, apenas 6% tem direito a proteção social de algum tipo. E, ironicamente, a virtude do silêncio surge como a mais distintiva qualidade que um trabalhador doméstico deve cultivar no exercício da sua atividade.
- Creator
- Brasão, Inês
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Abstract
- Sensivelmente desde finais do século XVIII que a chegada de camponeses à orla das cidades para trabalharem em fábricas foi acompanhada da migração de jovens camponesas à procura de trabalho doméstico. Os contornos da sua inscrição na vida privada têm sido marcados por uma grande invisibilidade, hoje igualmente notória num contexto pós-colonial, com a deslocação de trabalhadoras domésticas jovens, provenientes de países empobrecidos, para países com economias terciarizadas, do Norte Global.
- Date Issued
- 7-11-2024
- References
- Adams, Samuel & Sarah Adams (1989 [1825]). The Complete Servant, (Ann Haly, ed.), Frome, Somerset: Southover Press.
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Collection
Citation
Brasão, Inês, “Trabalho doméstico,” Connecting Portuguese History, accessed November 21, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/29.