Cortiça

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- Cortiça
- Abstract
- No século XX, Portugal tornou-se líder mundial no setor corticeiro, cuja receita provém da exportação de produtos derivados desta matéria-prima. Sendo um negócio internacionalizado, a presença de agentes económicos estrangeiros, sobretudo no século XIX, foi essencial para o seu desenvolvimento. Esta entrada resume a evolução do setor da cortiça em Portugal no período contemporâneo, destacando as constantes ligações transnacionais que têm contribuído para sustentar um dos principais setores da economia portuguesa.
- Description
- A cortiça é a casca do sobreiro, uma árvore que apenas prospera nas regiões do Mediterrâneo Ocidental, onde, devido à influência do oceano Atlântico, a amplitude das oscilações térmicas e a aridez estival do clima mediterrânico são ligeiramente atenuadas. Na convergência entre o Mediterrâneo e o Atlântico, o território português tem apresentado as melhores condições edafoclimáticas para desenvolvimento de matas de sobreiro, o que também sucede em algumas regiões raianas de Espanha, como a Extremadura e a Andaluzia (Natividade 1950: 33-37). A extração de cortiça não implica o abate da árvore e, no quadro do sistema agro-silvo-pastoril extensivo em que o sobreiro tem sido explorado desde o século XIX (designado em Portugal por montado e em Espanha por dehesa), tem um impacto ambiental francamente positivo, contribuindo para o sequestro de gases com efeito de estufa e para a manutenção da biodiversidade. Com várias propriedades notáveis como a impermeabilidade, a elasticidade, a elevada capacidade de isolamento térmico e acústico, e a lenta combustão, a cortiça tem sido aplicada em diversas finalidades desde a Antiguidade – de vedante para líquidos à construção civil, da produção de boias e artefactos de pesca à indústria automóvel e aeroespacial.
Todavia, esta matéria-prima só conheceu um valor de mercado significativo a partir do século XVIII, em virtude do crescimento do comércio internacional vinícola, iniciando-se aí o período em que a rolha de cortiça se tornou no produto industrial corticeiro dominante (Zapata Blanco 2002). Embora a historiografia assinale a existência de atividades de extração e comercialização de cortiça em Portugal desde, pelo menos, o início da época moderna (Beirante 2021), o negócio corticeiro só progrediu consideravelmente no século XIX. O contributo de empresários e de trabalhadores provenientes de regiões europeias onde a indústria já estava bem estabelecida trabalhando cortiça proveniente maioritariamente da Península Ibérica – como Inglaterra, Escócia e Catalunha – parece ter sido essencial, tanto na abertura de fábricas, especialmente as de maiores dimensões e tecnologicamente mais avançadas, como na introdução de algumas técnicas de fabrico manual de rolhas, caso do cutelo fixo, de origem catalã, e do cutelo móvel, de raízes britânicas. Estudos recentes têm valorizado igualmente o papel pioneiro e relevante das populações do Algarve (Faísca & Jerónimo 2023).
Ao longo de Oitocentos, a fileira da cortiça cresceu de forma acelerada, tornando-se responsável por uma das mais importantes exportações portuguesas. No entanto, tendo-se iniciado depois das restantes indústrias corticeiras europeias, a indústria portuguesa apresentou sempre uma dimensão e uma capacidade produtiva bastante inferiores do que a localizada em Espanha, ou até em países não-produtores onde restrições ecológicas impediam o desenvolvimento do sobreiro – como o Reino Unido, os Estados Unidos da América e a Alemanha (Vöth 2009). O aglomerado de cortiça, patenteado no final do século XIX e produzido industrialmente nas primeiras décadas de Novecentos, com maiores exigências de capital, não alterou este cenário. Sobretudo após o fim da Primeira Guerra Mundial, o número de aplicações de cortiça multiplicou-se, passando a incluir, por exemplo, a produção de isolantes térmicos e acústicos para a construção civil, a indústria automóvel, a aeronáutica e, desde a década de 1960, a aeroespacial.
A partir de meados do século XX, em resultado de um processo cujos contornos já eram visíveis no final do século XIX, Portugal consolidou-se como líder mundial no setor da cortiça, em todas as suas vertentes: exploração florestal, transformação industrial e comércio. A historiografia económica aponta como fatores determinantes para esta mudança a maior disponibilidade de matéria-prima, tanto em quantidade como em qualidade; a substituição, nos países mais industrializados, da cortiça por produtos sintéticos; e, em relação a Espanha, a maior abertura da economia portuguesa ao exterior, o que favoreceu um setor essencialmente exportador, bem como uma política económica mais favorável (Parejo Moruno 2010). É de salientar que, a partir de 1910, a política aduaneira portuguesa incentivou a exportação de cortiça transformada, em detrimento da cortiça em bruto. Em contraste, em Espanha, sobretudo a partir da década de 1930, o lobby dos produtores florestais conseguiu alcançar o oposto (Parejo Moruno 2010). Além disso, a política florestal portuguesa, que até então tinha dado prioridade a outras espécies, como o pinheiro – apesar de o potencial económico do sobreiro ter sido reconhecido ainda em meados do século XIX –, promoveu a reflorestação e a expansão da área de sobro através do Plano de Fomento Suberícola, em 1954 (com impacto limitado), e do Fundo de Fomento Florestal, em 1965, que trouxe resultados mais significativos (García Pereda 2008).
Também no século XX, o centro da investigação científica sobre o sobreiro e a cortiça deslocou-se de Espanha para Portugal, com a contribuição, por exemplo, da Estação Experimental do Sobreiro, criada em 1930, ou da Junta Nacional de Cortiça, fundada em 1936. Enquanto no século XIX se destacou o trabalho de Primitivo Artigas y Teixidor, autor da obra El alcornoque y la industria taponera, publicada em 1875, no século XX surgem figuras como Jaime Salazar Sampaio e, sobretudo, Joaquim Vieira Natividade, cuja obra magna, Subericultura, data de 1950. O seu impacto internacional é atestado pelas traduções para espanhol, francês e italiano, ainda na década de 1950. Com o aumento da cooperação científica internacional, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, Portugal assumiu papel preponderante na investigação suberícola, materializado, por exemplo, na presidência do Grupo Permanente de Trabalho para as Questões Suberícolas da FAO, cuja primeira reunião decorreu em Lisboa, em 1951, com a participação de representantes de França, Itália, Espanha e Marrocos (García Pereda 2008). Atualmente, a fileira da cortiça contribui com mais de 1.200 milhões de euros por ano em exportações, com o grupo empresarial liderado pela Corticeira Amorim, S.G.P.S. a ocupar a posição de líder mundial no setor.
Se a geografia do negócio corticeiro se alterou a nível internacional, o mesmo ocorreu no contexto português (Faísca & Parejo Moruno 2023). Embora as áreas de produção florestal se tenham mantido relativamente estáveis (com especial relevo para as regiões a sul do rio Tejo, no Alentejo e, em menor medida, no Algarve), a indústria conheceu, ao longo de dois séculos, três localizações distintas. Até ao início do século XX, o “fabrico de cortiça” situava-se maioritariamente no Alentejo, junto da matéria-prima (em áreas pró Portalegre, Montemor-O-Novo ou Évora), e no Algarve, nas zonas serranas do eixo Silves-Portimão e de São Brás de Alportel-Faro. Na véspera da Primeira Guerra Mundial, já a cintura industrial de Lisboa concentrava a maior parte das unidades e dos trabalhadores da indústria corticeira, com especial destaque para os concelhos vizinhos na margem sul do Tejo (Almada, Seixal ou Montijo) e alguns bairros da própria capital (como o Poço do Bispo ou os Olivais). A partir da década de 1960, nova mudança ocorre, com a concentração da indústria em torno de Santa Maria da Feira, na região do Porto, e a concomitante ascensão do Grupo Amorim.
A primeira alteração da geografia é relativamente fácil de entender, inserindo-se no fenómeno generalizado de concentração industrial junto das grandes áreas urbanas. Com a queda dos custos de transporte (associada, por exemplo, à expansão da ferrovia) e dos custos de informação, que permitiram a presença de representantes das principais empresas nas áreas de produção florestal, a indústria corticeira instalou-se na maior área urbana de Portugal, beneficiando de um melhor acesso ao mercado de trabalho, bem como aos mercados de consumo através do transporte marítimo a partir do porto de Lisboa. A maior oferta de bens e serviços técnicos especializados relacionados com a transformação industrial da cortiça, juntamente com a maior concentração empresarial, terá levado também a uma redução nos custos de transação, dado que há evidências de uma forte cooperação na indústria da cortiça (Faísca & Parejo Moruno 2023).
Já a deslocalização para norte e, especificamente, para Santa Maria da Feira tem sido objeto de intenso debate, devido principalmente ao significativo afastamento geográfico dos centros de produção de matéria-prima. Entre os fatores destacados pela historiografia económica, encontram-se o menor custo da mão-de-obra, uma maior especialização na produção de rolhas de cortiça natural (em oposição ao aglomerado produzido sobretudo no Sul, que sofreu um retrocesso nas décadas de 1970 a 1990 face à concorrência de produtos sintéticos) e até mesmo uma menor conflituosidade social e laboral, que afetou especialmente a área industrial de Lisboa na segunda metade da década de 1970. Foi durante este período que o Grupo Amorim se consolidou como a maior empresa mundial do setor, e é possível que o seu sucesso tenha influenciado positivamente outras corticeiras de pequena e média dimensão em Santa Maria da Feira, em virtude das conexões empresariais. Esta tese é sustentada pelo modelo de aglomeração observado, com o Grupo Amorim a servir como âncora para várias empresas ao seu redor. Neste contexto, fatores pessoais relacionados com a história da família Amorim também podem ter desempenhado um papel decisivo, algo que a teoria económica reconhece, dada a abundância de exemplos internacionais em que a pura racionalidade económica não é o principal determinante na escolha da localização empresarial. - Creator
- Faísca, Carlos Manuel
- Relation
- Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Interdisciplinares – CEIS20
- Date Issued
- 21-01-2025
- References
- Beirante, Maria Ângela (2021). “A presença da cortiça no património construído da Ordem de Avis, em terras do Alto Alentejo, no início da Idade Moderna.” Fragmenta Historia: História, Paleografia e Diplomática 9, pp. 51-84. https://ceh.fcsh.unl.pt/revista/revista_numero_2021.html
Faísca, Carlos Manuel e Francisco Parejo Moruno (2023). “From the raw materials to where the industry happens. Patterns of industry location in the Portuguese cork manufacturing industry, 1880–1980”. Rubrica Contemporanea 23. https://doi.org/10.5565/rev/rubrica.273
Faísca, Carlos Manuel e Rui Jerónimo (2023). “Contribuição Algarvia para a génese e desenvolvimento do setor corticeiro português, séculos XIX e XX”. Revista Portuguesa de História LIV, pp. 219-242. https://doi.org/10.14195/0870-4147_54_9
García Pereda, Ignacio (2008). Joaquim Vieira Natividade, 1899-1869: ciência e política do sobreiro e da cortiça. Lisboa: Euronatura.
Natividade, Joaquim Vieira (1950). Subericultura. Lisboa: Ministério da Economia.
Parejo Moruno, Francisco (2010). El negocio corchero en España durante el siglo XX. Madrid: Banco de España.
Vöth, Andrëas (2009). “Cambios en la geografía del corcho en Europa”. In Zapata Blanco, Santiago (org.) Suredes i indústria surera: avui, ahir i demà = Alcornocales e industria corchera: hoy, ayer y mañana = Cork oak woodlands and cork industry: present, past and future. Barcelona: Museo del Suro de Palafrugell, pp. 568-594.
Zapata Blanco, Santiago (2002). “Del suro a la cortiça: el ascenso de Portugal a primera potencia corchera del mundo”. Revista de Historia Industrial 22, pp. 109-137.
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Citation
Faísca, Carlos Manuel, “Cortiça,” Connecting Portuguese History, accessed March 7, 2025, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/98.
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