Novos Movimentos Sociais
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- Novos Movimentos Sociais
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- Durante os chamados “Longos Anos Sessenta” (aproximadamente entre 1955 e 1975), as mobilizações sociais diferenciaram-se em várias partes do mundo, mostrando a emergência de novos conflitos, ou evidenciando a existência de clivagens até então ignoradas ou despercebidas. Esta “efervescência” impactou as identidades, as reivindicações, as estratégias dos atores dos conflitos nacionais e internacionais, abrindo novos processos e acelerando outros. Ao lado das reivindicações económicas, que tinham caracterizado o conflito social e político até então, apareceram ou aprofundaram-se outras temáticas – como os direitos de género e das minorias, a questão ambiental, o pacifismo, a libertação sexual – com especificidades próprias consoante os países e as áreas geográficas.
Face a estes processos, os dois modelos interpretativos do conflito então prevalecentes nas ciências sociais – o estrutural-funcionalista e o marxista – cedo demonstraram dificuldades. As ferramentas analíticas destas tradições tinham sido forjadas à volta de conflitos económicos, mas não estavam preparadas para analisar as novas clivagens que surgiram nos anos 1960. A reação a estas limitações teóricas assumiu formas diferentes na Europa e nos Estados Unidos da América, devido não só a distintas tradições de pensamento, mas também a especificidades do próprio objeto de estudo. Nos EUA, a maioria das organizações nascidas das vagas de protesto da década de 1960 assumiu rapidamente características pragmáticas. Na Europa, os movimentos sociais mantinham características herdadas de fortes movimentos operários nacionais, bem como uma conotação ideológica vincada, associada a traços marcadamente anti-sistémicos (della Porta e Diani 1995). Estas disparidades refletiram-se em abordagens que tomaram formas diferentes nos dois continentes. Se nos EUA o foco incidiu sobretudo sobre a dimensão racional dos movimentos e sobre a sua relação com o processo político, a resposta das ciências sociais europeias aos movimentos dos anos 1960 e 1970 passou pela elaboração da “teoria dos novos movimentos sociais”. Autores como Alain Touraine, Alberto Melucci ou Claus Offe salientaram que, diferentemente do movimento operário, os novos movimentos sociais não se limitavam a reivindicações materiais e a exigir a intervenção do Estado para garantir o bem-estar e a segurança, mas incidiam sobre valores ligados à afirmação da sua própria identidade cultural, resistindo à expansão da intervenção estatal na esfera do quotidiano.
Esta visão dos novos movimentos foi fundamental para dar nome a uma série de fenómenos e de atores emergentes. A reflexão que se desenvolveu nas décadas seguintes, no entanto, veio a reconhecer a intersecção dos diferentes eixos conflituais e a interdependência entre reivindicações materialistas – com base económico-social) e pós-materialistas (de base cultural, política, identitária). Este reconhecimento é particularmente importante quando estudamos contextos autoritários, como os países da Europa do Sul que, durante os “Longos Anos Sessenta”, ainda viviam em ditadura: casos como Portugal e Espanha, cujos regimes haviam subsistido à queda dos fascismos europeus, após a 2ª Guerra Mundial, ou como a Grécia, regime autoritário de formação mais recente. Apesar de estarem submetidos a ditaduras, estes países também foram atravessados por fortes mobilizações sociais, que partilhavam muitas das características dos movimentos dos longos anos Sessenta no resto do mundo. É certo que algumas das causas centrais dos “novos movimentos sociais” (como as reivindicações feministas e ambientais, os direitos homossexuais, a libertação cultural e sexual, entre outras) se difundiram apenas depois das transições para a democracia, sobretudo porque as reivindicações políticas, ligadas ao fim da ditadura, tinham prioridade; ainda assim, aspetos como a emergência de uma nova esquerda (Cardina 2011), ligada também à mudança de costumes e de práticas culturais, coincidiram com as fases finais dos regimes autoritários português, espanhol e grego, tendo sido parte do fenómeno de multiplicação das forças de oposição às ditaduras.
O caso de Portugal é, neste sentido, bastante emblemático. Os movimentos estudantis que se intensificaram no país a partir dos finais dos anos 1950, e sobretudo do início dos anos 1960, começaram por contestar a falta de liberdade académica, para chegarem rapidamente a uma crítica mais explicita ao regime vigente. Durante a última década do Estado Novo, as reivindicações de cariz “cultural” assumiram um papel muito relevante e estavam associadas a uma crítica aberta ao ambiente abafador, provinciano e conservador do regime. Estas reivindicações eram acompanhadas pela procura crescente de produtos culturais “alternativos” (muitas vezes censurados), que tinham com frequência uma dimensão explicitamente política, como era o caso de muitas obras produzidas em Portugal no campo da música, da literatura, ou das artes visuais.
A oposição contra o Estado Novo enriqueceu-se ainda, durante os anos 1960 e o início dos anos 1970, com as novas posições anticoloniais. Se, por um lado, estas eram obviamente motivadas pelo contexto das guerras portuguesas em África (iniciadas em 1961), eram também inspiradas, de forma crescente, por discursos e reflexões internacionais, como as elaboradas pelos próprios movimentos de libertação, ou por autores como Frantz Fanon. Em 1968, em Lisboa, foi organizada a primeira manifestação contra a guerra do Vietname. Se ela pode ser entendida como uma forma indireta de protesto contra as guerras portuguesas em África, a manifestação mostrou igualmente a interligação transnacional de algumas instâncias dos movimentos dos Longos Anos Sessenta, e respetiva declinação e “internalização” em contextos locais.
Esta internalização não era apenas veiculada através de informações e publicações clandestinas, ou através dos exilados e dos demais emigrados portugueses, mas também – e paradoxalmente – pela própria propaganda do regime. Notícias sobre protestos noutros países eram frequentemente divulgadas nos media portugueses, com o objetivo de, por contraste, salientar a presumida atmosfera de paz e estabilidade da vida nacional. A partir de 1961, reportagens sobre o movimento dos direitos civis nos EUA visavam também denunciar as atitudes repressivas e racistas desta democracia ocidental, sobretudo num contexto de reprovação internacional das guerras coloniais portuguesas em âmbitos como a ONU. Foi o caso, por exemplo, de uma reportagem publicada a 24 de Abril de 1961 no Diário de Notícias, na qual se referia que, além das “discriminações raciais e da repressão policial de um movimento pacífico”, também “jovens nazis, de braçadeira e cruz gamada, chegaram a Montgomery no autocarro do ódio”. As notícias eram acompanhadas por fotografias de polícias norte-americanos usando o cassetete contra crianças negras e jovens pacíficos. Ao mesmo tempo, ao lado destes artigos aparecia a pontual e quase diária crónica da missão de “pacificação” desenvolvida pelas tropas portuguesas nas colónias africanas.
Com efeito, n De facto, nos Estados Unidos o movimento pelos direitos civis foi desde a metade dos anos 1950 o principal protagonista do conflito social (McAdam 1982). A partir daí, outros movimentos se difundiram, como o estudantil, o feminista, o homossexual, o ambientalista, o hippie. Todos estes movimentos tinham profundas continuidades entre si e estavam também ligados a mobilizações e processos políticos internacionais. É suficiente pensar, por exemplo, nas intersecções ideológicas, e por vezes até materiais, entre o movimento pelos direitos civis – com o seu enfoque na emancipação dos cidadãos afrodescendentes nos EUA – e o desenvolvimento dos movimentos de libertação em África. Ao mesmo tempo, é impossível dissociar estas dinâmicas de evoluções contemporâneas na história das ideias e do pensamento, com o surgimento e desenvolvimento dos estudos pós-coloniais, dos estudos culturais, ou do pós-estruturalismo.
Já na Europa, movimentos antiautoritários – sobretudo estudantis – alastraram em vários países, democráticos ou não, assumindo ao mesmo tempo idiossincrasias locais e continuidades transnacionais. A história recente de cada país, e os respetivos processos políticos e sociais, interagiram com clivagens de escala mundial. Na Alemanha e na Itália, países recentemente saídos dos regimes nazista e fascista, as continuidades autoritárias a nível institucional, educacional, social e civil foram alvo de crítica dos movimentos estudantis. A violenta repressão policial nos dois países contribuiu para consolidar a perceção destas continuidades, numa escalada de violência política que redundou no alastrar do terrorismo nos anos 1970 e 1980 (della Porta e Reiter 1997). Na Alemanha, estas dinâmicas foram acompanhadas pelo surgimento de outros eixos de mobilização, sobretudo ecologista e pacifista. Na Itália, o antiautoritarismo político e social, juntamente com a valorização da luta operária, caracterizou o conflito nas suas mais diversas declinações, influenciando , sobretudo a partir dos anos 1970, o ressurgimento do movimento feminista e o nascimento de uma cultura de contrainformação. O Maio de 68 tornou-se emblema deste período. Entretanto, o movimento estudantil na capital francesa foi apenas uma pequena parte da excecional vaga de mobilizações que atravessou o país desde os finais dos anos 1960: como demonstra Erik Neveu (2016), o ‘maio francês’ foi sobretudo um movimento operário, e um dos períodos com a maior concentração de greves na história francesa.
Na Europa de Leste, revoltas estudantis e operárias fizeram-se sentir na Hungria, na Polónia, na Checoslováquia, no contexto dos abalos provocados pelas críticas ao estalinismo tornadas públicas pelo novo secretário-geral do PCUS, Nikita Khrushchev. Violentamente reprimidas pelas forças soviéticas, estas mobilizações deixaram significativos legados para os futuros processos de democratização destes países. Frente a estas fraturas no mundo comunista, as esquerdas ocidentais dividiram-se, com a proliferação de declinações do marxismo e a emergência de novas inspirações internacionais (como a China maoísta, a Albânia, Cuba, o Guevarismo). A assim chamada ‘nova esquerda’ – encarnada quer em movimentos, grupos e partidos, quer em reflexões ideológicas e políticas – difundiu-se no mundo ocidental, em diálogo com as temáticas emergentes, sobretudo os direitos de género e das minorias, as questões ambientais, a libertação cultural e de costumes. Os efeitos no mundo das artes e da música foram também significativos: no cinema, por exemplo, o papel do neorrealismo enquanto cânone de referência da esquerda marxista internacional deu lugar a outras experiências e sobretudo à nouvelle vague, fortemente inspirada pelo existencialismo.
Estas dinâmicas, como já sugerimos, chegaram também a Portugal. Mas a multiplicação dos eixos de conflito no país e a ligação entre eles torna necessário adotar uma definição que reconheça a sua novidade. Algumas das especificidades do país tornam difícil o enquadramento destes fenómenos, a não ser de maneira parcial, como “novos movimentos sociais”. Como sublinhado, o contexto autoritário catalisou o conteúdo mais político dos protestos, ao mesmo tempo que o desenvolvimento tardio do país em termos económicos e, consequentemente, sociais e culturais fez com que não existissem bases sociais para movimentos pós-materialistas, pelo menos da mesma forma que tal se verificava em países de capitalismo avançado. Por outro lado, o caso de Portugal exemplifica bem a dificuldade de distinguir entre diferentes eixos conflituais, uma vez que as reivindicações políticas não podem ser dissociadas dos aspetos económicos, sociais e culturais. Se isto em grande parte se deve às próprias condições do país, até hoje a evolução dos movimentos mostra que é difícil distinguir entre velhos e novos movimentos sociais, ou entre valores materialistas e pós-materialistas. Por exemplo, em condições de escassez, a questão de género, por exemplo, torna-se mais dramática. Os problemas ambientais têm evidentes implicações materiais, como as consequências das mudanças climáticas hoje nos ensinam. A discriminação das minorias tem profundos efeitos nas suas condições materiais de vida. Condições de trabalho precárias têm consequências sobre a identidades dos jovens e a sua afirmação. Ao procurarmos os “novos movimentos sociais” na história dos conflitos em Portugal, temos de ter em consideração as próprias limitações do conceito e, ao mesmo tempo, as especificidades históricas, políticas, económicas e sociais do país (Accornero e Ramos Pinto 2022). Por outro lado, o caso de Portugal – como outros casos de ‘fronteira’ – ajuda-nos a discutir e testar os conceitos existentes e, por fim, a complexificá-los.
- Creator
- Accornero, Guya
- Relation
- Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte)
- Abstract
- Durante os chamados “Longos Anos Sessenta” emergiram novos movimentos, num processo marcado por uma grande interligação transnacional e que exigiu a revisão da forma como as próprias ciências sociais entendiam o conflito. O caso português participou desse movimento mundial, ao mesmo tempo que a sua especificidade oferece um novo olhar sobre a dinâmica daqueles que ficaram também conhecidos como os “Anos Sessenta Globais”.
- Date Issued
- 7-11-2024
- References
- Accornero, Guya (2016). The Revolution before the Revolution. Late Authoritarianism and Student Protest in Portugal. Oxford, New York: Berghahn.
Accornero, Guya & Pedro Ramos Pinto (2022). “Movements at the border. Conflict and Protest in Portugal”, em Jorge M. Fernandes, Pedro C. Magalhães, and António Costa Pinto, Oxford Handbook of Portuguese Politics, Oxford: Oxford University Press, pp. 457-471.
Cardina, Miguel (2011). Margem de Certa Maneira. O Maoísmo em Portugal, 1964-1974. Lisboa: Tinta da China.
Jian, Chen, Martin Klimke, Masha Kirasirova, Mary Nolan, Marilyn Young & Joanna Waley-Cohen (2018). The Routledge Handbook of the Global Sixties. Between Protest and Nation-Building. Abingdon: Routledge.
della Porta, Donatella & Herbert Reiter (1997). The Policing of Mass Demonstration in Contemporary Democracies. Fiesole: European University Institute, EUI Working Papers.
della Porta, Donatella & Mario Diani (2020, 3rd ed.). Social Movements: an introduction. Hoboken, NJ: Wiley.
McAdam, Doug (1982). Political process and the development of Black insurgency, 1930-1970. Chicago: Chicago University Press.
Neveu, Erik (2016). “The European Movements of ’68: Ambivalent theories, Ideological Memories and Exciting Puzzles”, em Olivier Fillieule e Guya Accornero, Social Movement Studies in Europe. The State of the Art. Oxford, New York: Berghahn.
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Citation
Accornero, Guya, “Novos Movimentos Sociais,” Connecting Portuguese History, accessed November 21, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/27.