Cantigas do Maio
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- Cantigas do Maio
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- Cantigas do Maio é o quinto LP da discografia de José Afonso (1929-1987), originalmente publicado no final de 1971 pela editora Orfeu, de Arnaldo Trindade. Este LP representa uma mudança significativa nas características musicais do repertório em disco de José Afonso, com maior diversidade instrumental comparativamente aos seus trabalhos anteriores e usufruindo mais das potencialidades tecnológicas do estúdio de gravação, graças também ao papel desempenhado por José Mário Branco na direção musical. As características deste disco convergem com a popularização internacional de uma concepção de obra fonográfica distinta da simples captação de uma actuação musical, ideia patente no trabalho de vários músicos identificados com os estilos do pop-rock anglo-americano na segunda metade da década de 1960 (como os Beatles, Pink Floyd, entre outros). A maior elaboração sonora das canções de José Afonso, indissociável das próprias práticas de gravação, é igualmente reflexo da crescente importância destes cantores na formulação de novas propostas estéticas, opostas às que consideravam ser veiculadas pelo regime vigente em Portugal e, simultaneamente, em convergência com as novas dinâmicas internacionais da música popular. Juntamente com as primeiras publicações dos músicos José Mário Branco e Sérgio Godinho para a editora Sassetti, a edição de Cantigas do Maio foi frequentemente caracterizada por jornalistas e músicos como um momento pivot na transformação das sonoridades do universo da música popular em Portugal e, em particular, do movimento da “canção de protesto” contra a ditadura.
No início da década de 1960, José Afonso protagonizara uma ruptura com a canção de Coimbra, em cuja tradição se tinha formado como cantor. Desta ruptura, marcada pelo descartar da guitarra portuguesa e pelo enveredar por temáticas de crítica social e política, resultou um repertório de autor, de teor mais marcadamente contestatário, o qual designou de “baladas” (Silva 2021). Canções como Os Vampiros, Menino do Bairro Negro, entre outras, acompanhadas à viola por Rui Pato, constituíram exemplos de um novo repertório, que inspiraria uma vaga de cantores com percurso pautado pela crítica ao regime, em pleno período de Guerra Colonial.
Após permanecer cerca de três anos em Moçambique (1964-1967), onde dá continuidade à sua atividade de professor, José Afonso regressa a Portugal e é pouco depois contratado pela editora Orfeu. Este contrato implicava a gravação e publicação regular de fonogramas, o que lhe garantia a subsistência, após ser impedido de dar aulas. O seu segundo álbum publicado nesta editora, Contos Velhos Rumos Novos (1969), ainda com acompanhamento de Rui Pato à viola, é já marcado por uma maior diversificação instrumental, mesmo que sem extensa preparação prévia. A edição de Contos Velhos Rumos Novos é contemporânea à proliferação de novos cantores inspirados pela obra e pelos percursos de José Afonso e de Adriano Correia de Oliveira, sendo particularmente impactante o surgimento do programa televisivo Zip-Zip enquanto plataforma de exposição mediática de vários destes músicos (incluindo Francisco Fanhais, Manuel Freire, José Jorge Letria, entre outros) (Raposo e Roxo 2010: 1356-1357).
Paralelamente, em França, vários cantores portugueses exilados utilizavam a canção enquanto instrumento de contestação política e de retrato das condições de vida em Portugal e nas comunidades migrantes. O caráter explícito das letras, permitido pelo diferente contexto, e o contacto com o universo artístico francês foram particularmente importantes na obra de cantores como Luís Cília e José Mário Branco, que iniciam em Paris a sua atividade fonográfica. O caso de José Mário Branco é particularmente sintomático de um maior enfoque nas potencialidades da gravação multipista para a construção de novas realidades sonoras no estúdio, aspecto que o aproxima do pop-rock anglo-americano então em voga. Este interesse convergiu com o desejo de José Afonso de diversificar a base instrumental do seu repertório, que até à viragem para a década de 1970 era maioritariamente acompanhado à viola. Para lá do contacto pessoal com José Mário Branco durante este período, para José Afonso foi também importante a proximidade com alguns protagonistas da Música Popular Brasileira (MPB), com destaque para Gilberto Gil e Caetano Veloso, que conheceu em Londres por ocasião da gravação do LP Traz Outro Amigo Também (1970). A discografia de Gil e Caetano estimulou Afonso a investir na reconfiguração do suporte instrumental das suas gravações (Ricardo e Monteiro 1970). O trabalho destes e de outros músicos contribuiu também para a consolidação internacional de vários movimentos da canção de protesto e resistência política, dispersos mas articulados, particularmente na América Latina, nos Estados Unidos e na Península Ibérica. Estes movimentos consagravam frequentemente a valorização das práticas musicais tradicionais enquanto elementos basilares, como aconteceu no caso português.
O desejo de diversificação instrumental motivaria um extenso período de preparação dos arranjos musicais com José Mário Branco, que se tornou responsável pela direção musical das gravações de um novo LP. Para este disco, José Afonso e José Mário Branco contaram com a presença de Carlos Correia (Bóris), guitarrista responsável pela concepção harmónica de várias canções, assim como de outros músicos (Michel Delaporte, Christian Padovan e outros) com quem José Mário Branco já trabalhara na gravação de outros discos dos quais fora diretor musical. O estúdio escolhido foi o Strawberry Studio do Château d’Hérouville, nos arredores de Paris, onde decorreriam também gravações de vários protagonistas britânicos e franceses do rock (Pink Floyd, Elton John, etc.), bem como dos primeiros long play de José Mário Branco e Sérgio Godinho. O carácter de obra fonográfica que cria realidades sonoras próprias à gravação, não se limitando à captação da performance dos músicos, é desde logo evidente na primeira faixa, Senhor Arcanjo. A introdução inclui uma falsa partida e troca de comentários, pretendendo refletir a dinâmica colaborativa do trabalho de estúdio. O papel do diretor musical na reconfiguração do repertório, sobretudo na sua dimensão sonora, é particularmente patente em canções como Grândola, Vila Morena, Maio Maduro Maio e Coro da Primavera. Inicialmente escrita em homenagem à vila alentejana com o mesmo nome, Grândola, Vila Morena evidencia o papel de José Mário Branco na transformação do repertório durante o processo de gravação. Sendo inicialmente uma canção acompanhada à viola, a subsequente tentativa de emulação da sonoridade do cante alentejano e da sua estrutura musical reflecte o interesse destes músicos pelo universo da música tradicional portuguesa – em particular por aquela captada e disseminada por colectores como Michel Giacometti – enquanto inspiração central na configuração de uma nova música popular, distante do que entendiam ser o folclore tipificado promovido pelas instituições do Estado Novo (Madeira, Andrade e Castro 2023). Grândola, Vila Morena seria mais tarde usada como senha para a insurreição militar de 25 de Abril de 1974. Esta evocação dos elementos tradicionais encontra-se igualmente patente em Milho Verde, canção beirã, e no refrão de Cantigas do Maio. A diversidade tímbrica das percussões de Michel Delaporte, assim como a inclusão previamente preparada de teclados e de instrumentos de sopro, marcam uma diferença significativa relativamente ao percurso discográfico anterior de José Afonso. Simultaneamente, as letras do disco refletem o pendor surrealista do cantor e evocam situações do quotidiano e personagens emblemáticas da luta antifascista, caso de Cantar Alentejano, que homenageia Catarina Eufémia, assassinada em 1954 por um tenente da Guarda Nacional Republicana.
A publicação de Cantigas do Maio no final de 1971, simultânea à edição do primeiro LP de José Mário Branco e do primeiro disco de Sérgio Godinho, foi promovida em periódicos como o Mundo da Canção ou o Diário de Lisboa como um momento de renovação das características musicais dos “baladeiros” e do próprio repertório gravado de José Afonso, sendo os seus discos seguintes marcados por uma maior diversidade sonora e instrumental. A combinação do uso das modernas potencialidades tecnológicas do estúdio de gravação com a construção de uma “música popular portuguesa” simultaneamente ancorada nas práticas musicais ruraisanteciparia as experiências levadas a cabo após o 25 de Abril de 1974 por grupos como o Grupo de Acção Cultural (GAC) - Vozes na Luta e a Brigada Victor Jara, entre outros. O renovado estatuto dos cantores de protesto durante o período revolucionário português, e de José Afonso em particular, projectou internacionalmente a canção Grândola, Vila Morena, levando à sua adaptação em diversas línguas e, consequentemente, a várias edições internacionais de Cantigas do Maio (em Espanha, França, Alemanha, Itália, etc.). - Creator
- Castro, Hugo
- Andrade, Ricardo
- Relation
- Instituto de Etnomusicologia - Centro de Estudos em Música e Dança (INET-md)
- Abstract
- Participando de uma tendência internacional para a criação de realidades sonoras próprias à gravação, que assim não se limita à captação da performance dos músicos, este disco, gravado em 1971, evidenciaria o encontro de José Afonso e José Mário Branco com músicos de outros países, nomeadamente de França e do Brasil. Por sua vez, a importância simbólica que a canção Grândola, Vila Morena viria a adquirir no quadro da Revolução de Abril de 1974 levaria a várias edições internacionais do disco.
- Date Issued
- 7-11-2024
- References
- Madeira, João, Ricardo Andrade & Hugo Castro (2023). “Grândola, Vila Morena: uses and meanings of a song throughout the years”. Zapruder World, “Music and Social Conflicts”, Volume 7.
Raposo, Eduardo & Pedro Roxo (2010). “Zip-Zip”. Em Salwa Castelo-Branco (org.) Enciclopédia da Música em Portugal no século XX. Lisboa: Círculo de Leitores / Temas e Debates.
Ricardo, Daniel & Carlos Cáceres Monteiro (1970). “José Afonso”. Cena 7 / A Capital, 26 de dezembro.
Silva, Octávio Augusto Fonseca (2021). Uma Vontade de Música – As Cantigas do Zeca. Tradisom.
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Collection
Citation
Castro, Hugo and Andrade, Ricardo, “Cantigas do Maio,” Connecting Portuguese History, accessed November 24, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/28.