Contrabando humano
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- Contrabando humano
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- O contrabando humano é um traço marcante de muitos movimentos migratórios, em diversos contextos históricos e geográficos. Sem prejuízo das especificidades que cada realidade impõe, esta prática tem em comum o propósito de criar pontes transnacionais onde existem barreiras, iludindo controlos fronteiriços e obstáculos à saída, à entrada ou à permanência num território. A partir de um contrato, geralmente oral, o contrabandista – intermediário, auxiliador, facilitador – oferece auxílio na travessia de fronteiras e países de trânsito. Tal acordo é baseado na natureza das relações entre as duas partes e apresenta vantagens para ambas. Independentemente de quem inicia o processo e do tipo de motivação de cada um, o intermediário “vende” a uma pessoa interessada, e mediante as suas capacidades e as capacidades de outros indivíduos situados noutros espaços nacionais ou não-nacionais, o auxílio na viagem, a realizar de forma indocumentada ou com documentação falsificada, em troca de uma remuneração que pode assumir diversas formas (espécie, géneros, troca de favores relativos a assuntos do âmbito migratório ou fora dele).
Assim, ao contrário do que sucede no tráfico de pessoas, onde o migrante é de alguma forma forçado a participar na “transação”, resultando em algum tipo de abuso ou exploração, no caso do contrabando humano o migrante participa ativamente no processo da sua emigração, podendo negociá-la e assumir-se como um dos protagonistas das relações que se estabelecem durante a intermediação (Baird e Van Liempt 2015: 2-3; Sanchez 2017: 11-12; Andrijasevic 2016: 58-60). Todavia, no discurso mediático e político, assim como em estudos sobre tráfico humano, usa-se o termo “tráfico” como sinónimo de auxílio à emigração ou contrabando humano, o que resulta em narrativas que retiram qualquer agência ao migrante e que fecham os intermediários nas seguintes molduras figurativas e tipológicas: o criminoso, o mafioso, o traficante, o predador, o agressor, o extorsionário, o vagabundo. Estas classificações são retomadas e difundidas de cada vez que se verifica mobilidade populacional indesejada, quer nos locais de origem ou recetores dos migrantes, quer nos países de trânsito. É esse o tratamento mediático dado, por exemplo, aos contrabandistas de populações rohingya que fogem de perseguição étnica, ou aos auxiliadores de refugiados sírios da recente guerra civil. Tais narrativas convêm a políticas de encerramento de fronteiras ou de reforço da respetiva vigilância, a discursos securitários, à limitação da mobilidade de determinadas categorias de pessoas e à ação repressiva dos estados; em suma, essas narrativas servem de pretexto a uma gestão diferencial das migrações.
Em Portugal, o auxílio clandestino à saída de pessoas existe, pelo menos, desde o século XV (no contexto da fuga de judeus conversos), sendo mais conhecido na historiografia pelos estudos sobre os “negócios da emigração” para o Brasil (até depois da Segunda Guerra Mundial), vindo a ganhar fôlego a partir de meados dos anos 1950, quando a migração teve como principal destino o continente europeu, mais especificamente França. A natureza e o volume da emigração deste período contribuíram para que ela fosse construída como problema pelos sectores sociais e políticos que mais se opunham ao êxodo, tendo sido apresentada pela imprensa nesses termos. Depois de, em 1947, a ditadura ter proibido qualquer intervenção privada na organização da saída do país, obrigando os candidatos à emigração a passar por um moroso e seletivo processo burocrático encabeçado pela Junta da Emigração (organismo responsável pela atribuição do passaporte de Emigrante), a fuga clandestina tornou-se a opção mais procurada para sair do país. Perante a colaboração que o Estado português obteve dos seus congéneres espanhol e francês na repressão aos facilitadores nos respetivos territórios, criaram-se estratégias e redes informais, mais ou menos complexas ou extensas, que acompanhavam e orientavam o candidato à emigração entre a saída e o destino.
A culpabilização pública dos facilitadores pelos dramas da emigração clandestina permitia justificar os insucessos do controlo policial das fronteiras, criticados pelos setores que se opunham à saída de mão-de-obra, de potenciais povoadores do Ultramar e de soldados para a guerra que Portugal travou em diversas colónias africanas desde o início da década de 1960. Engajadores e passadores serviam além disso como bodes expiatórios para apresentar à comunidade nacional e internacional, apontados como responsáveis por uma emigração massiva e usados para camuflar eventuais motivações políticas para a saída de pessoas. Pretendia-se, deste modo, que o movimento migratório fosse entendido como resultante da influência de novos “negreiros”, de “exploradores sem escrúpulos” e de “máfias internacionais”, que, com o intuito de se beneficiarem financeiramente, manipulavam as vontades de uma população supostamente passiva, subserviente, sem grandes ambições.
A base do auxílio à emigração estava, contudo, ancorada localmente, junto do emigrante, atuando e estendendo-se desde o local onde se efetuava o recrutamento dos migrantes até França. Esta base era sustentada por um sistema de contactos e de acordos orais de base fiduciária entre os vários intermediários, que se conectavam numa extensão transnacional. A organização das viagens clandestinas tinha como suporte redes sociais pré-existentes, que também atravessavam as fronteiras. Os intermediários conheciam-se de outras atividades, algumas informais, onde haviam criado laços de confiança, tais como o contrabando de mercadorias, os circuitos comerciais de produtos agrícolas, o transporte de pessoas, animais e coisas, as simples relações familiares ou de amizade, ou até graças a encontros mais inesperados, como os que ocorriam dentro das prisões. Estas sociabilidades possibilitavam a transmissão de ferramentas, a criação de códigos de comportamento e de relações de confiança, mesmo entre os elementos da rede que se encontravam fisicamente mais distantes. A existência prévia de acordos informais permitia aos diferentes intermediários a verificação de que cada etapa da viagem era cumprida.
Além de recrutadores (angariadores, engajadores ou juntadores), participavam neste processo passadores, guias e transportadores, principalmente portugueses e espanhóis, que tinham como função orientar os emigrantes no cruzamento das duas fronteiras e dentro dos territórios português, espanhol e francês. A passagem (nome comum atribuído à viagem migratória) podia, assim, ser feita em várias etapas, recorrendo-se a diferentes meios de transporte e obrigando a paragens estratégicas para mudança de intermediário, para alimentação e descanso ou, simplesmente, para prevenir encontros indesejados com eventuais denunciantes e polícias. A logística envolvia, por isso, uma série de apoios e de agentes locais, presentes nas várias etapas do percurso, o que implicava a participação de contactos pessoais que se conectavam com as redes de auxílio à emigração, de modo a tornarem a viagem possível.
Desde o momento em que contratava os serviços do contrabandista, o migrante tinha um papel ativo nesta interação, uma vez que uma das suas estratégias consistia em avaliar a confiabilidade do intermediário. O migrante averiguava acerca do sucesso com que o facilitador conduzia as suas viagens, ou socorria-se de outras garantias que assegurassem a boa conclusão do serviço contratado oralmente. É, pois, nesta base que o contrabando de migrantes se define como um processo social com várias camadas, onde a solidariedade, os amigos ou sócios, as comunidades migrantes, as conexões pessoais, o dinheiro e as experiências passadas se unem para formar uma base de proteção, de segurança e de tomada de decisão (Zhang, Sanchez e Achilli 2018: 8-9).
Os mecanismos de auxílio à mobilidade de pessoas atingem por vezes dimensões transnacionais importantes, entrando em circuitos globais potencialmente mais visíveis se as distâncias entre o ponto de partida e o de chegada forem maiores. Mas, para aferir a dimensão deste processo social, há que ter em conta que se trata de uma realidade que tanto pode abarcar organizações de passagem supranacionais como iniciativas individuais locais não organizadas (Drbohlav, Štych e Dzúrová 2013: 213). Em ambos os casos, as redes sociais, os laços e as estruturas culturais e étnicas têm um papel importante e muitas vezes indissociável da intermediação, tal como tem também o migrante, com os seus desejos e características próprias (Van Liempt 2007: 88-94).
Os exemplos são muitos, em vários momentos da história ou da atualidade. É possível observar o emaranhado de contactos estabelecidos para facilitar a entrada de protestantes no território francês da Franche-Comté, no final do século XVII (Debard 1986: 23-34), ou a fuga de afegãos proporcionada por redes de contrabandistas denominados oficialmente como ghachag (Majidi e Danziger 2016: 172). Mais conhecido no Ocidente é ainda o coyote, mas também o snakehead, que participam em extensas redes transnacionais de facilitação da entrada clandestina de migrantes, respetivamente sul-americanos e chineses, nos Estados Unidos da América.
A identidade do contrabandista de pessoas constrói-se, portanto, através de práticas pouco coniventes ou mesmo opostas a enquadramentos meramente nacionais, no sentido em que, sendo a sua condição inseparável da existência de fronteiras, é na transgressão dos limites nacionais que ele se define. O contrabando de migrantes é composto de sujeitos híbridos, ancorados em contextos locais e nacionais, mas que se inserem em lógicas e narrativas de mobilidade transnacionais.
- Creator
- Silva, Marta Nunes
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Abstract
- Pouco depois do fim da II Guerra Mundial, a ditadura do Estado Novo proibiu qualquer intervenção privada na organização da saída de pessoas do país, ao mesmo tempo que implementou um processo de seleção de emigrantes burocrático e moroso. A fuga clandestina tornou-se então a opção mais procurada, tendo sido desenvolvidas várias estratégias e redes informais para acompanhar e orientar o candidato à emigração desde a saída até aos diversos destinos, nomeadamente França.
- Date Issued
- 11-11-2024
- References
- Andrijasevic, Rutvica (2016). “Trafficking: not a neutral concept”. In Carrera, Sergio e Guild, Elspeth (eds.). Irregular Migration, Trafficking and Smuggling of Human Beings. Policy Dilemmas in the EU. Brussels: Centre for European Policy Studies, pp.58-63.
Baird, Theodore & Ilse Van Lempt (2015). “Scrutinising the double disavantage: knowledge production in the messy field of migrant smuggling”. Journal of Ethnic and Migration Studies Vol.42, nº3, pp.400-417.
Debard, Jean-Marc (1986). “Chemins du refuge: le passage des huguenots par la Franche-Comté (1685-1707)”. Bulletin de la Société de l'Histoire du Protestantisme Français (1903-2015) Vol.132, pp. 23-34.
Drbohlav, Dušan, Přemek Štych & Dzúrová, Dagmar (2013). “Smuggled Versus Not Smuggled Across the Czech Border”. International Migration Review Vol.47, n.1, pp.207-238.
Majidi, Nassim & Richard Danziger (2016). “Afghanistan”. In Marie McAuliffe e Frank Laczko (orgs.). Migrant Smuggling Data and Research: A global review of the emerging evidence base. Genebra: International Organization for Migration, pp.161-186. [http://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/smuggling_report.pdf].
Sanchez, Gabriella (2017). “Critical Perspectives on Clandestine Migration Facilitation: An Overview of Migrant Smuggling Research”. Journal on Migration and Human Security Vol.5, nº1, pp.9-27.
Van Liempt, Ilse C. (2007). Navigating borders: inside perspectives on the process of human smuggling into the Netherlands. Amsterdam: Amsterdam University Press.
Zhang, Sheldon X., Gabriella E. Sanchez & Luigi Achilli (2018). “Crimes of Solidarity in Mobility: Alternative Views on Migrant Smuggling”. ANNALS, AAPSS Vol.676 - Migrant Smuggling as a Collective Strategy and Insurance Policy: Views from the Margins, pp.6-15.
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Citation
Silva, Marta Nunes, “Contrabando humano,” Connecting Portuguese History, accessed November 21, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/32.