Matias Tomé Upinde (1945-2024)
- Title
- Matias Tomé Upinde (1945-2024)
- Description
- A pesquisa seguiu o caminho de uma abordagem “biográfico-narrativa”, que permite uma metodologia “ativa, interpretativa e reflexiva” (Thé 2022: 1) a partir da apresentação da história de vida de Matias Upinde, com os principais aspetos e os acontecimentos mais marcantes da sua trajetória. Trata-se de uma personalidade pouco conhecida, que se pretende divulgar, por se considerar que a história transnacional e conectada (Seigel 2005: 63), longe da história oficial, é tecida na malha dos sem voz e possibilita uma análise problematizante, para além das fronteiras das nações.
Matias Tomé Upinde nasceu em Cabo Delgado, no dia 25 de fevereiro de 1945, vivendo numa família alargada, com os pais e avós. Aos 7 e 8 anos frequentou a missão de S. João de Brito em Nambude (no planalto dos Macondes), tendo terminado a 4ª classe em 1962. Foi professor-catequista entre 1962 e 1964. Nessa altura, a maioria dos professores eram militantes clandestinos da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e, por esse motivo, Upinde escaparia para o Tanganica (atual Tanzânia), tendo passado por Mtwara, Dar-es-Salaam, Bagamoyo e Kongwa, onde chegou em 1965 e onde fez treinos militares. De volta a Dar-es-Salaam, preparado para ir trabalhar para a FRELIMO no exterior, foi “desviado” para Bagamoyo e, mais tarde, para Nachingwea, no sul do Tanganica, como instrutor no Centro de Preparação Político-Militar.
Daí seguiu para a União Soviética (URSS), com a intenção de cursar sabotagem, mas ficou na artilharia. De regresso a Nachingwea, fez um curso com instrutores chineses, após o que foi para o interior de Niassa, onde o primeiro grupo de artilharia deveria operar. Ali esteve, primeiro, como adjunto e, mais tarde, como chefe dos combatentes. Quando a FRELIMO se preparava para receber uma nova arma (a artilharia ligeira soviética B-11), Upinde seguiu para Dar-es-Salaam, e de lá para a URSS, onde treinou. De regresso a Nachingwea, passou a operar no interior de Moçambique: o seu grupo recebeu ordens para abrir a Frente de Manica e Sofala. Chegaram a 15 de agosto de 1974, já depois do golpe militar de 25 de abril de 1974 em Portugal. Chamado a chefiar um grupo que deveria seguir para a Rodésia do Sul (atual Zimbábue), partiu mais uma vez para Moscovo, a fim de ser preparado no quadro de forças especiais. Regressou a Moçambique em 1977, na altura do 3º Congresso da FRELIMO, sendo colocado em Quelimane, na província da Zambézia, como Comandante d Batalhão (1977-1978).
Em dezembro de 1978, entrou com o seu grupo em Manica, na companhia de Josiah Tongogara, comandante do Zimbabwean People’s Revolutionary Army (ZIPRA), braço armado do partido Zimbabwe African People's Union (ZAPU) no combate ao regime de minoria branca liderado por Ian Smith. “Não devíamos atacar até chegar à estrada Salisbúria (Harare)-África do Sul”. Criou então, entre janeiro e março de 1979, quatro grupos: um de reconhecimento; outro que atacou um hotel; um terceiro que ficou a defender a fronteira; e um quarto que permaneceu com o comandante no centro. Falavam sempre em Suaíli e, segundo o próprio Upinde, “dizíamos que éramos zimbabueanos”: “O meu nome era Eduardo Ngo”. Tinha o apoio do Destacamento Feminino (DF), que por diversas vezes transportou material, até que no dia 24 de maio de 1979 todo o grupo do DF foi dizimado num ataque. Apareceu um avião e três helicópteros, que fizeram um cerco: “Escondi-me das 14 às 18 h e caí numa cova”, relembra Upinde. Esconderam-se entre a população e ali ficaram. Isto aconteceu na época das conversações na Lancaster House, em Londres, que visavam o fim do conflito rodesiano e a futura independência do Zimbábue, num acordo que viria a ser assinado a 21 de dezembro de 1979. A ação da diplomacia moçambicana, chefiada por Samora Machel, junto da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher foi importante na solução encontrada para a transição no Zimbábue de colónia inglesa, sob um regime de minoria branca, a Estado independente.
“Como devo continuar a missão?”, perguntou então Upinde ao Presidente Samora Machel. Devia voltar. Através dos media, o Presidente deu notícia ao mundo da solidariedade moçambicana para com o povo do Zimbábue. Entretanto, um soldado zimbabueano foi capturado e “deu o meu nome aos bóeres”. Chegado a Umtali (atual Mutare), colocaram-nos na cadeia e começaram os interrogatórios: queriam saber qual tinha sido a missão do batalhão. “Ficámos uma semana e esperávamos duas coisas: ser ou libertados ou fuzilados”. Mas chegou um avião “com os nossos camaradas e polícia da Commonwealth. O plano nesse momento era regressar a casa, o que aconteceu a 7 de fevereiro 1980. Houve receção no aeroporto, cheio de gente”. “Fiz a apresentação do grupo e disse: ‘Missão cumprida!’” Preocupou-se com os camaradas falecidos, cujos corpos deviam regressar a Moçambique. “Escrevi duas vezes”. Até hoje, infelizmente, os familiares das vítimas desconhecem o respetivo paradeiro.
Teve outras missões, na Beira e em Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Desmobilizado com a patente de major, viveu com a família em Mocímboa da Praia. Em 2017, Mocímboa foi vítima de ataques dos insurgentes do grupo islamista radical Ahlu Sunnah Wal Jamaah. Segundo Upinde, “Foi tudo destruído… carro, motorizada e casa”; “A Mamã (Alda Saíde, organizadora da Conferência, conheceu o Comandante Matias através do General Mataruca, atual Comandante da Academia Militar em Nampula) é que me descobriu”. Agora, ninguém me chama,” lamentou-se no final da exposição da história da sua vida. A tranquilidade com que nos falou, aos setenta e oito anos, contrastava com a penúria a que se via reduzido, depois de tantos sacrifícios que ficaram esquecidos (Ricoeur 2007: 457). Faleceu em 2024, vítima de doença.
Existem fontes escritas – na documentação oficial (Machel 1974: 51), na imprensa (Machel 1976), em estudos académicos (Cabaço 2007: 405) – que dão conta da solidariedade moçambicana com outros movimentos de libertação, no contexto da África Austral. No entanto, as fontes orais e iconográficas dão o colorido do detalhe e, cruzadas com outros dados, possibilitam a compreensão do passado, dos conflitos militares em que a região se viu envolvida, face ao apartheid na África do Sul, ao regime de Ian Smith na Rodésia e ao colonialismo português. Por conseguinte, é necessário continuar a procurar os sem voz, de modo a dar-lhes visibilidade, pelo menos académica, para que os mais jovens se inspirem e façam o que os mais velhos começaram, para a construção de uma sociedade mais inclusiva e justa, num ambiente de Paz.
- Creator
- Iglésias, Olga
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Abstract
- Antigo combatente da luta armada de libertação de Moçambique, Matias Tomé Upinde é uma figura quase desconhecida, tanto em Moçambique como em Portugal. No entanto, enquanto Comandante de Batalhão das Forças Internacionalistas de Moçambique no Zimbabué (1978-1980), a sua história de vida, narrada pelo próprio, em 2023, durante uma visita ao Monumento e Centro de Interpretação da Matola, no âmbito da Conferência Internacional “Samora Machel e a África Austral”, convida-nos a repensar o lugar da República Popular de Moçambique enquanto “Estado da Linha da Frente” na região da África Austral, cruzando a resistência ao colonialismo português, o combate ao regime de minoria branca da Rodésia do Sul e a luta contra o apartheid na África do Sul.
- Date Issued
- 11-11-2024
- References
- Cabaço, José Luís (2007). Moçambique: Identidades, Colonialismo e Libertação. São Paulo: USP (Tese de Pós-Graduação em Antropologia Social).
Machel, Samora Moisés (1974). A Luta Continua. Porto: Afrontamento.
Machel, Samora Moisés (1976). A Nossa Tarefa Actual É Apoiar a Luta do Zimbabwe. Notícias, Maputo, 08-03-1976. [Acesso 15-11-23.]
https://www.mozambiquehistory.net/people/samora_speeches/1976/19760306_discurso_no_chocue.pdf
Neves, Olga Maria Lopes Serrão Iglésias (2023). “O legado samoriano para uma nova ‘Linha da Frente’”. Congresso Internacional – Samora Machel e África Austral (1 a 3 de novembro de 2023). Maputo: Fundação Samora Machel e Universidade Pedagógica de Maputo.
Ricoeur, Paul (2007). A Memória, a História, o Esquecimento. São Paulo: Unicamp.
Seigel, Micol (2005). “Comparative Method after the Transnational Turn”. Radical History Review, 91, pp.62-90.
Thé, Raul da Fonseca Silva (2022). “Ensinando através de vida: construções biográfico-narrativas pensadas como metodologia ativa e significativa”. Educação e Pesquisa. Vol. 48, São Paulo: Faculdade de Educação da USP.
Dublin Core
Collection
Citation
Iglésias, Olga, “Matias Tomé Upinde (1945-2024),” Connecting Portuguese History, accessed November 24, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/35.