Descolonização
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- Terá havido algo de singular na descolonização portuguesa? Esta questão pode bem figurar entre os problemas clássicos da historiografia do império português, um campo fértil em reivindicações de “excepcionalidade” quando se trata de situar a trajetória do país face a outras experiências europeias.
Desde logo, a cronologia parece validar tal hipótese. A soberania portuguesa nos seus territórios ultramarinos chegou ao fim em 1974-75, mais de uma década volvida sobre as descolonizações protagonizadas por outras potências. Só o pequeno enclave de Macau seguiu um curso mais em linha com desenvolvimentos internacionais, tendo o território governado por Portugal transitado para a administração chinesa em 1999, dois anos depois da entrega de Hong-Kong pela Grã-Bretanha à República Popular da China.
Para a esquerda anticolonial, o desfasamento temporal deveu-se ao anacronismo de um regime liderado por um obstinado ditador fascista, sustentado pelos seus aliados da NATO graças à lógica da Guerra Fria. Para muitos à direita, a longevidade do império assentou no carácter fundamentalmente benigno da governação colonial lusa, respaldada em séculos de coexistência pacífica com as populações ultramarinas, segundo uma visão popularizada a partir dos anos 1950 com base nas ideias do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre.
No entanto, uma das preocupações que tem distinguido a investigação historiográfica das últimas décadas sobre esta temática é a atenção prestada às afinidades – que não foram poucas – entre as trajetórias portuguesa e europeia-ocidental (Jerónimo e Pinto 2015). Nesta entrada, procuraremos olhar para esses paralelismos, mas também para a complexa teia de influências recíprocas e transnacionais que permitem matizar o alegado “excepcionalismo” português, de maneira a tornar o fim do colonialismo nos espaços de língua portuguesa um fenómeno compreensível à luz das dinâmicas que contribuíram para o afrouxamento dos laços imperiais um pouco por todo o mundo naquele período.
A descolonização não foi um acontecimento, mas um processo: este tornou-se, na era contemporânea, um dos lugares-comuns da historiografia dos impérios (Jansen e Osterhammel 2017). Mas foi também – acrescentamos nós – um fenómeno multifacetado e repleto de paradoxos. Como processo, a descolonização poderá talvez inscrever-se na “conjuntura”, a temporalidade definida por Fernand Braudel como de carácter cíclico, secular; nesse sentido, encaixará, grosso modo, nas balizas do “breve século XX” conceptualizado por E. J. Hobsbawm. Embora alguns autores prefiram recuar até ao século XVIII e às primeiras independências crioulas contra o domínio europeu para dar conta do imperialismo contemporâneo em toda a sua amplitude (Klose 2014), neste ensaio adotaremos uma periodização mais restrita (c. 1919-1975), em parte por razões de espaço, mas também porque aquilo que chega ao fim em 1974-75 é o chamado “terceiro império português”, forjado no contexto da corrida imperialista de finais do século XIX, com o seu centro de gravidade localizado no continente africano.
Numa perspetiva diacrónica, poderá fazer sentido determo-nos em quatro subdivisões temporais: 1919-1945; 1945-61; 1961-74; e uma última em que, muito sucintamente, aludiremos aos acontecimentos que marcaram o fim do império (1974-75) e às suas sequelas, numa perspetiva comparada.
A primeira fase transporta-nos até esse período extremamente ambivalente, do ponto de vista da estabilidade dos impérios coloniais, que foi o pós-Primeira Guerra Mundial. As devastações desse conflito desferiram um severo – mas não definitivo – golpe nas pretensões de “missão civilizacional” que eram reivindicadas pelas potências imperiais para justificar a hierarquia racial em que repousavam as sua conquistas ultramarinas.
As reverberações globais da defesa, pelo presidente dos Estados Unidos, do princípio da autodeterminação, nos últimos meses da I Guerra Mundial – aquilo a que se chamou o “momento Wilsoniano” (Manela 2007) – revelar-se-iam limitadas no império colonial português, mais ainda do que noutras paragens. As condições que noutros espaços imperiais – como o Egipto e a Índia britânica, partes do Médio Oriente, a China ou a Coreia – permitiram que germinasse uma consciência nacionalista eram pouco expressivas nos territórios ultramarinos portugueses: Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Goa, Damão e Diu, Macau ou Timor Oriental. Ainda assim, algumas pessoas ligadas a uma intelligentsia africana estabelecida na metrópole aproveitaram as expectativas criadas pelas proclamações de Wilson para criticar o incumprimento de promessas humanitárias e autonomistas feitas pelo regime republicano recentemente instaurado em Portugal, assim como a legislação de sentido claramente racista que fazia o seu caminho em várias colónias portuguesas.
No período de entre-guerras, elementos dessa intelligentsia participarão em vários congressos pan-africanistas; um deles, o escritor e jornalista Mário Domingues, usaria as páginas do jornal anarquista A Batalha para denunciar as expressões mais cruas e violentas do domínio colonial português em África (Garcia 2022). Mas a posição de muitos destes pan-africanistas era ao mesmo tempo ambígua, com vários deles a fazerem a defesa das posições coloniais portuguesas em diversos fóruns internacionais (Oliveira 2017).
Nas possessões indianas, será sobretudo o fermento do nacionalismo associado ao movimento liderado por Gandhi no Raj Britânico que galvaniza os descontentes com o domínio português. Em 1928, Tristão de Bragança Cunha, um engenheiro de Chandor educado em Paris, funda o Goa Congress Committee, distinguindo-se depois na agitação patriótica em Goa após a Segunda Guerra Mundial, circunstância que lhe valeria vários anos de cativeiro em prisões portuguesas.
O facto de a contestação nacionalista ter sido incipiente no período de entre-guerras não poupou os governos portugueses a outras dores de cabeça. Em boa medida, isso deveu-se ao receio de que a nova organização internacional, a Sociedade das Nações, e a sua doutrina da trusteeship (incrustada no sistema dos mandatos), pudesse facilitar uma “espoliação” dos territórios ultramarinos portugueses. Denúncias de situações análogas à escravatura feitas em Genebra por observadores externos, como o sociólogo norte-americano Edward Ross (1924-25), causaram enorme agitação patriótica em Lisboa. Grande entusiasta do eugenismo nos EUA, Ross visitara extensas partes de Angola e Moçambique e revelara-se muito crítico da incapacidade portuguesa para levar por diante uma obra civilizacional à altura dos padrões definidos pelas potências ocidentais mais influentes – um tipo de contrariedade que haveria de atormentar o império luso praticamente até ao fim. Em 1926, a sugestão de um intelectual macaense, o escritor Montalto de Jesus, de que, por manifesta incapacidade da metrópole para garantir o desenvolvimento do enclave, a administração de Macau transitasse para a Sociedade das Nações levou à apreensão e destruição dos exemplares da obra em que tal proposta havia sido formulada (Jesus 1990).
Os piores receios dos partidários do império acabaram por não se concretizar, em boa medida graças ao desinteresse da própria SDN por esse tipo de soluções, mas também à orientação de potências revisionistas, como a Alemanha após a chegada dos nazis ao poder, para outro tipo de projetos de expansão imperialista, designadamente para a Europa Central e de Leste. Durante a Segunda Guerra Mundial, a gestão cuidadosa, e muitas vezes ambígua, por Oliveira Salazar da neutralidade portuguesa resultaria numa confirmação do apoio das democracias ocidentais ao colonialismo português, que em Timor e em Macau, entre 1942 e 1945, enfrentou, às mãos dos japoneses, humilhações equiparáveis à de outros poderes imperiais (Alexandre 2017).
As ambiguidades das potências ocidentais a propósito da continuidade do colonialismo ficaram bem patentes em vários momentos do pós-guerra. Em boa medida, a historiografia vê hoje a criação das Nações Unidas como uma tentativa para dar um novo sopro de vida aos impérios europeus (Mazower 2009): diversos planos de desenvolvimento e bem-estar procuravam conter as aspirações nacionalistas estimuladas pela Guerra. Excluído da ONU até 1955, Portugal não deixou de tirar partido deste cerrar de fileiras dos poderes imperiais, sobretudo em África, cujas matérias-primas e recursos naturais eram percebidos pelos europeus como indispensáveis à sua reconstrução económica, bem como para a recuperação do seu estatuto de potências.
No entanto, não deixaram de ocorrer diversos desenvolvimentos perturbadores para o status quo imperial luso, desde logo relacionados com movimentos sísmicos que tiveram lugar no continente asiático. A independência da Índia, em 1947, gerou uma disputa diplomática entre Lisboa e Nova Deli, que rapidamente se converteria numa guerra de nervos, com potencial para degenerar num conflito armado. Em 1954, os enclaves portugueses de Dadrá e Nagar Aveli foram ocupados por ativistas satyagrahas indianos. A relutância de Jawaharlal Nehru em recorrer à força para resolver de uma vez por todas a “questão de Goa” adiaria por alguns anos o desfecho da disputa, que acabaria por acontecer em finais de 1961, quando o líder indiano concluiu que maiores atrasos poderiam comprometer seriamente a sua liderança junto do emergente Movimento dos Não-Alinhados (Stocker 2005).
Na China, o triunfo de uma revolução comunista que prometia vingar os vexames infligidos ao antigo Império do Meio parecia uma sentença de morte para estabelecimentos ocidentais como Macau ou Hong Kong. Tal não viria a acontecer, por força de um conjunto complexo de fatores, entre os quais foi decisivo o interesse do regime de Mao Tsé-tung em dispor de vias discretas que lhe permitissem contornar o bloqueio decretado pelos EUA à República Popular da China, no seguimento da Guerra da Coreia. Cálculos geopolíticos do mesmo teor refrearam a Indonésia de Sukarno, tornada independente em 1949, de reclamar a soberania sobre os territórios que não integravam o património das Índias Orientais holandesas, incluindo o então chamado Timor português (Oliveira 2023).
No entanto, os governantes portugueses não ignoravam o apelo emocional do nacionalismo anticolonialista e nunca confiaram inteiramente num direito internacional cujo viés imperialista passara a ser abertamente contestado nos grandes areópagos mundiais. Em abril de 1955, a conferência afro-asiática de Bandung sinalizou, entre outras coisas, a disposição das potências ali reunidas para prestarem apoio às lutas de libertação que tinham como foco primordial os poderes coloniais europeus. Redes e comités de solidariedade foram estabelecidos em vários países do então denominado Terceiro Mundo, com destaque para o Egipto, o Gana e Marrocos. Essas novas infraestruturas de solidariedade afro-asiática seriam ativamente procuradas pelos nacionalistas anticoloniais de língua portuguesa, para organizarem a sua luta independentista. Os de orientação tendencialmente socialista, na sua maioria educados na Europa (e muitos deles em Lisboa), formam, em 1960, em Tunes, a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, uma plataforma que traria importantes sucessos diplomáticos aos movimentos que a constituíam, ao ponto de permitir muitas vezes camuflar as respetivas fraquezas na frente militar.
A viragem da década foi fértil em sobressaltos para Portugal. Reunida em dezembro de 1960, a Assembleia Geral das Nações Unidas coincidiu com a aprovação de um conjunto de declarações que estabeleciam, sem ambiguidades, o direito dos povos à autodeterminação, a que a própria Carta da organização já aludia.
É certo que à época outros poderes coloniais europeus estavam ainda implicados em vários conflitos intratáveis, usando leis de exceção para encarcerar e torturar combatentes independentistas, desde a Argélia ao Quénia. Mas o carácter ditatorial do poder metropolitano português tornava-o quase impermeável a pressões domésticas e menos flexível a sugestões liberalizadoras feitas por poderes como os EUA – elementos que, por essa altura, pesaram nalgumas das “estratégias de saída” congeminadas por britânicos e franceses. O regime salazarista enfrentou um ano particularmente duro em 1961, com tentativas de golpe no plano interno, levantamentos populares armados em Angola, a perda da fortaleza de São João Baptista de Ajudá (no atual Benim), e a anexação de Goa, Damão e Diu pelas forças da União Indiana.
As pressões sofridas por Portugal nas Nações Unidas eram consideráveis, incluindo votos hostis dos EUA, então sob a presidência de John F. Kennedy. Salazar alegaria mais tarde que um pequeno país como Portugal estava impedido de seguir as pisadas de outros países europeus, pois não dispunha de meios para continuar a exercer uma influência duradoura nas suas colónias através de mecanismos indiretos (ditos “neocoloniais”). Trata-se de uma explicação que deixa muito a desejar; parece mais razoável supor que Salazar percebesse que uma guerra prolongada, mas de custos controlados e de “baixa intensidade”, lhe seria vantajosa. Agora que os países europeus ocidentais, para onde todos os anos emigravam dezenas de milhares de portugueses, demonstravam ser possível conciliar prosperidade, estabilidade e democracia, tornava-se mais difícil justificar a natureza ditatorial do regime português. Numa era de détente na Guerra Fria, como aquela que ocorreu a partir de 1962-63, apenas a manutenção de um império concebido como uma “herança sagrada” (Alexandre 2017) permitia justificar a mobilização militar do país, com os correspondentes custos financeiros, e ainda com prejuízo para os esforços de modernização e bem-estar que o próprio regime sabia que tinha de empreender para garantir a sua estabilidade.
No imediato, é verdade que Lisboa conseguiu ganhar tempo, graças a uma estratégia de contrainsurreição prudentemente conduzida e a um conjunto apreciável de cumplicidades internacionais. Até ao início dos anos 1970, o regime logrou conter o desafio das guerrilhas africanas, que haviam entretanto aberto focos de luta armada também na Guiné (1963) e em Moçambique (1964), ao mesmo tempo que lançava ambiciosos programas de fomento económico e engenharia social. Os interesses económicos implicados nesse surto de crescimento, assim como o vasto aparato burocrático e de segurança vinculado ao esforço militar, criaram um número assinalável de veto-players, que ajudaram Salazar, e depois Caetano, a adiar quaisquer cenários de descolonização (Spruyt 2005).
Os portugueses puderam tirar partido de certas táticas de contrainsurreição que outras potências ocidentais tinham desenvolvido noutros contextos, da Malaia ao Vietname, da Argélia ao Quénia, assim como da condescendência dos seus parceiros da NATO no tocante ao desvio de equipamento desta organização para os teatros africanos. O seu entendimento com os regimes supremacistas brancos da Rodésia e da África do Sul evoluiu para modalidades de colaboração cada vez mais estreita, em domínios como a partilha de informações, a cooperação policial e militar e o intercâmbio económico. Tudo isto criou condições que levaram a um impasse que, no início da década de 1960, quando o fim do “ultracolonialismo” português era visto como iminente por não poucos observadores europeus, poucos teriam acreditado ser possível.
As divisões no campo dos nacionalistas foram também um fator não negligenciável no arrastamento da situação. Os apelos à unidade que vários líderes e entidades afro-asiáticas endereçavam raramente surtiram efeito, sobretudo no caso de Angola, onde os independentistas se dividiram em três partidos antagónicos; mesmo movimentos dotados de lideranças mais coesas, como a FRELIMO (Moçambique) e o PAIGC (Guiné-Bissau e Cabo Verde), ressentiram-se de cisões e de rivalidades internas, algumas delas facilitadas por desenvolvimentos como o cisma sino-soviético nos anos 1960, e acabaram por ver os seus líderes assassinados – Eduardo Mondlane em 1969, Amílcar Cabral em 1973 – em parte devido ao exacerbamento dessas divisões.
Na Guiné e em Moçambique, a guerrilha gozava de certa capacidade de iniciativa, sobretudo graças a algum equipamento militar moderno (artilharia ligeira em particular) e a quadros treinados em academias militares de países socialistas, de Cuba à China. No entanto, o grosso da atividade dos movimentos independentistas desenrolava-se no exílio, sob a forma de iniciativas diplomáticas (em especial na ONU) e de propaganda política (MacQueen 1997). Para isso, esses movimentos contavam com a solidariedade de dezenas de estados do chamado Sul Global e do bloco socialista, assim como de redes de ativistas anticoloniais em vários países do Ocidente.
O efeito cumulativo desta mobilização transnacional foi apreciável. Em 1973, a denúncia de atrocidades cometidas pelo exército português, como a de Wiriyamu, em Moçambique, deu uma nova visibilidade ao sofrimento que resultava do impasse militar na África dita portuguesa.
Em última análise, numa guerra de paciência e desgaste como são todas as guerras de guerrilha, os nacionalistas revelariam uma determinação superior, levando a que as forças armadas portuguesas, elas próprias um espelho das mudanças aceleradas vividas por Portugal nos anos 1960, começassem a questionar o sentido da resistência à descolonização.
Como alguns dos oficiais portugueses depois notariam, o efeito do golpe de Estado de 25 de abril de 1974, motivado essencialmente pela incapacidade do regime para superar o impasse ultramarino, foi em tudo semelhante ao impacto da queda do czarismo na vontade de lutar dos soldados russos em 1917.
Essa circunstância revelar-se-ia decisiva no desatar dos laços coloniais entre Lisboa e os seus territórios africanos. Uma tentativa de última hora do general António de Spínola, o presidente da Junta de Salvação Nacional, no sentido de relançar o projeto imperial em bases federativas (ou “neocoloniais”, como pretendiam os seus críticos) esbarrou na oposição determinada dos movimentos independentistas e dos seus aliados, bem como na dos oficiais do Movimento das Forças Armadas, que apostavam tudo num acordo amistoso com as guerrilhas.
Perante as tentativas de adiamento de Spínola, o recrudescimento das ações armadas e vários ultimatos das estruturas locais do MFA foram suficientes para que o antigo governador da Guiné tomasse consciência de que não havia alternativa à independência sob a égide dos movimentos nacionalistas reconhecidos pela ONU. Em 1958, no caso francês, o impasse argelino gerara também uma intervenção militar na política, que levou inclusivamente ao nascimento da V República, sob a liderança do general De Gaulle; o seu sentido, no entanto, foi o de tentar salvar a Argélia francesa, desígnio precisamente contrário ao que pretendia o MFA quando avançou para o derrube do Estado Novo.
A Lei 7/74, de 27 de julho, consagrou o reconhecimento imediato do direito das populações coloniais à autodeterminação, com todas as suas consequências, incluindo a independência, e foi recebida com júbilo pela população metropolitana e ultramarina, assim como pela generalidade das forças políticas portuguesas, para quem a descolonização era tida como uma premissa fundamental da evolução democrática do país.
Os processos de transferência do poder na Guiné, em Moçambique, em Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe não foram isentos de sobressaltos – sobretudo em Moçambique, após os motins provocados por uma parte da população branca hostil ao acordo de independência celebrado com a FRELIMO em 7 de setembro de 1974. Entretanto, isso não impediu que o momento fosse vivido de forma eufórica entre os sectores mais à esquerda da revolução portuguesa: Portugal e as suas antigas colónias estavam agora irmanados na “construção do socialismo” e Lisboa podia aspirar a tornar-se um intermediário-chave entre a Europa e a África, uma “ponte” entre o Norte capitalista e o Sul Global, superando a memória traumática do colonialismo e da guerra.
Este momento de euforia teve, porém, um tempo de vida muito curto. O principal fator a arrefecer o entusiasmo com a descolonização foi a afluência a Portugal, em grande número, dos nacionais portugueses de Angola e Moçambique (conhecidos como “retornados”, rótulo que muitos repudiavam), confrontando a antiga metrópole com a necessidade de acomodar e apoiar aproximadamente 550 000 indivíduos, num contexto de grave crise económica (Peralta 2022). A esmagadora maioria eram portugueses brancos, mas entre eles contavam-se também algumas dezenas de milhar de africanos, que contribuíram para tornar as cidades portuguesas um pouco mais multiculturais, ao mesmo tempo que punham à prova as ideias auto-complacentes do país em relação à sua capacidade para lidar com a diferença.
O segundo fator prendeu-se com a rápida deterioração da situação política nos antigos territórios ultramarinos. Dois deles, em particular – Angola e Timor –, converteram-se em palco de violentos conflitos entre facções nacionalistas desavindas, que propiciariam interferências externas de vários atores da Guerra Fria e, no último caso, uma invasão militar indonésia que estabeleceria um regime de ocupação brutal até à realização de um referendo de autodeterminação em 1999. Em ambos os casos, a incapacidade das autoridades portuguesas para exercerem um papel arbitral suscitou enormes controvérsias, influenciando muito negativamente, e por várias décadas, as perceções da opinião pública acerca da descolonização.
Como se comparou o fim do império lusitano com o de outras potências? E como se têm os portugueses relacionado com a memória de todo o processo? Mais uma vez, parece sensato matizarmos aqui a noção de “excepcionalidade” portuguesa. O facto de países como a Bélgica, a Holanda e a França serem governados por democracias liberais, que não eram indiferentes à maneira como eram olhadas pela opinião pública internacional, tornou possível compromissos negociados com forças independentistas – mas isso não poupou a erupção no Congo, na Indonésia, na Indochina e na Argélia de episódios de enorme violência, incluindo guerras travadas com extrema crueldade. Mesmo a descolonização britânica, durante tanto tempo apresentada como um modelo de razoabilidade e pragmatismo (num registo próximo da “versão whig da história”), tem sido alvo de um olhar mais crítico, que associa a procrastinação de Londres à imensa tragédia humana da partição da Índia e Paquistão, em 1947, ou enfatiza o recurso a medidas de exceção para cobrir toda a espécie de abusos nas campanhas de contrainsurgência travadas na Malaia ou no Quénia (Elkins 2022).
Tal como os seus congéneres europeus, Portugal tentaria encontrar um enquadramento institucional para tirar o máximo partido das suas relações pós-coloniais, designadamente com a criação, em 1996, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). À imagem de outras instituições diplomáticas pós-coloniais, como a Commonwealth ou a Francophonie, a CPLP poderá ter trazido alguns dividendos políticos à antiga potência colonial (como o apoio em certas votações na ONU), mas ela tem sido também uma arena onde a harmonização de interesses se tem revelado muitas vezes difícil, em parte devido ao ressentimento de alguns estados-membros diante daquilo que veem como manifestações de “paternalismo” da antiga metrópole, ou em domínios onde os compromissos portugueses no quadro da União Europeia (tais como os acordos de Schengen) colidem com as expectativas das antigas colónias africanas.
As consequências culturais e psicológicas da descolonização entre os ex-estados coloniais são também um laboratório de comparação interessante. Em 1999, um ano depois da Exposição de Lisboa dedicada à temática dos Oceanos, vista por alguns como uma manifestação do apego de Portugal ao seu imaginário imperial, o historiador Landeg White observou que em 1975 o país realizara a sua descolonização “física”, mas permanecia relutante em empreender uma verdadeira “descolonização mental” (White 1999: 54-55). Tal tarefa implicaria revisitar toda uma história imperial recheada de mitos benevolentes e, ao mesmo tempo, tirar ilações sobre os equívocos dessa história mítica e das suas manifestações no presente. As últimas duas décadas, porém, têm evidenciado alguma disposição de partes da sociedade portuguesa para realizar um ajuste de contas com o passado imperial, em boa medida graças à difusão, na academia e nos media, de uma agenda pós-colonial, bem como ao ativismo de indivíduos e organizações de afrodescendentes.
O apego português a uma representação mítica do passado tem matizes próprias, incluindo um forte envolvimento estatal na perpetuação de um imaginário de tonalidades luso-tropicalistas. Mas, uma vez mais, até que ponto o mesmo não sucederá noutros contextos, em função de idiossincrasias locais que também elas se têm revelado resistentes à mudança? Exemplos disto são as “guerras identitárias” alimentadas por incidentes associados a legados imperiais (das polémicas em torno de Zwarte Piet nos Países Baixos à campanha Rhodes Must Fall no Reino Unido), ou as memórias não apaziguadas de vários países em relação aos aspetos mais violentos do seu colonialismo, desde as atrocidades no Congo do Rei Leopoldo às violações de direitos humanos na Argélia francesa (Buettner 2016).
De certa forma, o último capítulo desta história europeia permanece ainda por concluir – e são cada vez mais aqueles que querem ter uma palavra a dizer nesse processo.
- Creator
- Oliveira, Pedro Aires
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Abstract
- Esta entrada procura situar a descolonização portuguesa face a processos análogos noutras formações imperiais europeias no século XX. Fá-lo numa perspetiva diacrónica, explorando quatro subdivisões temporais: 1919-1945 (os impactos das duas guerras mundiais); 1945-61 (as tentativas de relegitimação do colonialismo através do «desenvolvimento»); 1961-74 (a intensificação das pressões para a descolonização); e 1974-75 (o fim do império e as suas sequelas). A entrada procura salientar exemplos de influências transnacionais e matizar noções de uma singularidade portuguesa em todo este processo histórico.
- Date Issued
- 12-11-2024
- References
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Dublin Core
Collection
Citation
Oliveira, Pedro Aires, “Descolonização,” Connecting Portuguese History, accessed November 21, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/36.