Sabão
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- Sabão
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- O corpo socialmente aceite teve, na Europa Ocidental e durante alguns séculos, cheiros excessivamente fortes. Esta realidade, transversal a diferentes grupos sociais, começou a alterar-se apenas em finais do século XVIII, de forma muito lenta e progressiva, através da generalização do uso do sabão, associada ao surgimento de novas ideias a respeito do corpo e da higiene.
Uma substância muito semelhante ao sabão, sem a saponificação das gorduras com soda cáustica, era há muito conhecida como agente de limpeza, mas a sua utilização parece ter diminuído em alguns períodos históricos, sendo o asseio muito dificultado pelas condições dos espaços habitacionais, pelos hábitos e pela convivência entre pessoas e animais.
No século XVII, e depois também no século XVIII, há diversas descrições de que a higiene se fazia “a seco”, por fricção. Para aqueles que tinham maiores posses, o vestuário utilizado substituía a limpeza das zonas cobertas: “mudar de roupa [era], no fundo, lavar-se” (Vigarello 1988: 54), o que fazia desse ritual uma verdadeira forma de comunicação não-verbal, que permitia identificar facilmente o estatuto social daqueles que podiam mudar a roupa que ficava em contacto com a pele.
A forma como a água e o sabão eram utilizados permite-nos também pensar na generalização de alguns objetos de limpeza, como por exemplo as escovas tipo viola, muito utilizadas para esfregar soalhos mas não só, ou ainda as pequenas vassourinhas sanitárias, também em fibra de piaçaba, que acabaram por ter uma enorme relevância no quotidiano (Chiazza 2012). Estes e outros objetos permitem-nos viajar através das práticas de higiene, das considerações sobre a saúde, das regulamentações sobre o corpo e o vestuário, bem como entrar em contacto com certas obsessões e alguns estereótipos.
Os cuidados com o corpo podem também perceber-se através das mudanças na arquitetura, no mobiliário, ou em utensílios banais, de uso comum, relacionados com lavagens íntimas, purgas e abluções diversas. O século XIX assistiu a uma higiene progressivamente mais pragmática: não estavam apenas em causa as políticas de higiene pública, a imposição de um discurso higienista (Barreiros 2016), mas também o reforço da imagem de corpos padronizados e disciplinados, mais saudáveis e mais fortes.
Foi por via de uma preocupação política cada vez mais higienista que a saúde pública foi ganhando adeptos e impondo práticas generalizadas (Porter 1998). Na medida em que a assepsia era mais desejada, a água, o seu transporte para cada casa e o seu escoamento obrigaram a importantes alterações urbanas, a diferentes configurações dos espaços interiores e a novas rotinas.
O sabão, que, do fabrico caseiro com gorduras vegetais (sobretudo azeite) ou animais (sebo, óleo de peixe ou de baleia) e cinzas, evoluiu para um produto com eficácia de detergente, concebido através de um processo industrial cada vez mais complexo e diversificado, começou a alimentar um comércio relevante, à medida que a publicidade seduzia a população com ideais estéticos que simultaneamente impunham permanentes “cuidados e desassossegos” (Crespo 1990: 7).
Em Portugal, a evolução foi em tudo semelhante ao panorama aqui traçado. Como noutros países europeus, ao longo do século XIX as saboarias adquiriram uma importância cada vez mais significativa (Barata 1974). O sabão, sobretudo o azul e branco, ia chegando lentamente às zonas rurais, vendido em mercearias e em algumas feiras.
Em meados do século XX, o acesso a este produto de higiene era ainda muito condicionado, sobretudo em aldeias mais recônditas, como referem alguns testemunhos orais (Samara e Henriques 2013). O sabão era usado na lavagem da roupa, dos soalhos e até da loiça. Porém, era um produto escasso, que se usava com parcimónia; também por isso, era comum o seu fabrico a partir do sebo e das cinzas, mistura que se fervia e moldava. Na barrela da roupa colocavam-se pedaços de sabão com água quente, a que por vezes se misturava urina guardada para o efeito e cinzas envolvidas num pano. Situação diferente se verificava nos centros urbanos, onde, na década de 1870, iam surgindo sabões de diferentes tipos, vendidos em tabernas, em mercearias ou pelos petrolinos.
À semelhança do perfume, o sabão que se utiliza permite olhar para uma evolução que é também olfativa: o sabão de origem animal foi sendo substituído por outros de origem exclusivamente vegetal, alguns com notas florais, mais delicados. A beleza foi-se associando progressivamente à limpeza, ao prazer, ao conforto e até à saúde.
A pele branca e o cabelo louro, que ganharam grande notoriedade no princípio do século XX – através de imagens muito divulgadas, sobretudo pelo cinema americano e pelas fotografias de moda –, foram progressivamente perdendo relevância em relação ao bem-estar. Ainda assim, nunca deixou de haver uma preocupação com os cuidados com um corpo implacavelmente controlado, cuidado ou “leve”, como refere Gilles Lipovetsky (2016).
Em termos publicitários, estamos atualmente muito longe das propostas da empresa inglesa A. & F. Pears, que no início do século XIX começou a produção de um sabão menos agressivo, que pudesse ser usado nas barbearias ou com crianças e em diferentes necessidades pessoais e domésticas. Esta empresa produziu diversos cartazes publicitários sobre os benefícios da utilização do sabão que fabricava e, em muitos deles, acentuava-se o conforto que se poderia sentir com uma pele mais protegida dos germes, mais requintada, expurgada dos odores já considerados socialmente desagradáveis. No entanto, algumas dessas imagens anunciavam também que o sabão Pears era útil para branquear a pele, reforçando o estereótipo racista de que a pele negra deveria ser alterada. Se olharmos para as representações corporais dessa época – e que de diferentes formas foram chegando até hoje –, branquear e descolorir tornaram-se efetivamente temas de consumo banais.
Se o olhar para com a pele negra se manteve muitas vezes ambivalente – ora alvo de fascínio, ora de interesse predatório –, ele foi ao mesmo tempo adquirindo um significado político cada vez mais relevante (Nouschi 2009: 162-193). Hoje, os corpos publicitados são tendencialmente menos padronizados no que diz respeito à cor, embora, de uma maneira geral, permaneçam harmoniosos no sentido clássico e estético do termo e, por isso, pressuponham uma normalização e repressão contínuas.
A partir de meados do século XX, foi-se tornando cada vez mais simples aceder aos ideais estéticos divulgados de forma profissional e intensiva pela publicidade. Individualmente, cada pessoa passou a poder comunicar de forma mais eficaz as suas opções ideológicas ou simbólicas através das peças de roupa que usa (Eco 1989), mas também através de uma multiplicidade de cores e cheiros com os quais se apresenta publicamente, com os quais se integra socialmente.
A industrialização, a comercialização generalizada e a venda em grandes superfícies praticamente acabaram com a produção artesanal de produtos para a limpeza da casa, das roupas e do corpo. Substituídos por muitas outras opções, os sabões e outros produtos de beleza (incluindo os cosméticos) democratizaram-se, ao mesmo tempo que as imagens corporais continuam a ser controladas e uniformizadas. Entre a discrição e a ostentação, o corpo traduz diferentes códigos de conduta, ideologias políticas e educativas, opções estéticas, ambientais e outras.
Independentemente da época, a aparência mostrou ser sempre um elemento essencial para uma hierarquização e, também, para uma integração entre os pares. Nesse processo de integração/exclusão, o sabão foi um dos objetos quotidianos que contribuiu, entre muitos outros, para a celebração de um corpo mais saudável, mas também para a dimensão política e cultural do corpo.
- Creator
- Henriques, Raquel Pereira
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Abstract
- A utilização do sabão pode ser abordada no âmbito da história da vida privada, ou até no campo da economia e da investigação química, com o desenvolvimento das saboarias e da indústria dos detergentes. Tema que extravasa fronteiras, permite reflexões sobre higiene, saúde pública, propriedades fitoterápicas de certos sabões e a patrimonialização do limpo e do sujo, remetendo para diferentes dimensões políticas e culturais do corpo.
- Date Issued
- 12-11-2024
- References
- Barata, Cipriano Nunes (1974). A Indústria dos Detergentes em Portugal (estudo histórico-económico). Lisboa: Instituto do Azeite e Produtos Oleaginosos.
Barreiros, Bruno (2016). Concepções do corpo no Portugal do século XVIII. Sensibilidade, higiene e saúde pública. V.N. Famalicão: Húmus.
Chiazza, Sara di (2012). “A patrimonialização do limpo e a memória do sujo. O destino dos antigos objectos de limpeza entre vivências, mercados e museus”. In Paula Godinho (coord.). Usos da memória e práticas do património. Lisboa: Colibri, pp. 267-289.
Crespo, Jorge (1990). A História do Corpo. Lisboa: Difel.
Eco, Umberto (1989, 3ª ed.). “O hábito fala pelo monge”. In Umberto Eco et al. Psicologia do vestir. Lisboa: Assírio e Alvim, pp. 7-20.
Lipovetsky, Gilles (2016). Da Leveza: Para uma Civilização do Ligeiro. Lisboa: Edições 70.
Nouschi, Marc & Elisabeth Azoulay (orgs.) (2009). 100 000 Years of Beauty. Modernity/Globalisations. Vol. IV. Paris: Gallimard.
Porter, Dorothy (1998). Health, Civilization and the State. A History of Public Health from Ancient to Modern Times. Londres: Routledge.
Samara, Maria Alice & Raquel Pereira Henriques (2013). Viver e Resistir no Tempo de Salazar. Histórias de Vida Contadas na 1ª Pessoa. Lisboa: Verso de Kapa.
Vigarello, Georges (1988). O Limpo e o Sujo. A Higiene do Corpo desde a Idade Média. Lisboa: Fragmentos.
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Citation
Henriques, Raquel Pereira, “Sabão,” Connecting Portuguese History, accessed November 24, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/40.