Que se Lixe a Troika
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- Que se Lixe a Troika
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- O movimento Que se Lixe a Troika (QSLT) surgiu em Portugal no verão de 2012, num contexto marcado pelo maior nível de contestação verificado em Portugal desde os anos da revolução de Abril. Tal mobilização insere-se num quadro internacional marcado pela Grande Recessão e pela crise da Zona Euro, em que movimentos de protesto contestaram as políticas de austeridade e suas consequências sociais, políticas e económicas no sul da Europa. Tais políticas seguiam os ditames de redução da despesa estatal e liberalização do Estado Providência, privatizações e desregulação do mercado de trabalho. Em Portugal, essas políticas foram iniciadas em 2010 pelo então governo do Partido Socialista (PS, de centro-esquerda), por pressão dos mercados financeiros e da União Europeia, e prosseguidas pelo governo de coligação entre o Partido Social Democrata e o Centro Democrático Social (PSD e CDS/PP, de centro-direita) a partir de meados de 2011, já com monitorização da Troika formada pelo Banco Central Europeu, pela Comissão Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional.
O QSLT foi criado na sequência da mobilização anti-austeridade e da interação entre diferentes atores que se iniciou em meados de 2010. As primeiras reações foram lideradas por sindicatos através de greves gerais (em março e em novembro de 2010), seguidas em 2011 por movimentos como a “Geração à Rasca” (GàR, em março), a Acampada do Rossio (em maio) e a manifestação de 15 de outubro (15O), iniciativas que acompanhavam processos semelhantes a nível global. O GàR foi uma das primeiras mobilizações europeias na sequência da Primavera Árabe, tendo inspirado o protesto de 15 de maio (15M) em Madrid; em contrapartida, a Acampada de Lisboa replicou os eventos na capital espanhola, enquanto as manifestações de outubro se inseriram numa mobilização europeia destinada a assinalar os seis meses do 15M espanhol.
Após estas mobilizações, a unidade em torno do 15O desfaz-se. Com o início do ano de 2012 marcado por fraca mobilização, os sindicatos assumem protagonismo renovado através de novas greves gerais. Dado este retraimento, no verão, vários dos grupos que tinham deixado o 15O iniciam a preparação do QSLT. Agendada para 12 de setembro, a primeira manifestação promovida pelo QSLT foi impulsionada pelo anúncio de novas medidas de austeridade pelo então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, nomeadamente o aumento da contribuição dos trabalhadores para a taxa social única, que era acompanhado da sua diminuição por parte dos empregadores. Acirradas as tensões políticas e sociais, as estimativas apontaram para um milhão de pessoas na rua, em todo o país.
Com base numa análise das anteriores mobilizações, o QSLT procurou redefinir a sua oposição à austeridade. Por um lado, procurou maior politização da sua mensagem; por outro, estruturou-se numa forma de organização mais fechada, de modo a garantir uma direção sólida e a evitar conflitos entre grupos (Carvalho 2022). A sua ação dava-se em tabuleiros distintos: em relação a anteriores grupos, tinha maior proximidade com partidos e sindicatos, assim como com o município de Lisboa (Accornero e Ramos Pinto 2020); ao mesmo tempo, mantinha uma atividade típica de um movimento social.
O nome adotado tinha como objetivo exprimir a divisão política entre os que assinaram o Memorando de Entendimento com a Troika (PS, PSD e CDS/PP), e que como tal subscreviam as medidas de austeridade, e os que se situavam no campo oposto. Estabelecia-se, assim, não só uma linha de demarcação ideológica e política, mas também social, que afirmaria na rua a rejeição de tais políticas. Contudo, apesar do contexto de crise internacional e da condicionalidade imposta pela Troika, o QSLT não se opunha de forma clara à União Europeia, antes apontando o dedo aos responsáveis nacionais pelas políticas implementadas. Assim, um dos seus slogans era o de “governo para a rua”: alegava-se a falta de legitimidade de um programa que não tinha sido votado nas eleições de 2011 (Accornero e Kousis 2023; Carvalho 2022).
Ainda assim, o QSLT procurou inserir as suas atividades no contexto das lutas internacionais. Por exemplo, havia contactos próximos com Espanha, via internet, bem como visitas e contactos pessoais (Baumgarten e Díez García 2017). Procurou-se também replicar formas de organização de sucesso em Espanha: na manifestação de 2 de março (também com cerca de 1 milhão de pessoas), organizaram-se “marés” que se focavam na defesa de interesses e direitos sectoriais, tais como a saúde e educação. Porém, estas não chegaram a implantar-se com o mesmo sucesso que tinham obtido em Espanha. Outro exemplo foi a manifestação de junho de 2013: apesar de gerar menor participação em Portugal, ela tinha como lema “Povos Unidos contra a Troika”, integrando um esforço concertado em mais de 100 cidades da Europa.
A linguagem e os símbolos do QSLT alicerçavam-se numa defesa dos direitos sociais enquanto herança do 25 de Abril, num contexto em que a austeridade os punha em causa. Para isso, o legado da Revolução foi reinterpretado (Baumgarten 2017). O exemplo mais claro disso é o da canção Grândola, Vila Morena: nos estandartes do QSLT, era habitual a inscrição “O povo é quem mais ordena”, da canção de Zeca Afonso, pela sua evocação dos princípios de igualdade e justiça associados ao 25 de Abril. Com a preparação do protesto de março de 2013, esta canção foi várias vezes utilizada para interromper ministros em eventos públicos.
É importante notar que, dada a defesa da herança do regime instituído no período revolucionário, este grupo não contestava o regime em si mesmo, mas antes os atores que, no poder, pretendiam desfazer esse legado. Neste sentido, nunca se deu uma crítica ao regime, ou reivindicações de renovação democrática, mas antes a defesa do legado do período revolucionário. Este cenário é distinto do verificado, por exemplo, em Espanha, que também implementou medidas de austeridade fortemente contestadas. Em Espanha, a transição pactuada entre as elites partidárias foi criticada pelo seu alcance limitado, que não teria permitido uma rutura completa com o passado ditatorial, o que teria tido consequências para o funcionamento da democracia (Accornero 2015). Este discurso enquadrava-se numa crítica transversal, que reclamava uma renovação democrática e maior inclusão cidadã. Em Portugal, pelo contrário, a memória da transição é positiva, sendo vista como um legado a defender e a aprofundar. Neste sentido, a democracia concretiza-se através dos direitos estabelecidos durante aquele período.
O QSLT foi responsável por uma das maiores mobilizações de protesto desde os anos de Abril, colocando sob pressão o governo e as instituições políticas portuguesas. Em Portugal, deixou uma herança particularmente importante no imaginário dos movimentos sociais nos anos seguintes, reforçando um ideário de defesa dos direitos sociais inscritos na Constituição.
- Creator
- Carvalho, Tiago
- Relation
- Iscte – Instituto Universitário de Lisboa
- Abstract
- Em diferentes países da Europa do Sul, verificaram-se protestos com grande expressão social em resposta às políticas de austeridade implementadas por governos nacionais e por instituições internacionais. Em Portugal, destacar-se-ia o movimento Que se Lixe a Troika, estabelecendo relações com movimentos e ações desenvolvidas noutros países, nomeadamente em Espanha, e assumindo de forma renovada a herança da Revolução de Abril.
- Date Issued
- 12-11-2024
- References
- Accornero, Guya (2015). “Back to the revolution: The 1974 Portuguese spring and its "austere anniversary"”. Historein, 15(1), 32–48.
Accornero, Guya & Maria Kousis (2023). “From Protesting Against Troika Bailouts to Pro-EU Governing in Greece and Portugal: Europeanisation and Institutionalisation Processes”. JCMS: Journal of Common Market Studies.
Accornero, Guya & Pedro Ramos Pinto (2015). “’Mild Mannered’? Protest and Mobilisation in Portugal under Austerity, 2010-2013”. West European Politics 38(3), pp. 491-515.
Accornero, Guya & Pedro Ramos Pinto (2020). “Politics in Austerity: Strategic Interactions Between Social Movements and Institutional Actors in Portugal, 2010–2015”. In Marco Lisi, André Freire e Emmanouil Tsatsanis (orgs.), Political Representation and Citizenship in Portugal: From Crisis to Renewal, Lanham: Lexington, pp. 45–69.
Baumgarten, Britta (2017). “The Children of the Carnation Revolution? Connections between Portugal’s Anti-Austerity Movement and the Revolutionary Period 1974/1975”. Social Movement Studies, 16(1), pp. 51-63.
Baumgarten, Britta & Rubén Díez García (2017). “More than a Copy Paste: The Spread of Spanish Frames and Events to Portugal”. Journal of Civil Society, 13(3), pp. 247-266.
Carvalho, Tiago (2022). Contesting Austerity. Social Movements and the Left in Portugal and Spain (2008-2015). Amesterdão: Amsterdam University Press.
Dublin Core
Collection
Citation
Carvalho, Tiago, “Que se Lixe a Troika,” Connecting Portuguese History, accessed November 24, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/42.