Baleação
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- Baleação
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- A história marítima de Portugal não se resume à denominada epopeia dos Descobrimentos nos séculos XV e XVI, ou às travessias e contactos posteriores que o Império Colonial motivou até meados do século XX. Ela contém outras facetas, menos propensas a narrativas de glória e conquista, e extravasa os limites do Império Português, integrando não só outros impérios e geografias, como jogos de força político-económicos e arranjos socioculturais transnacionais. A baleação é um caso elucidativo dessas abrangências e interdependências, e um capítulo menos conhecido, mas muito relevante, da história marítima portuguesa.
Os arquipélagos atlânticos dos Açores e de Cabo Verde, cuja posição geoestratégica privilegiada sempre contrariou a sua condição periférica, foram desde tempos recuados portos de escala obrigatórios para navios das mais variadas origens, que aí ancoravam para abastecimento, aguada e recrutamento de tripulação. Entre as várias embarcações que passaram pelas ilhas, destacam-se os navios baleeiros norte-americanos. Embora presentes nas águas portuguesas desde a segunda metade do século XVIII, foi na centúria seguinte que a indústria baleeira americana se afirmou como uma das atividades comerciais mais proeminentes do mundo. Antes da difusão do gás e da eletricidade como principais fontes de energia, o óleo de cachalote era utilizado como combustível para a iluminação pública.
As barcas baleeiras saíam dos portos da Nova Inglaterra e passavam anos no mar, atravessando vários oceanos e fundeando em diferentes portos durante a longa viagem. E se, por um lado, alguns dos tripulantes norte-americanos desertavam nestas paragens, por outro, muitos ilhéus embarcavam no seu lugar. De Cabo Verde e dos Açores (conhecidos como Western Islands) milhares fugiram, clandestinos, da fome, da penúria, ou do alistamento militar. Outros foram contratados como mão-de-obra barata. A frota americana aproveitava essa força de trabalho e os ilhéus procuravam tirar partido da oportunidade, sem muitas vezes imaginarem a vida árdua e penosa que os esperava no alto-mar. Inexperientes, ocupavam a base da hierarquia naval: eram green hands. Anos mais tarde, alguns deles chegaram a imediatos e capitães. À época, açorianos e cabo-verdianos eram cidadãos portugueses, embora muito diferentes entre si. Para os americanos, porém, estes dois coletivos constituíam um só: the Portuguese. Na década de 1860, os apelidados Gees (Melville 1856) – assim tratados derrogatoriamente – representavam um quarto das tripulações baleeiras (Busch 1985). Mas os castelos de proa e os porões dos navios caracterizavam-se por uma enorme diversidade cultural: diferentes línguas, etnias e culturas interagiam tanto a bordo quanto em terra, com toda a complexidade sociológica que essa coexistência implicava.
Em terra, a atividade baleeira implementava-se também, sobretudo nos Açores, e ao seu desenvolvimento não foi alheia uma prestigiada família americana que permaneceu no arquipélago durante várias gerações: os Dabney. Entre 1806 e 1892, os três cônsules americanos nos Açores partilhavam este apelido. E foi o segundo deles, Charles W. Dabney, que em 1854 instalou a primeira unidade industrial baleeira na ilha do Faial. Foi também por iniciativa do terceiro cônsul, Samuel Dabney, e de outro americano residente no Faial, em parceria com um ex-capitão baleeiro açoriano, que se constituiu em 1876 a primeira armação baleeira nos Açores, na ilha do Pico.
Além dos múltiplos e profundos impactos nas ilhas, a baleação norte-americana abriu caminho para a emigração rumo aos Estados Unidos da América, inaugurando um dos fluxos migratórios portugueses mais expressivos. Foi a baleação que esteve na origem desta diáspora. E, se é verdade que na segunda metade do século XIX a indústria baleeira norte-americana entra em declínio, é também a partir dessa altura que alguns açorianos e cabo-verdianos logram ser capitães e proprietários de navios baleeiros. Já no dealbar do século XX, alguns oficiais cabo-verdianos adquirem antigas baleeiras obsoletas e convertem-nas em transporte de carga e de passageiros, instituindo o Packet Trade, outro importante canal de ligação atlântico. Os Brava Packets fizeram inúmeras viagens entre a Nova Inglaterra e as ilhas de Cabo Verde, dando novo impulso às correntes migratórias.
Apesar do definhamento da baleação americana no final do século XIX e, com ela, das vagas migratórias a bordo dos navios baleeiros, a emigração insular prosseguiu, não obstante as medidas restritivas impostas pelo governo dos Estados Unidos à entrada de estrangeiros. O Immigration Act de 1924 estabeleceu limites apertados quanto ao número de imigrantes que poderiam cruzar as fronteiras do país e, embora tenha vigorado durante as décadas seguintes, em 1958 – com a erupção do vulcão dos Capelinhos, na ilha do Faial –, abriu-se um regime de exceção, o Azorean Refugee Act, verificando-se uma retoma expressiva da emigração açoriana.
A baleação abriu caminho para a emigração dos ilhéus que, posteriormente, se envolveriam também noutras atividades em terra, com particular destaque para a indústria (na Nova Inglaterra) e para a pesca e agricultura (na Califórnia), sendo de salientar que foram baleeiros açorianos que fomentaram a baleação costeira nesta região da costa Oeste, com a constituição de companhias baleeiras, a partir da década de 1850 (Mayone Dias 1979, Bertão 2006).
A história da baleação portuguesa é indissociável da história da baleação norte-americana. Se a participação dos Açores na baleação pelágica (em mar alto) americana desponta, nos séculos XVIII e XIX, numa conjuntura internacional que determina o seu florescimento, no século XX a baleação costeira açoriana ganha autonomia e especificidade próprias, estabelecendo-se como uma atividade económica relevante na região. O último quartel do século XIX assistiu a uma mudança na participação portuguesa na indústria baleeira global. Nos Açores, a instalação de vigias nos pontos altos da costa permitiu continuar a atividade baleeira a partir das bases costeiras. Os botes norte-americanos foram reconstruídos pelos carpinteiros navais locais, tornando-os mais leves e esguios, com espaço para mais um tripulante, adaptados à entrada e saída dos exíguos portos insulares criados sobre o recorte vulcânico das ilhas. A baleação estendeu-se a todas as ilhas, e prolongou-se por mais de um século com as mesmas técnicas de caça utilizadas na baleação norte-americana. Em 1954, Robert Clarke designou-a de “indústria relíquia” (Clarke 1954). E, se em 1851 a presença portuguesa na baleação internacional fora imortalizada pelo escritor norte-americano Herman Melville, no clássico da literatura Moby Dick, um século depois, a caça à baleia açoriana foi objeto de estudo e inspiração para filmes e livros de Orson Welles, Chris Marker e Mario Ruspoli, ou Antonio Tabucchi, entre outros. A visão romântica e épica da baleação foi veiculada tanto por observadores externos como pelas gentes locais.
Na realidade, a baleação insular continuava plenamente integrada na economia internacional. Os óleos de cetáceos eram exportados para os países europeus mais industrializados (Inglaterra, Alemanha, Itália e França), onde encontravam novas aplicações nas indústrias de armamento, em lubrificantes industriais, em couros e detergentes, entre outras. No final da Segunda Guerra Mundial, com a paralisação das frotas baleeiras que operavam no Antártico, a baleação nos Açores chegou a ser responsável por 40% do total das capturas mundiais de cachalote (Clarke, 1954). A economia de guerra acelerou a industrialização da atividade em terra, mas, no mar, a baleação continuou a ser uma atividade artesanal, com um confronto direto entre o homem e a baleia. Neste período, a indústria baleeira também se estendeu ao arquipélago da Madeira e foi retomada no continente português, na região de Setúbal.
A partir da década de 1960, a indústria baleeira nos Açores entrou gradualmente em crise. As mudanças eram induzidas por transformações globais externas. Por um lado, os óleos de cachalote eram substituídos pela utilização de produtos sintéticos, tendo os preços sofrido uma queda progressiva. Por outro, assistia-se a uma mudança cultural sobre a proteção da vida marinha, e a baleia tornou-se num símbolo nos discursos de conservacionismo ecológico de novas organizações como a Greenpeace. A pressão regulatória internacional reduziu o comércio de produtos baleeiros, conduzindo à Moratória da Comissão Baleeira Internacional (1982), que entrou em vigor em 1986. Antes dessa data, a indústria açoriana já entrara em decadência – não só pela falta de mercados para os seus produtos, mas também pela dificuldade de recrutamento e devido à concorrência da pesca do atum, mais segura e rentável.
A baleação nos Açores foi paulatinamente convertida em património, ganhando inclusive, em 1998, forma de lei (Decreto Legislativo Regional n.°13/98/A). No entanto, a narrativa patrimonial não contempla as muitas complexidades que a história da baleação encerra. Ela convoca o passado baleeiro, mas quase sempre de forma seletiva e parcial, fragmentando uma história comum aos dois arquipélagos e veiculando representações sociais de tónica regional, desligadas de contextos mais amplos, e que negligenciam histórias conectadas e globais.
Atualmente, a baleação surge como um poderoso discurso de coesão regional. Num território descontínuo e com fortes assimetrias locais, distingue-se como uma experiência histórica comum a todas as ilhas açorianas, que enaltece a coragem e a capacidade de superar as difíceis condições de vida. Recentemente, um projeto de história oral (Arquivo de Memórias da Baleação) recolheu mais de cem entrevistas a todos os baleeiros vivos, com o propósito de entender o impacto social, económico e cultural da baleação nas comunidades insulares; um outro projeto (ADBA – Arquivo Documental da Baleação Açoriana), focado no património arquivístico, dedica-se à pesquisa e inventariação de acervos documentais relativos à baleação açoriana. Ambos desafiam a política patrimonial a ser mais inclusiva.
Foram as comunidades locais que começaram por recuperar as embarcações e casas dos botes, processo continuado mais tarde pela musealização das antigas fábricas, com apoios públicos. Desde 1993, e cada vez mais, a observação de cetáceos – o whale watching – atrai, todos os anos, milhares de turistas à região. A transição da baleação para o ecoturismo está hoje consumada. Todavia, as narrativas históricas plurais sobre a baleação – tão diversas quanto as condições socioeconómicas de cada ilha e os homens que a praticaram – correm o risco de se diluir nos discursos e políticas que acentuam continuidades e glórias mais do que ruturas e insucessos.
Na longa duração, fosse pelas circunstâncias geográficas e socioeconómicas dos arquipélagos da Macaronésia, pelas conjunturas internacionais, ou ainda pelos conhecimentos técnicos transmitidos ao longo de várias gerações, constata-se que a baleação teve uma extraordinária longevidade em território português. O seu fim irreversível deu lugar, no entanto, a uma mudança de paradigma e a um novo ciclo baleeiro, que só existe devido a um passado transnacional que relaciona Portugal e os seus arquipélagos com os EUA e a Europa, e que demonstra bem as inter-relações a diferentes escalas num mundo global. - Creator
- Lorena, Carmo Daun e
- Henriques, Francisco
- Relation
- Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA)
- CIEE Lisbon
- Abstract
- ---
- Date Issued
- 31-10-2024
- References
- Bertão, David E. (2006). The Portuguese Shore Whalers of California 1854-1904. San Jose: Portuguese Heritage Publications of California.
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Dublin Core
Collection
Citation
Lorena, Carmo Daun e and Henriques, Francisco, “Baleação,” Connecting Portuguese History, accessed November 24, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/19.