Praga de gafanhotos (1898)
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- Praga de gafanhotos (1898)
- Description
- Ao longo da História, as interações entre os humanos e os não-humanos – múltiplas, mútuas e continuamente adaptativas – foram marcadas por momentos de perturbação. Descritas desde a Antiguidade Clássica, as pragas de gafanhotos são um dos protagonistas mais conhecidos de tais momentos. Recorrentes, destruidoras, e comuns a quase todas as geografias e períodos históricos, estas pragas estão na origem da própria palavra “calamidade”, a destruição do calam (em latim, caniço ou talo do trigo) que fazia pairar a ameaça da fome sobre as comunidades dependentes da colheita do cereal.
Algumas espécies de gafanhotos beneficiam de circunstâncias ecológicas particulares, associadas ao tipo de coberto vegetal e a determinadas condições climáticas, tendo ciclos reprodutivos particularmente bem-sucedidos e formando, assim, populações numerosas que se mantêm aglomeradas. Esta gregarização é um fenómeno biológico em que se verificam mudanças fisiológicas e morfológicas individuais, articuladas com a alteração de um comportamento solitário e relativamente críptico, desencadeando-se uma fase de maior notoriedade e atração de conspecíficos. Os enxames assim formados atacam vorazmente culturas em crescimento. Em seguida, encetam uma deslocação a partir do seu ponto de origem, num trajeto que pode ter centenas ou milhares de quilómetros, com paragens regulares, e repetidos prejuízos, cruzando, frequentemente, as fronteiras políticas de diversos países.
A história das pragas de gafanhotos enfrenta dois desafios principais: (1) o de abraçar as causas dos eventos, os impactos geograficamente distribuídos e as respostas societais que lhes foram inerentes de forma transnacional; e (2) o reconhecimento do papel dos não-humanos como sujeitos da História. Para a fome generalizada que afetou a Síria e a Palestina nos anos da 1ª Guerra Mundial, por exemplo, terá contribuído, alegadamente, um episódio de gregarização e migração de gafanhotos: no ano que se seguiu a uma invasão de gafanhotos do deserto (Schistocerca gregaria), morreram 100 a 200 mil pessoas de desnutrição ou doenças associadas. Frutas, legumes, forragens e uma pequena, mas não insignificante, quantidade de cereais foram devorados pelos insetos (Foster 2015).
Em Portugal também se testemunharam fenómenos similares. Em 1898, por exemplo, grandes enxames de gafanhotos entraram em território algarvio. Para os agricultores locais não era estranha a chegada esporádica de nuvens de gafanhotos do deserto, as quais, neste território, causavam poucos ou nenhuns danos. Julgaram-nos idênticos e, por isso, ignoraram o fenómeno. Todavia, este era protagonizado por uma outra espécie, o gafanhoto marroquino (Dociostaurus maroccanus) (Gomes et al. 2019).
Na primavera do ano seguinte, os ovos começaram a eclodir e uma nova geração de gafanhotos passou a alimentar-se das culturas e a voar para outros locais. Foi demasiado tarde para evitar a invasão prolongada, que duraria até 1905. Só no distrito de Faro, em 1899, foram apanhadas mil toneladas de gafanhotos. A expansão da praga alcançou onze distritos, o maior número registado até 1947. Os gafanhotos foram descritos como “assustadores”, “legiões inumeráveis e extraordinárias”, “devastando localidades onde pousam, com mais prejuízo, do que o fogo”; “uma verdadeira calamidade para a agricultura e para o tesouro” (Anónimo 1901).
Publicadas na mesma época, as leis protecionistas que pretendiam aumentar a produção de cereais panificáveis terão contribuído para agravar o alarme e obrigar à tomada de medidas pela administração central para mitigar os efeitos dos gafanhotos. Em 1899, estabeleceram-se os “Serviços Contra as Epiphytias”. O Decreto de 23 de dezembro, que os instituiu, foi o primeiro regulamento geral contra as pragas das plantas em Portugal. Apesar de se tratar de um conjunto de disposições genéricas, que podiam ser aplicadas a qualquer praga, assemelhava-se muito à Ley de Extinción de la Langosta, publicada em Espanha vinte anos antes (Buj 1996). Em 1902 – ainda o surto de gafanhotos iniciado em 1898 não tinha sido extinto ¬ –, foi publicado o Regulamento dos Serviços de Extinção dos Acrídios, criando-se um serviço exclusivamente dedicado aos gafanhotos.
Os regulamentos para controlar os surtos destes insetos sugerem um modus operandi semelhante em Portugal e em Espanha, revelando uma história transnacional que inclui os dois países ibéricos. Ambos defendiam a destruição dos ovos dos gafanhotos, lavrando os terrenos onde estes tinham sido postos, e a apanha dos animais à mão ou com redes ou armadilhas, destruindo-os posteriormente. No entanto, os relatórios das autoridades portuguesas, bem como as descrições feitas nos jornais da época – tal como O Bejense, O Comércio da Guarda ou O Distrito de Faro, entre outros – das ações levadas a cabo para controlar as populações de acrídios, não reconheciam essas semelhanças, e exigiam articulação, colaboração ou cooperação entre os governos para pôr em marcha um programa comum de combate aos surtos. A luta contra os gafanhotos deveria ser uma tarefa transnacional, baseada numa ação conjunta, coerente e coordenada ao nível de métodos e esforços.
Ainda assim, um ofício atesta uma pontual cooperação ibérica. Em 1900, Portugal tinha recebido uma amostra de um fungo (Empusa acridii), do Instituto de Grahamstown, da Colónia do Cabo. Era uma tentativa pioneira de usar a luta biológica para controlar o flagelo. Esperava-se que o patógeno se espalhasse na população de gafanhotos, causando-lhes a morte (Pestana 1901). A amostra foi partilhada com Espanha, com a justificação de que a maioria das invasões em território nacional provinha do país vizinho.
Pode supor-se que o momento histórico, marcado por rivalidades entre Portugal e Espanha a par com o crescimento do iberismo, possa ter criado dificuldades de colaboração entre instituições congéneres. Todavia, os gafanhotos vieram lembrar que as fronteiras políticas não separam uma unidade geográfica ou ecológica, e não eram por isso capazes de impedir a circulação dos insetos. Para a extinção dos acrídios, “não [havia] ninguém que não [visse] com bons olhos, n’esse sentido, a união ibérica” (Mastbaum 1901: 117).
- Creator
- Gomes, Inês
- Queiroz, Ana Isabel
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Abstract
- As pragas de gafanhotos devastam colheitas, causando pobreza e fome em diversas regiões. Esses episódios, recorrentes e transnacionais, desafiam fronteiras e exigem cooperação entre países, como ocorreu em Portugal e Espanha em 1898.
- Date Issued
- 7-11-2024
- References
- Anónimo (1901). “Gafanhotos”. O Manuelinho de Évora, Ano XXI, nº 1028, p. 2 (https://www.fcsh.unl.pt/pragasnosperiodicos/items/show/1478).
Buj, Antonio Buj (1996). El estado y el control de plagas agrícolas: la lucha contra la langosta en la España contemporánea. Madrid: Ministerio de Agricultura, Pesca y Alimentación.
Foster, Zachary J. (2015). “The 1915 Locust attack in Syria and Palestine and its role in the famine during the First World War”. Middle Eastern Studies 51 (3), pp. 370-94.
Gomes, Inês, Ana Isabel Queiroz & Daniel Alves (2019). “Iberians against locusts: fighting cross-border bio-invaders (1898-1947)”. Historia Agraria 78, pp. 127-159.
Mastbaum, Hugo (1901). “Combate dos gafanhotos pela Empusa Acridii”. Archivo Rural 8,
pp. 115-17.
Pestana, João Da Câmara (1901). Destruição dos gafanhotos por meio da EMPUSA ACRIDII.
Lisboa: Tip. Christovão.
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Collection
Citation
Gomes, Inês and Queiroz, Ana Isabel, “Praga de gafanhotos (1898),” Connecting Portuguese History, accessed November 21, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/20.