Centro de Estudos Africanos (CEA)
- Title
- Centro de Estudos Africanos (CEA)
- Description
- Entre os materiais que em 1953 foram apreendidos no âmbito de um inquérito instituído pela PIDE contra três membros da Casa dos Estudantes do Império – Rui Roberto Nuno Guedes da Silva, Hugo Aires Lopes David e Gualter Manuel Rodrigues Soares – há um documento datilografado que se intitula “Plano de trabalhos 1951-1952” (ANTT 1953, fls. 21-24). O plano está dividido em seis secções: I. A terra e o homem; II. Socio-economia africana; III. Pensamento negro; IV. Problemas do ultramar português e da restante África negra; V. O negro no mundo; VI. Problemas centrais para o progresso do mundo negro. Estas, por sua vez, estão organizadas em diversas subcategorias. Da primeira folha consta uma data manuscrita (11-10-51) e o nome ‘Tenreiro’ junto à primeira secção. Na segunda, o plano termina com uma nota que afirma: “Este plano deve ser completo por recensões bibliográficas bem como pela organização de bibliografias dedicadas aos assuntos que se venham a considerar principais. Cada estudo será discutido em regime de seminário e de cada um deles se fará um resumo com um desenvolvimento adequado à matéria versada.”
Embora no documento não haja propriamente uma indicação que o identifique, é possível intuir que se trata do primeiro plano de trabalho do Centro de Estudos Africanos (CEA). O plano é esquemático, mas reflete bem o espírito do Centro e o seu propósito principal: estudar África, refletir sobre uma série de temáticas relacionadas com a sua história, cultura e política, para suprir a falta de conhecimento e de discussão sobre esses temas – e a própria impossibilidade de os discutir – na esfera pública portuguesa da época.
O CEA foi criado em Lisboa em 1951, ano significativo na história do colonialismo português tardio, quando, frente às crescentes pressões da comunidade internacional para a autodeterminação dos povos, se assistiu a uma reforma constitucional que levou à revogação do Acto Colonial de 1930 e à consequente transformação do império português numa nação pluricontinental, e das suas colónias em províncias ultramarinas. Como afirma a historiadora Cláudia Castelo (2013), “a tónica da política ultramarina seria, daí em diante, a assimilação”. É justamente a tomada de consciência da sua condição de colonizados assimilados que leva um grupo de estudantes e intelectuais africanos em Lisboa a interessar-se no pelo estudo de África e a empreender um percurso que, anos mais tarde, Amílcar Cabral, um dos fundadores do CEA, definirá “re-africanização dos espíritos” (Andrade 1976: 8).
Além de Cabral, o núcleo originário do Centro era constituído por Mário Pinto de Andrade, Francisco José Tenreiro, Agostinho Neto, Humberto Machado, Noémia de Sousa, Julieta e Alda do Espírito Santo e Marcelino dos Santos. Porém, muitos outros tomaram parte nas sessões e atividades promovidas pelo CEA, incluindo Vasco Cabral, Tomás de Medeiros, Joaquim Pinto de Andrade – irmão mais velho de Mário – e António Domingues (Medeiros 2015: 38). Oriundos da pequena burguesia negra e mestiça das colónias, eram dos poucos africanos que tinham conseguido deslocar-se até à metrópole para ter acesso ao ensino superior. O convívio regular e duradouro que estabeleceram após chegar ao coração do império – e as discussões e trocas que daí surgiram – foi fundamental para desenvolverem uma perceção da sua identidade e da sua diferença em relação à cultura portuguesa que lhes era imposta. Cedo se deram conta de que, embora tivessem atingido os mais altos níveis de educação (Francisco José Tenreiro, por exemplo, era assistente na Faculdade de Geografia da Universidade de Lisboa), pouco sabiam sobre as suas terras, pois os assuntos relacionados com África estavam completamente ausentes dos curricula portugueses. Como afirma Mário Pinto de Andrade, tinham a vivência da África, mas nunca tinham tido a possibilidade de refletir sobre a própria cultura: era, pois, necessário “dar a conhecer, conhecermo-nos a nós próprios” (Laban 1997: 71).
A tomada de consciência deste grupo de jovens – que, anos mais tarde, o mesmo Mário Pinto de Andrade (1973) definiria como “a geração de Cabral” – passou também por uma série de atividades e de encontros promovidos por associações de cunho cultural e político, como a Casa dos Estudantes do Império (CEI), o Clube Marítimo Africano e o Movimento de Unidade Democrática (MUD) Juvenil. Porém, além de serem vigiados pela polícia, estes espaços tinham certas limitações que conduziram o grupo a procurar outro lugar onde desenvolver as atividades do centro de estudos que planejavam. De facto, a CEI nem sempre era capaz de representar as aspirações dos estudantes negros e mestiços, privilegiando os interesses de portugueses brancos vindos das colónias (Tomás 2021: 38), enquanto os militantes dos movimentos políticos da oposição ainda tinham dificuldade em entender a especificidade da questão colonial, considerando-a subordinada ao derrube do regime fascista.
Depois de uma tentativa fracassada de tomar a direção da Casa de África – uma associação ligada aos velhos representantes das elites africanas residentes em Portugal, que os mais novos consideravam conservadora, quando não reacionária (Andringa 2009) – a escolha recaiu sobre a casa da família santomense Espírito Santo, situada no número 37 da rua Actor Vale, que dispunha de um grande salão onde acolher todos os participantes. As sessões do CEA aconteciam aos domingos, para desviar eventuais suspeitas da polícia e dar a impressão de que o grupo estivesse reunido para passar junto o dia festivo. Além de ser uma estratégia de precaução, o aspeto familiar e informal das sessões acabaria por contribuir para fortalecer os laços de amizade e de camaradagem entre os participantes.
Como assinalado na nota final do plano de trabalho mencionado antes, as sessões do CEA eram organizadas em regime de seminário: cada participante preparava uma relação sobre um tema e apresentava-a à assembleia, que depois discutia abertamente. Além dos que apareciam de forma regular nas sessões em casa da família Espírito Santo, havia também os que participavam à distância: é o caso de Viriato da Cruz, poeta angolano e futuro fundador e ideólogo do MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola). Viriato, que na época se encontrava em Luanda, enviou uma relação sobre “Os conceitos de África Branca e África Negra” a Mário Pinto de Andrade, com quem mantinha correspondência regular (Laban 1997: 75). Foi também graças a estas colaborações com quem vivia diariamente a realidade das colónias que o CEA, nas palavras de Mário de Andrade (s/d), se tornou num espaço de “discussão das nossas raízes, de apreensão dos problemas africanos”, além de constituir um importante centro de circulação de livros, muitos dos quais proibidos pelo regime salazarista ou de difícil localização e acesso.
Das sessões do CEA nasceram alguns projetos que pretendiam sair do salão da rua Actor Vale e atingir um público mais amplo. Em 1953, por exemplo, um pequeno grupo de membros do Centro enviou uma contribuição coletiva para um número especial da famosa revista francesa Présence Africaine dedicado aos estudantes negros. Aproveitando a correspondência que Mário de Andrade tinha estabelecido com o diretor dessa revista, o senegalês Alioune Diop, o grupo conseguiu publicar, de forma anónima, um pequeno dossiê intitulado “Situation des étudiants noirs dans le monde”, que discutia temas que lhes eram particularmente caros, como o acesso ao ensino nas colónias e as dificuldades que enfrentavam os estudantes negros da África portuguesa.
Ainda em 1953, no âmbito das atividades do CEA (Pereira 2017: 201), foi publicado o Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, editado por Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro, e que contava com poemas escritos por diversos membros e amigos do CEA. Como Mário Pinto de Andrade (1953) escreve no prefácio, numa tentativa de “frisar a importância daqueles que não obstante a sua formação sobre os meridianos do ocidente, têm realizado esforços no sentido de reatar as tradições perdidas, reencontrar-se no passado africano e representar o conjunto da massa negra”, o Caderno pretendia colocar esses jovens poetas africanos – negros, mestiços e até brancos, como António Jacinto – numa tradição panafricanista e humanista que se inspirava na negritude de Léopold Senghor e de Aimé Césaire, assim como na leitura de poetas da América do Norte, de Cuba e das Antilhas. O CEA visava também a edição de uma revista onde pudessem ser divulgados os estudos realizados pelos seus membros, assim como a sua produção literária, e tinha em preparação a publicação de um fabulário africano, provisoriamente intitulado O homem e o cágado, cujos esboços podem ser hoje encontrados no arquivo pessoal de Mário Pinto de Andrade. Estes projetos, porém, não tiveram tempo de vir à luz.
Depois dos acontecimentos de Batepá, em 1953, os membros do CEA tiveram de interromper as reuniões na rua Actor Vale, pois a implicação da família Espírito Santo na denúncia do massacre de trabalhadores africanos em São Tomé e Príncipe tinha atraído as atenções da polícia. Segundo um relato de Mário Pinto de Andrade (Laban 1997: 81), a última sessão do CEA teve lugar no dia 11 de Abril de 1954, e nela foi feito um balanço dos objetivos que o Centro tinha conseguido atingir nos breves, porém intensos, anos da sua existência.
Com o fecho do CEA, ficou em muitos dos seus membros a vontade de manter os seus princípios, alargando contudo a sua esfera de ação e dando-lhe uma dimensão mais claramente política. No final dos anos 1950, muitos dos que tinham participado em reuniões do CEA reencontraram-se no exílio em Paris, e a partir daí lançaram as bases para a constituição de movimentos políticos pela conquista da independência nas colónias da África portuguesa. Estavam de novo novamente reunidos em nome dpela valorização da cultura africana, mas concebiam agora a luta de libertação como expressão máxima desta cultura.
- Creator
- Scaraggi, Elisa
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Abstract
- O Centro de Estudos Africanos foi um espaço de encontro, debate e reflexão sobre a África, onde os participantes partilhavam leituras e conhecimentos para se reapropriarem da sua história e cultura, num processo de "reafricanização dos espíritos". Foi fundado clandestinamente em Lisboa em 1951 por um grupo de estudantes provenientes de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, muitos dos quais se tornariam líderes dos futuros movimentos de libertação nacional. O Centro funcionou em regime de seminário até 1953, ano em que teve de encerrar as suas atividades.
- Date Issued
- 7-11-2024
- References
- Andrade, Mário Pinto de (1953). “Apresentação da poesia negra”. Poesia Negra de Expressão Portuguesa. Disponível em Fundação Mário Soares / Arquivo Mário Pinto de Andrade, 04354.006.002.
Andrade, Mário Pinto de (1973). A Geração de Cabral. Instituto Amizade - P.A.I.G.C. Disponível em Fundação Mário Soares / Arquivo Mário Pinto de Andrade, 10192.001.008.
Andrade, Mário Pinto de (1976). “Amílcar Cabral e a Reafricanização dos Espíritos”. Nô Pintcha - Órgão do Comissariado de Informação e Cultura. Bissau, 12 de setembro, pp. 8-9. Disponível em Fundação Mário Soares / Arquivo Mário Pinto de Andrade, 04336.003.007.
Andrade, Mário Pinto de (s/d). “Costa Andrade – Entrevista”. Disponível em Fundação Mário Soares / Arquivo Mário Pinto de Andrade, 04312.002.005.
Andringa, Diana (2009). “Da ‘lumpen-aristocracia’ à luta pela independência (1/5)”. Caminhos da Memória [blog]. 3 de setembro. Disponível em caminhosdamemoria.wordpress.com/2009/09/03/da-%c2%ablumpen-aristocracia%c2%bb-a-luta-pela-independencia-25/. [Acesso em 1/10/2023]
ANTT, Arquivo Nacional da Torre do Tombo. PT/TT, AC, PIDE/DGS, SC, PC, 157/53, NT 5092, fls. 23-24
Castelo, Cláudia (2013). “O luso-tropicalismo e o colonialismo português tardio”. Buala [blog]. 5 de março. Disponível em https://www.buala.org/pt/a-ler/o-luso-tropicalismo-e-o-colonialismo-portugues-tardio. [Accesso em 1/10/2023]
Des Étudiants D’Afrique Portugaise (1953). “Situation Des Étudiants Noirs Dans Le Monde.” Présence Africaine, no. 14, pp. 223–40.
Laban, Michel (1997). Mário Pinto Andrade: uma entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa.
Medeiros, Tomás (2015). “Prolegómenos a uma História (verdadeira) da Casa dos Estudantes do Império” in Maria do Rosário Rosinha e Aida Freudenthal (orgs.), Mensagem: cinquentenário da fundação da Casa dos Estudantes do Império, 1944-1994, Lisboa: União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA), 2ª ed., pp. 33–42.
Pereira, Mário (2017). “Mário Pinto de Andrade and the Orders of Discourse: An Introduction”. Portuguese Literary & Cultural Studies 30/31, pp. 199–244.
Tomás, António (2021). “The Years in Lisbon”. Amílcar Cabral: The Life of a Reluctant Nationalist. Oxford: Oxford University Press. pp. 33–52.
Dublin Core
Collection
Citation
Scaraggi, Elisa, “Centro de Estudos Africanos (CEA),” Connecting Portuguese History, accessed November 21, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/22.