Indesejáveis
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- Indesejáveis
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- Embora já usado internacionalmente em momentos anteriores, o conceito de “indesejável” foi consolidado no período entreguerras, em virtude da intensa circulação transnacional de pessoas a que se assistiu a partir dos inícios do século XX. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) incrementou este movimento e, cada vez mais, os Estados passaram a ser confrontados com a presença de estrangeiros dentro dos seus territórios. Por um variado conjunto de razões, mormente políticas e sociais, a presença de muitos destes estrangeiros deixava de ser considerada positiva e estes tornavam-se indesejáveis, relacionando-se esta categorização com condições que poderiam pôr em causa a ordem, a segurança e a estabilidade. Sob esta definição eram colocados os estrangeiros que, aos olhos dos governos, fossem contrários à ordem política, económica, moral e social vigente: entre estes, contavam-se os comunistas e os anarquistas, apologistas da revolução social, mas também, no âmbito criminal, vadios, mendigos, gatunos e ladrões, assim como o grupo formado por criminosos internacionais, ou seja, estrangeiros que desenvolviam atividades ilícitas num circuito que contemplava ligações transnacionais, em particular as associadas ao tráfico de mulheres para a prostituição (Menezes 1996: 91).
A consolidação, no entreguerras, do conceito de indesejável explica-se também por, ao longo desse período, se ter assistido a uma intensificação do debate a respeito do crime internacional, face ao incremento das ameaças políticas (associadas ao comunismo e ao anarquismo) e ao desenvolvimento de novas práticas de delito comum que comportavam uma dimensão transnacional. Em resposta, as polícias dos vários países sentiram necessidade de internacionalizar o seu diálogo e de colaborar de forma mais próxima e constante (Knepper 2011). Assim, pelos mais variados motivos, a presença de estrangeiros passou a ser frequentemente negada pelos governos. As convulsões bélicas e políticas que marcaram este período – como a Revolução Russa (1917), a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Guerra Civil de Espanha (1936-1939), a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ou a emergência de diversos regimes autoritários – induziram à deslocação massiva de pessoas e, juntamente com a crise económica de 1929, levaram os Estados a tomar uma atitude mais restritiva à entrada de estrangeiros nos seus territórios.
Assim, os Estados precisaram de definir que estrangeiros deveriam ser enquadrados na categoria de indesejáveis. Em Espanha, eram considerados indesejáveis aqueles cuja presença, por ser passível de ter um efeito negativo na tranquilidade pública, era percecionada como perigosa, ao passo que no Brasil tal categoria incluía todos os estrangeiros que, por qualquer razão, não se enquadrassem no modelo social imposto pela elite brasileira (Aizpuru 2010: 602). França, em 1937 (no contexto da Guerra Civil de Espanha), delimitou a presença de estrangeiros tendo por base critérios económicos, sociais e políticos. Entre os indesejáveis económicos contavam-se os estrangeiros que não tivessem contrato de trabalho válido no país; os indesejáveis sociais eram identificados com práticas como a prostituição e a delinquência; e os indesejáveis políticos eram os estrangeiros que se opunham à situação vigente (Pérez Rodríguez 2022: 49-50).
Portugal não ficou à margem desta dinâmica e também restringiu a entrada daqueles que, no entender do governo português, constituíam uma ameaça política ou social e eram considerados perigosos. Do ponto de vista social, essa perigosidade estava relacionada com a carência de meios de subsistência ou de domicílio fixo (como mendigos e vagabundos), ao passo que a perigosidade política se identificava com a prática de atividades que pudessem perturbar a ordem pública e a segurança do Estado (Aizpuru 2010: 602). Assim, o governo português categorizava como indesejáveis os estrangeiros que careciam da documentação legal exigida para entrar e permanecer no país, os que manifestavam ideias e políticas contrárias à “situação”, os que eram acusados da prática de diversos crimes, e os que não apresentavam meios de subsistência. No período entreguerras, destacou-se o caso dos refugiados, os quais eram maioritariamente vistos como indesejáveis, percecionados como criminosos e “portador[es] dos germes da revolução” (Chalante 2011: 62), pelo que a sua vigilância e o seu controlo se revestiam de prioridade para as autoridades portuguesas, empenhadas em impedir que essa presença influenciasse negativamente a sociedade portuguesa.
A secção internacional da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), criada em 1933, era a principal responsável pela vigilância de estrangeiros no país. Como tal, cabia-lhe controlar a presença de indesejáveis, incluindo opositores políticos, criminosos suspeitos ou acusados de diversos tipos de crime, e refugiados, sobretudo aqueles perseguidos pelo nazismo e pelo franquismo. A PVDE não estabelecia uma distinção clara entre o opositor político e o criminoso comum, e atribuía frequentemente a prática de diversos crimes aos estrangeiros indesejáveis, colocando numa mesma categoria o comunista, o anarquista, o judeu, o refugiado, o traficante e o falsificador. No contexto das perseguições nazis, que levaram a uma maior afluência de estrangeiros às fronteiras portuguesas, a polícia política procedia recorrentemente a uma associação entre judeu e comunista, identificando tais pessoas como “moral e politicamente indesejáveis”, ao mesmo tempo que lhes atribuía a prática de crimes de caráter transnacional, como o tráfico “brancas” e de estupefacientes (Gonçalves 2023: 241). Desta forma, em nome da ordem e da segurança do país, encontrava-se legitimada a repressão exercida sobre os indesejáveis.
- Creator
- Faria, Fábio
- Relation
- CIES-Iscte - Centro de Investigação e Estudos de Sociologia
- Abstract
- Esta entrada aborda a consolidação do conceito de “indesejável” no período entreguerras e a forma como Portugal se inseriu nesta lógica, particularmente em voga na Europa, classificando dessa forma quem considerava suspeito e representativo de uma ameaça política e social.
- Date Issued
- 7-11-2024
- References
- Aizpuru, Mikel (2010). “Retornos forzados. La expulsión de extranjeros indeseables en la España contemporánea, 1919-1935”. Historia Contemporánea 39, pp. 591-625.
Chalante, Susana (2011). “O discurso do Estado salazarista perante o “indesejável” (1933-1939)”. Análise Social 198, pp. 41-63.
Gonçalves, Gonçalo Rocha (2023). Fardados de Azul. Polícia e cultura policial em Portugal, 1860-1939. Lisboa: Tinta-da-China.
Knepper, Paul (2011). International crime in the 20th century. The League of Nations Era, 1919-1939. London: Palgrave Macmillan.
Menezes, Lená Medeiros de (1996). Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na capital federal (1890-1930). Rio da Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Pérez Rodríguez, Jonay (2022). Los indeseables españoles. La gestión de los refugiados en Francia (1936-1945). Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales.
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Collection
Citation
Faria, Fábio, “Indesejáveis,” Connecting Portuguese History, accessed November 21, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/23.