Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)
- Title
- Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)
- Description
- Criada em 1950, a Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA) dá expressão institucional a iniciativas de colaboração bilateral empreendidas após a II Guerra Mundial entre o Reino Unido e a França, no âmbito da medicina tropical e da saúde pública em África, entretanto alargadas à Bélgica, primeiro, e depois a Portugal, à União da África do Sul e à Rodésia do Sul, passando igualmente a contemplar outros domínios de intervenção (ver Gruhn 1971; Castelo, 2022). O convénio foi precedido pela criação, em 1949, do Conselho Científico para a África ao Sul do Saara (CSA), que reunia cientistas oriundos dos países envolvidos, enquanto representantes das respectivas disciplinas, e que viria a tornar-se no órgão consultivo da CCTA (ver Matasci, 2020). No papel, a Comissão visava coordenar actividades técnicas até então conduzidas a nível nacional, com o objectivo de melhorar as condições de vida e promover o desenvolvimento do continente africano. A sua criação deve, pois, ser entendida no quadro da imposição da agenda desenvolvimentista do pós-guerra, mas também no âmbito da tentativa de relegitimação do domínio colonial em África face à vaga descolonizadora e ao crescente anticolonialismo. De forma mais específica, a CCTA afirmou-se ainda como meio de impedir, ou pelo menos de controlar, o acesso das Nações Unidas e das suas agências especializadas aos territórios em causa, ainda que, a este respeito, a atitude dos países envolvidos tenha variado entre eles, evoluído ao longo do tempo ou suscitado divergências no interior das respectivas burocracias (ver Kent 1992; Gruhn 1971; Castelo & Ágoas 2021).
Em termos organizativos, a coordenação política da CCTA assentaria em sessões intergovernamentais ocorridas pelo menos uma vez por ano nas diversas capitais nacionais, e seria assegurada por um secretariado permanente, inicialmente liderado por Paul-Marc Henry, do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês, que, a partir de 1955, passaria a dirigir o secretariado conjunto da CCTA e do CSA, com uma sede em Londres e outra em Bukavu (na actual República Democrática do Congo). Depois da criação dos primeiros gabinetes consagrados à mosca tsé-tsé e à tripanossomíase, aos solos e à economia rural, e às epizootias, instituídos na sequência de reuniões realizadas antes ainda da formação da CCTA, a sua estrutura passaria a contemplar diversos organismos análogos relativos ao habitat, à geologia, ao trabalho, à pedologia, ao bem-estar rural, à estatística ou às ciências humanas, entre outras matérias, para além de contar com correspondentes ou redes de correspondentes dedicados à climatologia, à nutrição, à educação ou a informações económicas, para referir apenas alguns temas (Castelo 2022: 39). A actividade da CCTA passaria em larga medida pela organização de “conferências inter-africanas” sobre estes e outros assuntos, sob recomendação da CSA (nalguns casos, em colaboração com organismos internacionais), e ainda pela formulação de recomendações a serem implementadas pelos países-membros. A isto somar-se-ia uma profusa actividade editorial, por via do boletim Science-Afrique e de diversas outras publicações, dando conta dos trabalhos das conferências, dos recursos científicos disponíveis ou de projectos conjuntos em curso, entre os quais se podem destacar o atlas de climatologia, o estudo das migrações na África Ocidental e o estudo comparativo dos sistemas de contabilidade nacional (idem: 40).
Independentemente das consequências práticas destas iniciativas, a acção da CCTA parece ter sido determinante para o incremento da investigação em África e para a afirmação e crescimento de várias especialidades científicas nos países envolvidos. No caso português, o facto tem tradução ao nível das ciências naturais, designadamente em áreas relacionadas com a agricultura, mas é especialmente saliente no âmbito das ciências humanas, área em que o ímpeto resultante da anterior criação da Junta de Investigações Coloniais (em 1936), e da sua reorganização (em 1945), pouco se fizera sentir (Castelo & Ágoas 2021; Castelo 2022). Em meados da década de 1950, o lançamento, na metrópole, de linhas de investigação consagradas ao bem-estar rural e à urbanização, produtividade e migrações interterritoriais nos territórios africanos, entre outras matérias, no âmbito do recém-criado Centro de Estudos Políticos e Sociais (CEPS) da Junta de Investigações do Ultramar, bem como a reforma progressiva do ensino superior colonial no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (ISEU), e, em particular, a introdução de cursos de sociologia e de antropologia cultural, surgem na sequência de recomendações emanadas da conferência inter-africana de ciências humanas organizada pela CCTA em Bukavu em 1955. O mesmo se pode dizer da criação da Missão de Estudos de Geografia Física e Humana do Ultramar Português (1960) e, a nível local, do estabelecimento dos Institutos de Investigação Científica de Angola e de Moçambique (1955), que incluíam, também eles, secções dedicadas às ciências sociais.
Semelhantes medidas dão nota do empenho da ditadura portuguesa relativamente a esta organização de cooperação científica inter-imperial, o qual pode ser ainda aferido pelas propostas feitas por Portugal à CCTA no sentido de criar no seu seio gabinetes inter-africanos de saúde e de estatística, e ainda um instituto de ciências sociais – iniciativas inviabilizadas por acção do Reino Unido, que procurava evitar hostilizar as Nações Unidas com a criação de organismos sobrepostos aos das respetivas agências (Castelo & Ágoas 2021: 74). De forma paradoxal, é pois possível afirmar que o compromisso português com a CCTA não só não invalida como confirma os desígnios colonialistas e obscurantistas deste investimento político na ciência e na técnica, destinado, antes de mais, a controlar a produção e a circulação de informação sobre os territórios do império. Por seu turno, o motivo aparente para a oficialização, em Janeiro de 1954, da CCTA enquanto organismo intergovernamental – iniciativas científico-sociais em África da parte da UNESCO e de fundações filantrópicas norte-americanas – comprova simultaneamente que tais desígnios não eram à época exclusivos de uma ditadura, sendo extensíveis aos restantes países membros, e que cabia agora às ciências sociais a primazia no suporte técnico e na legitimação simbólica da acção política, particularmente em meio colonial (idem: 73). Nas palavras de um dos delegados portugueses à conferência de Bukavu (Adriano Moreira, que mais tarde seria não apenas director do CEPS e do ISEU, mas também Ministro do Ultramar), proferidas por ocasião da reunião da Comissão Interministerial da CCTA que apreciou os resultados daquela conferência: “Parece que se pretende aferir a idoneidade da acção colonial já não pela ocupação do território nem pela ocupação científica do ponto de vista das ciências da natureza, mas sim em face da ocupação científica do ponto de vista das ciências humanas” (Castelo & Ágoas 2021: 80).
Com a vaga de independências da segunda metade da década de 1950, a CCTA passaria a incorporar as novas nações africanas (Gana, Libéria, Guiné e Camarões, entre 1956 e 1960, e diversas outras depois disso), perdendo o seu estatuto de “clube colonial”, sendo por fim integrada na Organização de Unidade Africana (OUA) em 1965, já depois de Portugal e África do Sul terem sido afastados (1962) e de os restantes países europeus perderem o direito de voto (Gruhn 1971: 463-464). Tal desfecho traduz de si mesmo as implicações pós-coloniais da CCTA, que têm vindo a ser investigadas em domínios como a saúde, a educação e a nutrição (cf. Castelo 2022, nota 18). Por estudar, todavia, em toda a sua extensão, permanece o peso destas dinâmicas transimperiais no conjunto de redes intercoloniais, particulares e estatais, que se sabe terem moldado a ciência contemporânea, bem como a importância específica da CCTA na elucidação da matriz colonial das ciências sociais à época da sua afirmação global (Steinmetz 2023) – tarefas já encetadas para o caso português (Castelo & Ágoas 2021).
Financiamento
A pesquisa que serve de base a este texto foi conduzida ao abrigo de um contrato de investigação financiado pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I. P ao abrigo do Concurso Estímulo ao Emprego Científico (CEECIND/01684/2017).
- Creator
- Ágoas, Frederico
- Relation
- CICS.NOVA
- Abstract
- Em 1950, Portugal aderiu à Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA). No espaço português, e ao longo de cerca de uma década, a CCTA deu um novo impulso à investigação em várias especialidades científicas, em particular nas ciências sociais. No contexto desenvolvimentista do pós-guerra, a participação de Portugal na CCTA contribuiu para relegitimar o seu domínio colonial em África. No entanto, a história destas relações trans-imperiais tem um interesse que ultrapassa as dinâmicas particulares de cada estado: ela dá conta das raízes coloniais de uma parte importante das ciências sociais contemporâneas.
- Date Issued
- 7-11-2024
- References
- Castelo, Cláudia (2022). “Recherche et développement dans les colonies portugaises d’Afrique: l’impulsion de la coopération scientifique interimpériale (1950-1962)”. Revue d’Histoire Contemporaine de l’Afrique 3, pp. 35-48.
Castelo, Cláudia & Frederico Ágoas (2021). “Inter-African cooperation in the social sciences in the era of decolonization: A case of science diplomacy”. Centaurus 63(1), pp. 67-83.
Gruhn, Isabill (1971). “The Commission for Technical Co-operation in Africa, 1950-65”. The Journal of Modern African Studies 9(3), pp. 459-469.
Kent, John (1992). “The Creation and Development of the CCTA, 1950–1956”, in J. Kent, The Internationalization of Colonialism: Britain, France, and Black Africa 1939-1956. Oxford: Oxford University Press, pp. 263-286.
Matasci, Damiano (2020). “Internationalising Colonial Knowledge. Edgar Barton Worthington and the Scientific Council for Africa, 1949-1956”. The Journal of Imperial and Commonwealth History 48(5), pp. 892-913.
Steinmetz, George (2023). The Colonial Origins of Modern Social Thought: French Sociology and the Overseas Empire. Princeton: Princeton University Press.
Dublin Core
Collection
Citation
Ágoas, Frederico, “Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA),” Connecting Portuguese History, accessed November 24, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/24.