D. Maria Constança da Câmara, sétima marquesa de Fronteira
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- D. Maria Constança da Câmara, sétima marquesa de Fronteira
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- Filha de D. Luís Gonçalves da Câmara Coutinho Pereira de Sande e de D. Maria de Noronha, D. Maria Constança nasceu a 13 de Julho de 1801, de acordo com o assento de baptismo. A família paterna, não titular, descendia dos senhores das Ilhas Desertas, Regalados e da Casa da Taipa. A família materna, pelo contrário, pertencia à aristocracia de corte, descendendo dos condes dos Arcos e dos marqueses de Marialva. Sétima dos nove filhos do casal, pouco se sabe acerca da sua instrução, a não ser que recebeu educação literária, religiosa e musical (em canto, piano e harpa). Teve provavelmente uma educação doméstica, como era habitual nas elites aristocráticas femininas do seu tempo, com recurso a diversos mestres.
A casa ascendeu à titulação na sua geração. Os seus irmãos tornaram-se sucessivamente o 1º, 2º e 3º condes da Taipa. A sua irmã mais velha entrou no grupo da aristocracia ao casar com o 6º marquês de Angeja, o que sucedeu também a D. Maria Constança por casamento com D. José Trasimundo Mascarenhas Barreto, 7º marquês de Fronteira, 8º conde da Torre e de Coculim, 10º conde de Assumar e representante do título de marquês de Alorna. A frequência por D. José Trasimundo das partidas e saraus típicos da aristocracia europeia nos séculos XVIII e XIX, realizados no palácio dos pais de D. Maria Constança, favoreceu o consórcio, ocorrido a 14 de Fevereiro de 1821. Deste enlace nasceria, no ano seguinte, D. Maria Mascarenhas, a única filha do casal.
Na sequência do golpe absolutista de Abril de 1824, o alinhamento político do marquês pelas ideias liberais levou-o à prisão. Depois de ser libertado, ele e a sua mulher abandonaram o Reino, percorrendo diversos países da Europa, em particular França, Bélgica, Holanda e a península itálica. Neste contexto, assistiram em Paris à sagração de Carlos X, em 1825, e às cerimónias do Jubileu Santo, em Roma, no mesmo ano. Nesta última cidade, D. Maria Constança desempenharia oficiosamente, em diversas cerimónias, as funções de embaixatriz, a pedido do embaixador português, por este ser solteiro.
O diário inicia-se em 1826, na viagem de regresso a Portugal. Ao contrário de outros países europeus, que desde a Idade Moderna cultivam uma tradição neste género literário, a produção diarística em Portugal é considerada incipiente, sendo escassos os diários anteriores ao século XX conhecidos. Tal pode dever-se à pouca atenção dada aos arquivos de família, muitos dos quais permanecem até hoje privados e desconhecidos do público. Esta realidade é ainda mais significativa se vista por uma perspectiva de género: o número conhecido de mulheres diaristas é baixo (Urbano 2023). Ao desconhecimento das fontes, junta-se o menor grau de alfabetização e de acesso à cultura letrada por parte das mulheres, mas também um conjunto significativo de questões que ao longo dos séculos invisibilizaram a escrita de autoria feminina.
Nessa viagem de regresso, o casal passou por Inglaterra, visitando Londres, Oxford, Hampton Court, Newark e Portsmouth, e contactando com diversos membros da aristocracia, portugueses e estrangeiros, nomeadamente com os marqueses de Salisbury, com o conde de Flavigny, com os barões de Heytesbury e com o futuro barão Francis Godolphin Osborne.
Entre Novembro de 1826 e o início de 1828, D. Maria Constança esteve em Lisboa. Neste período, as entradas do diário são escassas, vindo a tornar-se regulares a partir do final de Julho de 1829, na estância balnear de Dieppe, já durante o segundo exílio do casal, provocado pela ascensão de D. Miguel ao trono português, período em que mais de 13 mil liberais deixaram o país (Isabella 2023: 217). Esta emigração insere-se em movimentos migratórios similares ocorridos por toda a Europa, decorrentes das revoluções e da instabilidade política vivida em países como França, Itália, Espanha e Grécia, mobilizando elites aristocráticas, terratenentes e militares. Neste período, os marqueses de Fronteira conviveram com outros aristocratas, tais como as duquesas de Angoulême, Berry, Noialles e Poix, o conde Demidoff, os viscondes de Castelbajac e diversos membros da família Bombelles. Em Agosto, o casal regressou a Paris, onde encontraria outros aristocratas portugueses emigrados, travando também conhecimento com vários titulares estrangeiros.
Em Junho de 1830, iniciaram um périplo até à região de Como, através de Pouilly-sur-Loire, Vichy, Lyon, Nantua, Genebra, Lauzen, Aber, Sion, Briga, Domo D’assola, Baveno e Milão; nessa ocasião, conviveram com a marquesa de Vence, o conde de Borromeu, a viscondessa da Pedra Branca e o general espanhol Miguel de Álava y Esquível. A temporada em Como, em Julho e Agosto de 1830, foi socialmente menos intensa, mas ainda assim pô-los em contacto com os condes de Tanzi e com a cantora lírica Giuditta Pasta. Posteriormente, o casal instalou-se em Florença, após um périplo por Milão, Génova, Rapallo, Sestri, Borghetto di Vara, Sarzana, Luca e Livorno, estabelecendo redes de sociabilidade com membros da família Strogonoff, com o diplomata Carlo Andrea Pozzo di Borgo e com os príncipes Dolgarukov. Em Florença, foram apresentados aos grão-duques da Toscana e ao dei da Argélia, exilado nesta corte, bem como a diversos aristocratas e diplomatas europeus.
No final de Maio de 1831, os marqueses deixaram Florença, passando por Bolonha, Modena, San Benedetto Po, Mântua, Verona, Borghetto sull’Adige, Roveredo, Trento, Inha, Colma, Vipiteno, Innsbruck e Munique, onde se demoraram alguns dias. A viagem prosseguiu para Augsburgo, Ulm e Estugarda, seguindo-se Karlsruhe e Baden-Baden. Aqui, travaram conhecimento com os príncipes de Tarante, com Lobanov-Rostovsky, com de la Tremouille, com a condessa Lage de Volude e com os barões von Mengden, reencontrando ainda outros aristocratas, como o príncipe Golitsyn ou o barão von Ende. Em meados de Agosto retomaram viagem, passando por Karlsruhe, Heidelberg, Frankfurt, Mainz, Koblenz, Colónia e Aachen.
O diário é omisso entre Setembro de 1831 e Fevereiro de 1832, data em que os marqueses já se encontravam em Paris. Aqui, recuperaram relações com aristocratas portugueses e estrangeiros, como a marquesa d’Agrain, com Jean-Guillaume Hyde de Neuville ou com Susan Euphemia Beckford. A estadia em Paris foi interrompida em Maio de 1833 para dar lugar a uma temporada de banhos em Boulogne-sur-mer, tendo o casal regressado à capital francesa em Agosto e retomado então contacto com o marquês de La Valette e com a Madame de Flahaut.
O regresso de D. Maria Constança a Portugal deu-se a partir de Boulogne-sur-mer, a 9 de Outubro, através de Dover e com paragem em Londres. O diário é reiniciado a 1 de Abril de 1834, em Lisboa, prolongando-se, com bastantes intervalos, até 1842. Neste período, a 1 de Janeiro de 1836, foi agraciada por D. Maria II com a ordem de Santa Isabel.
Embora exilados e em situação económica precária, contornada com recurso a empréstimos de banqueiros estrangeiros, os marqueses de Fronteira mantiveram um nível de vida condizente com o seu estatuto social, estabelecendo redes de sociabilidade com a aristocracia europeia e norte-africana que igualmente se deslocava, tanto por razões de exílio (como no caso já referido do dei da Argélia), quanto profissionais (como no caso do corpo diplomático) e de lazer. Este quotidiano cosmopolita, que o diário permite acompanhar, é comparável ao da aristocracia norte-europeia de finais do século XVIII e assenta na partilha da mesma esfera social, favorecida pela existência de códigos de sociabilidade comuns (Wolff 2015: 84-88), que consistiam na realização de visitas, na frequência de bailes e saraus, nos quais se jogava ou tocava e se cantavam os êxitos musicais da época. Ia-se a banhos nas estâncias termais em voga, passeava-se nos parques públicos, visitavam-se locais de interesse – fossem igrejas, palácios ou museus –, onde os grandes mestres da pintura europeia eram apreciados: artistas como Rafael, Guido Reni, Rubens, Domenico Zampieri, Anthony Van Dick ou Bartolomé Esteban Murillo.
Outro elemento significativo do estilo de vida aristocrático era a frequência do teatro, especialmente de ópera. Além de ser um espaço privilegiado de aprofundamento das redes sociais, a frequência da ópera permite-nos conhecer os consumos culturais deste grupo e o próprio gosto da marquesa de Fronteira, que referencia os principais compositores do seu tempo, incluindo alguns atualmente menos conhecidos (como Peter von Winter, Simon Mayr, ou François-Adrien Boieldieu), a par de outros que continuam a figurar no cânone operático, como Rossini, Mercadante ou Bellini. Os marqueses tiveram ocasião de assistir a atuações dos principais artistas internacionais do seu tempo, em especial de cantores líricos e de bailarinas.
De resto, a descrição dos consumos culturais da marquesa de Fronteira não se fica pelas artes de palco. D. Maria Constança alude a algumas leituras – desde o clássico Homero, aos franceses Charles-Victor Prévot, Marie des Heures (Clotilde-Marie Collin de Plancy), Alphonse Marie Louis de Prat de Lamartine e George Sand, passando pelo italiano Alessandro Manzoni, pela inglesa Ann Radcliffe e até pelo norte-americano James Fenimore Cooper. A prática da leitura incluía também a imprensa periódica nacional e estrangeira. Através dela, e da correspondência recebida dos seus familiares e amigos, a marquesa mantinha-se atualizada relativamente à situação política do seu país e dos principais acontecimentos europeus, nomeadamente as guerras de independência da Grécia e a travada entre a Rússia e o Império Otomano (1828-1829). Acompanhou também a revolução de Julho de 1830 em França e, no mesmo ano, a de Varsóvia, bem como a tentativa de revolução em Modena, perpetrada por Ciro Menotti.
Desde a conclusão do diário em 1842 até à sua morte, pouco se sabe, à excepção de ter sido directora de um dos colégios de Infância Desvalida, instituído pela duquesa de Bragança, e vogal da Sociedade Protetora dos Órfãos Desvalidos das Vítimas da Cólera Morbus, em 1856, e da Febre Amarela, em 1857. Nas memórias do seu marido, D. Maria Constança é referida apenas pontualmente. Morreu a 11 de Setembro de 1860 no seu palácio de Benfica, tendo sido sepultada na igreja do convento de S. Domingos de Benfica.
Finalmente, importa realçar que a participação da marquesa de Fronteira nas sociabilidades europeias, demonstrada pelo seu diário, sobretudo após a ascensão de D. Miguel ao trono, para além de testemunhar a partilha de códigos sociais, deverá ser entendida como uma estratégia de mobilização política internacional levada a cabo pelos emigrados portugueses liberais. O desenvolvimento de uma diplomacia informal visou a promoção de redes de solidariedade transnacional entre os partidários do constitucionalismo e a adesão à causa liberal portuguesa.
- Creator
- Urbano, Pedro
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Abstract
- D. Maria Constança da Câmara, sétima marquesa de Fronteira por casamento, foi uma aristocrata portuguesa de percurso biográfico praticamente desconhecido até à recente publicação do seu diário. Antes disso, as poucas referências existentes reportavam-se às memórias do seu marido e à biografia laudatória publicada após a sua morte. Filha, irmã e mulher de aderentes à causa liberal, tais laços familiares levaram-na a emigrar, nas décadas de 1820 e início de 1830, para diversos reinos europeus, permitindo-lhe o contacto com diferentes nações, culturas, aristocracias e artistas, o que lhe deu uma dimensão transnacional, comum a outros portugueses emigrados neste período.
- Date Issued
- 12-11-2024
- References
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Citation
Urbano, Pedro, “D. Maria Constança da Câmara, sétima marquesa de Fronteira,” Connecting Portuguese History, accessed November 21, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/37.