Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de Coimbra
- Title
- Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de Coimbra
- Description
- A 20 de Junho de 1957, o Diário de Coimbra noticiava na primeira página: “O Dr. Armando de Lacerda regressa amanhã do Brasil onde instalou o primeiro Laboratório de Fonética da América do Sul”. Refere-se esta notícia à criação do Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de São Salvador da Bahia, para a qual o foneticista português Armando de Lacerda (1902-1984), fundador e director do Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra, contou com a colaboração do seu discípulo Nelson Rossi (1927-2014). Este laboratório brasileiro, equipado com cromógrafos – inovadores instrumentos para a investigação fonética que Lacerda desenvolvia desde 1932 –, produz em 1960-1963 o primeiro atlas linguístico do Brasil, o Atlas prévio dos falares baianos, no qual se recorre à transcrição fonética de Armando de Lacerda e de Göran Hammarström (1922-2019). Esse empreendimento, no qual intervieram Nelson Rossi e alguns dos seus colaboradores, foi vital no despontar da dialectologia no Brasil, promovendo a emergência de atlas linguísticos noutros estados. Exemplificativos são o Atlas lingüístico de Sergipe, também desenvolvido pela equipa da Universidade de São Salvador da Bahia e concluído em 1973 (embora publicado somente em 1987); o Esboço de um atlas lingüístico de Minas Gerais (1977); o Atlas lingüístico da Paraíba (1984); o Atlas lingüístico do Paraná (1994); e o Atlas lingüístico de Sergipe II (2005).
Nos EUA, a influência do Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra também se repercute. O apetrechamento deste espaço laboratorial com cromógrafos, associado ao prestígio internacional de Lacerda, é fundamental para atrair para Coimbra o doutorando Francis Millet Rogers (1914-1989). Detentor de uma bolsa de estudo da Universidade de Harvard, Rogers especializa-se em 1939, sob a supervisão de Lacerda, no uso da cromografia. Depois de regressar a Harvard, onde se doutora em 1940, a carreira de Rogers culminará na criação nessa universidade da primeira cátedra de Estudos Portugueses nos EUA (cátedra “Nancy Clark Smith”, de Língua e Literatura Portuguesas). Nesse percurso, Rogers, que entendia Lacerda como seu mestre, consegue integrar os estudos de português no programa de “General Education”. Nas suas aulas, recorre aos métodos de registo da fala apreendidos no laboratório dirigido por Lacerda. Entre outras inovações, esta prática potencia o interesse pela língua portuguesa a níveis dignos de o inscrever nas suas memórias, onde refere que, a partir de 1960, com a actualização e melhoria do curso de língua portuguesa, frequentemente lhe chegavam rumores de que as duas línguas de maior prestígio para os estudantes da Universidade de Harvard eram o árabe e o português.
Na mesma época, em 1965, mas do outro lado do globo, em Melbourne, um outro discípulo de Lacerda e colaborador do Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra assume a posição de primeiro professor catedrático de Linguística na Austrália. Referimo-nos a Göran Hammarström, o foneticista sueco que já em 1955 havia criado o Departamento de Fonética da Universidade de Uppsala. À imagem do ocorrido com Francis M. Rogers e com Nelson Rossi, também na base desta carreira académica se encontra o Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra, onde Hammarström preparara o seu doutoramento, que defendera em seguida em Uppsala em 1953. A importância da colaboração com Lacerda no laboratório dirigido por este sobressai em 1957, quando Georges Straka (1910-1993), director do Instituto de Fonética da Universidade de Estrasburgo, elabora um parecer sobre as competências científicas de Hammarström, a pedido do director da Faculdade de Letras de Uppsala. Nesse documento, Straka defende que o estudo de Hammarström sobre a duração dos fonemas em sueco é de grande interesse para a linguística, excedendo largamente os resultados previamente alcançados por outros investigadores. Na sua opinião, isso resultava de Hammarström ter usado em Coimbra o “excelente método cromográfico”.
Brasil, EUA, Escandinávia e Austrália: a criação em várias universidades estrangeiras de laboratórios que se apropriam das técnicas de investigação aplicadas no Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra são alguns exemplos da influência global deste centro de investigação. Os ensinamentos obtidos em Coimbra contribuíram para desencadear uma “mentalidade dialectológica” na América do Sul, assim como para a criação de cadeiras de fonética, de cursos de português ou para o seu uso em aulas de Línguas Românicas em Harvard.
O director do Laboratório, Armando de Lacerda, desempenhou um papel fundamental na obtenção deste estatuto. Lacerda beneficiara da existência, desde 1929, da Junta de Educação Nacional, instituição que planificava e financiava a investigação científica em Portugal, seguida, a partir de 1936, do Instituto para a Alta Cultura. É como bolseiro de investigação da Junta de Educação Nacional que Lacerda se especializa em fonética experimental em Hamburgo e em Bona, em 1930-1933. Nos institutos de fonética destas universidades adquire prestígio internacional, nomeadamente pela criação, em 1932, do policromógrafo, equipamento que torna obsoleto o quimógrafo, até então o principal instrumento aplicado nos laboratórios de fonética experimental. Digna de nota é também a publicação em 1933, em co-autoria com o seu mestre Paul Menzerath (1883-1954), da obra Koartikulation, Steuerung und Lautabgrenzung, trabalho que cria o conceito-chave de coarticulação (as influências exercidas entre si pelos sons contíguos da fala), que a partir daí desempenha um papel central na teoria fonética.
Regressando a Portugal em 1933, Lacerda instala na Universidade de Coimbra, como já foi referido, o primeiro laboratório de fonética experimental do país. Considerado por diversos linguistas estrangeiros, em meados do século XX, o melhor laboratório de fonética experimental da Europa, este espaço laboratorial, como exemplificámos com alguns casos, atrairá inúmeros cientistas da Europa, da América do Norte, da América do Sul e de África. Em comum, os investigadores estrangeiros partilham a procura de especialização que lhes permita dar início a prestigiadas carreiras académicas internacionais.
Nos anos 1960 os apoios do Estado português ao laboratório dirigido por Lacerda diminuem e, a partir de 1972, com a sua jubilação, e na ausência de um sucessor na direcção do instituto, inicia-se a ocupação para novos fins das dez salas que o Laboratório até então ocupava na Faculdade de Letras de Coimbra. Reduzido a uma única sala, o Laboratório encerra em 1979 a sua actividade. Nesse mesmo ano, Lacerda ocupava ainda a posição de membro honorário do Conselho Permanente para a Organização de Congressos Internacionais de Ciências Fonéticas, ombreando em exclusivo com Roman Jakobson (Cambridge, EUA) e Eberhard Zwirner (Colónia, República Federal da Alemanha), distinção compaginável, no ocaso da sua vida, com a história da sua carreira académica. Se a sua escola de investigação, por intermédio dos seus discípulos, se difundiu nos mais diversos países e continentes, já no nosso país aquele que é um dos raros cientistas portugueses inscritos na história de uma disciplina científica foi remetido ao esquecimento, realidade para a qual terá concorrido o facto de a Universidade de Coimbra o ter sistematicamente considerado membro do “pessoal técnico, auxiliar e menor”.
A (in)visibilidade historiográfica do Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de Coimbra e de Armando de Lacerda assume, deste modo, um particular interesse na história da ciência mundial, ao mostrar como um espaço laboratorial na periferia da Europa chegou a assumir uma atractividade científica mais própria dos tradicionais centros científicos; ao mesmo tempo, o seu fundador e director, sendo embora um dos nomes maiores da disciplina, era oficialmente remetido à condição de “técnico invisível”. Estes são motivos que mais do que justificam a recuperação desta história, em curso pelo projecto PHONLAB (2022.06811.PTDC) “Laboratório de Fonética: Coimbra – Harvard. Repensar centros e periferias científicas no século XX”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. A recuperação historiográfica em curso conduziu a Real Academia das Ciências da Suécia a dedicar um dia ao foneticista português (Armando de Lacerda: A pioneer of Experimental Phonetics - Kungl. Vetenskapsakademien (kva.se), além de em 2022 ter levado a rede internacional focada na história da investigação em comunicação de fala a, pela primeira vez, dedicar um dos seus workshops bianuais a um cientista (LACERDA 120 – 5th International Workshop on the History of Speech Communication Research (HSCR) (wordpress.com).
- Creator
- Lopes, Quintino
- Relation
- Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território
- Abstract
- No ano de 1936, o foneticista português Armando de Lacerda (1902-1984) criou na Universidade de Coimbra o Laboratório de Fonética Experimental. Equipado com modernos cromógrafos e aplicando métodos inovadores para a análise dos sons da linguagem, este espaço chegou a ser considerado por diversos membros da comunidade internacional como o mais avançado laboratório de Fonética Experimental da Europa. O estudo científico da fala humana desenvolvido por Lacerda atraiu ao longo de décadas investigadores dos quatro cantos do mundo, transformando o seu laboratório num dos centros da ciência fonética a nível global.
- Date Issued
- 12-11-2024
- References
- Hammarström, Göran (2012). Memories of a linguist 1940-2010. Munique: Lincom Europa.
Head, Brian Franklin (2000). “Lacerda (Armando de).” In Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, vol. 17, 219-21. Lisboa, São Paulo: Editorial Verbo.
Lopes, Quintino (2023). The global periphery: Armando de Lacerda and the Coimbra Experimental Phonetics Laboratory (1936-1979). Estocolmo: Center for History of Science of the Royal Swedish Academy of Sciences.
Lopes, Quintino, Angelika Braun & Michael Ashby (orgs.) (2022). Lacerda 120. Proceedings of the Fifth International Workshop on the History of Speech Communication Research. Dresden: Technische Universität Dresden Press.
Menzerath, Paul & Armando de Lacerda (1933). Koartikulation, Steuerung und Lautabgrenzung. Berlim, Bona: Ferd. Dümmlers Verlag.
Rogers, Francis Millet. Internationalism and the Three Portugals: the Memoirs of Francis Millet Rogers. Nova Iorque: Peter Lang, 1992.
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Citation
Lopes, Quintino, “Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de Coimbra,” Connecting Portuguese History, accessed November 21, 2024, https://connectingportuguesehistory.org/omeka/items/show/38.