Instituto Bacteriológico Câmara Pestana | Instituto Bacteriológico Câmara Pestana | | |
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Description:O Instituto Bacteriológico Câmara Pestana (IBCP), fundado em Lisboa em 1892, fez parte de um movimento europeu de afirmação dos laboratórios como instituições centrais da produção científica. Na área da saúde, seguiam o modelo do Instituto Pasteur de Paris (IPP), com serviços no sector da produção de vacinas e de soros, dos cuidados de saúde e da investigação de doenças, com um papel de relevo também no ensino prático da microbiologia (Marques 2019). O modelo pasteuriano da terapêutica anti-rábica, desenvolvido em França por Louis Pasteur (1822-1895), apesar da controvérsia que gerou entre a comunidade médica internacional, depressa suplantou os limites impostos pela geografia. Em Portugal, onde os médicos acompanhavam de muito perto as novidades científicas internacionais (em especial de França e Alemanha) no domínio da microbiologia, debateu-se no final da década de 1880 a conveniência de criar um instituto segundo o modelo pasteuriano. Dirimidas as questões nacionais patentes nas agendas política e científica sobre o assunto, o Estado português, à semelhança de outros países, seguiu o exemplo de internacionalização científica, optando por criar o Instituto Bacteriológico de Lisboa (IBL) (Dec. de 29.12.1892). Assim designado inicialmente, o IBL surgiu numa conjuntura de crise financeira nacional (1891-1892), o que não o impediu de consolidar e expandir o modelo pasteuriano, sobre o qual assentou boa parte da sua atividade científica, e de se transformar numa instituição inovadora no campo da saúde pública. Ficou desde logo sob a tutela do Ministério do Reino (secção da Higiene Pública) e sob a direção de Luís da Câmara Pestana (1863-1899). Foi provisoriamente instalado no Hospital de São José (HSJ) com atribuições similares às do Instituto Pasteur: aplicar a terapêutica anti-rábica, produzir a respetiva vacina, estudar doenças e ensinar a técnica bacteriológica. A tendência do IBL foi a de incorporar novas terapêuticas: em 1895, era instalado o serviço para o tratamento da difteria pela soroterapia, novidade anunciada por Émile Roux (1853-1933) no 8º Congresso de Higiene e Demografia (que teve lugar em Budapeste, em 1894).
O IBL foi gradativamente alargando o seu campo de atuação e desenrolando uma atividade científica de cariz internacional, que teve uma forte expressão na circulação de agentes científicos, de textos, de técnicas, de metodologias e de objetos. O episódio da epidemia de cólera de Lisboa, ocorrido na Primavera de 1894, é paradigmático na história da instituição, tendo à época conferido elevado prestígio internacional ao Instituto. A falta de consenso quanto à etiologia da doença e o receio de que ela se alastrasse de modo irremediável levou ao encerramento imediato das fronteiras pelas autoridades espanholas, impedindo a circulação de pessoas e bens provenientes de Portugal (Baldwin 1999). Neste contexto, o médico Federico Montaldo (1859-1912) foi enviado pelo governo espanhol ao IBL para acompanhar a evolução do estudo bacteriológico da doença, levando depois consigo provas fotográficas do bacilo. O caso fomentou também a troca de correspondência científica (incluindo tubos de cultura e provas fotográficas) entre Câmara Pestana e reputados colegas europeus, como Robert Koch (1843-1910), na Alemanha, Edward Klein (1844-1925), em Inglaterra, e André Chantemesse (1851-1919), em França. Este intercâmbio científico, bem como a singularidade do próprio bacilo, promoveu a entrada do surto epidémico na rede de discussão científica europeia e a inclusão do vibrião lisbonense de Pestana no quadro comparativo de agentes patogénicos estudados pelos bacteriologistas na Europa. Em 1895, Émile Duhourcau (1847-1904), médico nos Pirenéus, visitaria por incumbência do governo francês o IBL, para analisar a atividade científica produzida nos laboratórios fundados sob o modelo do Instituto Pasteur (em Portugal e Espanha). No ano seguinte, divulgou na Revue des Pyrénées um relatório em que elogiava as instalações do IBL, à época ainda no Hospital de São José, e destacava a inovadora prática científica de produção do soro antidiftérico desenvolvida pelo seu diretor, com o uso do burro ao invés do cavalo.
Com o aumento sucessivo de atribuições e a crescente insuficiência dos espaços, o IBL acabaria por ser transferido para o Campo de Santana (1900-1901), para um complexo de edifícios profundamente influenciado pela contemporaneidade da arquitetura laboratorial e hospitalar em uso na Europa. Os responsáveis pelo projeto, Pedro Romano Folque (1848-1922) e Joaquim Pedro Xavier da Silva (1849?-1901), foram em missão de estudo a Paris, onde dialogaram com o diretor do IPP, Émile Roux, e com Henri Belouet, arquiteto da Administração Geral da Assistência Pública e autor de Etudes sur quelques Hopitaux en Allemagne de 1892 (Marques 2019, p. 67). Por ter falecido, inesperadamente, a 15.11.1899, vítima de peste bubónica contraída no Porto, Câmara Pestana não chegou a inaugurar o novo IBL. Os textos fúnebres dedicados ao jovem bacteriologista manifestaram-se também no estrangeiro: não só na imprensa generalista inglesa e francesa, mas também em textos de médicos como Albert Calmette (1863-1933), que integrou a comissão internacional para o estudo da peste (1899), ou Paul Brouardel (1837-1906), presidente do Comité Consultivo de Higiene Pública de França, além de antigos condiscípulos de Câmara Pestana no Laboratório Experimental de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina de Paris, onde o médico português tinha realizado a sua missão de estudo em 1890 (que levaria posteriormente à importação do modelo pasteuriano e à criação do IBL).
Sob a nova direção de Aníbal Bettencourt (1868-1930), o agora designado IBCP manteve a mesma orientação para o internacionalismo científico, como é patente na revista Archives de l’Institut Royal de Bacteriologie Camara Pestana. O primeiro número veio a público em 1906 (ano em que se organizou em Lisboa o XV Congresso Internacional de Medicina) e foi editado em francês para garantir presença nos circuitos científicos internacionais (Gingras 2002). A microbiologia portuguesa, em particular os trabalhos científicos desenvolvidos tanto no IBL, como depois no IBCP, foi alvo de um interesse internacional crescente. A revista alemã Centralblatt für Bakteriologie und Parasitenkunde, fundada em 1887 por Rudolf Leuckart (1822-1898), Friedrich Loeffler (1852-1915) e Oscar Uhlworm (1849-1929) em Iena, e que era o órgão dos bacteriologistas de todo o mundo, é um claro exemplo desse interesse. Nessa revista, foram publicados, em alemão, quatro artigos da autoria de Câmara Pestana e de Aníbal Bettencourt sobre o vibrião de cólera de Lisboa de 1894. Posteriormente (em 1898, 1912 e 1913), mencionou-se um estudo de Câmara Pestana (com o título em português), publicado inicialmente no periódico médico Arquivos de Medicina (de Lisboa); um artigo de Carlos França (1877-1926), médico no IBCP; e um estudo de Aníbal Bettencourt, os dois últimos anteriormente editados nos Archives de l’Institut Royal de Bacteriologie Camara Pestana. [show more]
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João Lúcio de Azevedo | João Lúcio de Azevedo | | |
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Description:Azevedo nasceu em Sintra, em 1855. Passou por diversas instituições escolares, até se inscrever no Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, obtendo o diploma de comerciário em 1872 (Rodrigues 1999: 39). Nada indica que sua família tivesse posses, embora pelo menos um de seus tios fosse um empresário de relativo sucesso no Brasil (Bastos 2013: 271). Independentemente das condições materiais em que vivia, Azevedo fazia parte da fração privilegiada da sociedade portuguesa com acesso à educação formal, dado que, até a década de 1890, mais de ¾ da população adulta ou em idade escolar não sabia ler nem escrever (Silva 1993: 101).
Em 1873, com apenas 18 anos de idade e o diploma recém-obtido, Azevedo atravessou o Atlântico para desembarcar em Belém do Pará, no norte do Brasil. Teria feito a viagem para trabalhar na empresa daquele tio, que se dedicava à exploração de borracha e à navegação fluvial. Contudo, em vez disso, conseguiu um emprego como caixeiro na importante Livraria Tavares Cardoso, que era administrada por dois irmãos portugueses e que, por isso, fazia parte das referências da comunidade lusitana local, além de ser um ponto de encontro da elite letrada paraense (Barata 2016: 1; Almeida Pina 2015: 45; Corrêa Filho 1955: 425). Ao fim de alguns anos, quando os donos originais retornaram ao seu país natal, Azevedo tornou-se proprietário da livraria e consolidou seu lugar no mundo intelectual belenense (Bastos 2013: 271; Almeida Pina 2015: 45). Em 1880, casou-se com sua prima, Ana da Conceição Botelho, com quem teve três filhos (Barata 2016: 1). O tio (e sogro) acabou por falecer em 1885, deixando os negócios sob a responsabilidade do sobrinho e genro, o que forçou Azevedo a naturalizar-se brasileiro – exigência da legislação então vigente para que pudesse assumir as empresas recém-herdadas (Rodrigues 1999: 40; Bastos 2013: 271).
Os rendimentos da livraria e dos negócios de navegação fluvial e extração de borracha enriqueceram João Lúcio de Azevedo e sua família (Bastos 2013: 271). O conforto garantido pelos negócios permitiu, inclusive, que Azevedo passasse a dedicar parte de seu tempo a outras atividades. Foi a partir de então que o livreiro e empresário começou a estudar história e a escrever a respeito. Seu interesse inicial estava ligado ao estabelecimento dos portugueses na região amazônica, com destaque para as ações dos jesuítas do Pará e as políticas do Marquês de Pombal para o Grão-Pará e Maranhão – temas que, como Ana Luíza Bastos assinala, voltariam a aparecer mais tarde, em sua produção madura (Bastos 2013: 271).
Os primeiros trabalhos de Azevedo foram publicados na imprensa local e, depois, reunidos em um volume intitulado Estudos de História Paraense. Este livro foi mobilizado pelos historiadores brasileiros José Veríssimo, José Luís Alvez e Tristão de Alencar Araripe como título de admissão de Azevedo para sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, condecoração que lhe foi concedida em 1894 (Corrêa Filho 1955: 425-6). José Veríssimo e, mais tarde, João Capistrano de Abreu se tornaram dois dos principais interlocutores de Azevedo – fato registrado pela intensa troca de correspondências entre eles (Batista 2008: 8-10) – e levaram os escritos do historiador luso-brasileiro a circular também no Rio de Janeiro, então capital do Brasil e sua cidade mais importante.
Nesse contexto, João Lúcio de Azevedo já ocupava um lugar de relativa proeminência entre a elite letrada paraense. Além da atividade como livreiro, esteve por exemplo envolvido na criação do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Pará (IHGP), fazendo parte da comissão que estudou a viabilidade da instituição. Contudo, embora estivesse entre os sócios fundadores e a cadeira número 23 do Instituto até hoje carregue seu nome, Azevedo não participou ativamente do cotidiano do IHGP. Em 1900, o mesmo ano em que surgiu o Instituto, o historiador e sua família voltaram em definitivo para a Europa. Azevedo vendeu seus empreendimentos em Belém e, a partir de então, passou o restante da vida sustentado por esse dinheiro (Bastos 2013: 271). Além disso, o próprio IHGP não se mostrou viável. Depois de publicar três edições de sua revista, todas em 1900, o Instituto descontinuou suas atividades, que só seriam retomadas em 1917 (Cardoso 2013: 56).
Depois de viver alguns anos em Paris, Azevedo se estabeleceu em Lisboa e passou a se dedicar integralmente aos trabalhos históricos (Bastos 2013: 272). Escreveu, então, várias obras de relevo, como Os jesuítas no Grão-Pará, A Evolução do Sebastianismo, História de António Vieira, História dos Cristãos-Novos Portugueses e o importante O Marquês de Pombal e a Sua Época. Esses trabalhos, com destaque para o último, foram bem recebidos pela crítica portuguesa, que rapidamente incorporou Azevedo como parte da intelectualidade lisboeta (Barata 2016: 4). Além das próprias investigações, Azevedo colaborou frequentemente com historiadores brasileiros, sobretudo com a obtenção de documentos dos arquivos em Portugal que interessavam a seus colegas do outro lado do Atlântico (Batista 2008: 85-117). A atuação de Azevedo neste período fazia dele um importante ponto de contato entre as historiografias dos dois países, e não só como leitor, escritor e crítico, mas também como articulador de bastidores, com um trabalho que tinha influência direta na produção histórica daquele momento tanto lá quanto cá, especialmente, como já se chamou a atenção, pelo favorecimento da circulação de livros e documentos.
Na década de 1920, ao mesmo tempo em que começava a colaborar com órgãos de imprensa do integralismo lusitano, como a revista Nação Portuguesa, e refletia sobre o problema da alegada “decadência da cultura lusitana” (tal como percebido em alguns círculos intelectuais), Azevedo passou também a discutir a história econômica de Portugal (Barata 2016: 6; Bastos 2013: 275). Seu livro mais famoso, Épocas de Portugal Económico, publicado em 1929 – e que continua sendo objeto de discussão até hoje –, sintetiza suas preocupações que, conforme nota Maria Themudo Barata, estavam organizadas em torno da noção de época:
Sabemos bem como, na apresentação das sínteses, os historiadores lançam mão de quadros e de sequências e a noção de época tem o papel particularizador de chamar a atenção para o homem no tempo, para a conjuntura, para o que é específico do tratamento de especialista na análise do particular sem descurar o geral. […] Subjacente à noção de época e para definir duas situações precisas, [Azevedo] usou, também, a noção de ciclo ao falar da Índia e do “ciclo da pimenta” e, sequentemente […], do “primeiro ciclo do ouro”, sem esgotar com tal noção os recursos expositivos. (Barata 2016: 8)
A noção de ciclo, especificamente, recoloca Azevedo em circulação transnacional, pois Roberto Simonsen – importante industrial e historiador brasileiro – apropriou-se da ideia para elaborar a sua História Econômica do Brasil, publicada pela primeira vez em 1937. Para Simonsen, uma das chaves fundamentais de compreensão do desenvolvimento brasileiro estava em pensar a sua economia em função dos produtos que ao longo do tempo ocuparam o topo da pauta de exportações, bem como as atividades subsidiárias que davam sustentação à produção principal. Portanto, o Brasil teria passado pelo ciclo do açúcar, do ouro, do café etc., com subciclos do gado, de caça aos índios, de expansão territorial e outros, onde cada momento teria trazido algum elemento novo ao processo de integração e consolidação nacional (Simonsen 2005 [1937]). Simonsen reconhece a importância de Azevedo para a concepção de seu modelo explicativo da economia colonial brasileira, citando-o extensivamente.
Azevedo não chegou a ver as discussões que suas ideias provocaram na historiografia brasileira, pois faleceu em 1933, em Lisboa, antes mesmo de Simonsen escrever seu livro (Barata 2016: 7). Mas seu nome continuou a ser celebrado e invocado em momentos de reforço de laços institucionais entre Portugal e Brasil. No centenário de seu nascimento, em 1955, a Câmara Municipal de Lisboa organizou uma exposição em sua homenagem, no Palácio Galveias, enquanto o historiador Virgílio Corrêa Filho escrevia um texto laudatório sobre Azevedo que foi publicado na Revista de História da Universidade de São Paulo (Correia 2015; Corrêa Filho 1955). Mais recentemente, em 2017, a Universidade Federal do Pará e o Instituto Camões criaram em conjunto a cátedra João Lúcio de Azevedo, com o objetivo, justamente, de promover uma maior cooperação entre universidades e instituições de pesquisa do Brasil e de Portugal, fazendo jus à memória de Azevedo como agente de articulação intelectual entre os dois países.
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Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de Coimbra | Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de Coimbra | | |
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Description:A 20 de Junho de 1957, o Diário de Coimbra noticiava na primeira página: “O Dr. Armando de Lacerda regressa amanhã do Brasil onde instalou o primeiro Laboratório de Fonética da América do Sul”. Refere-se esta notícia à criação do Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de São Salvador da Bahia, para a qual o foneticista português Armando de Lacerda (1902-1984), fundador e director do Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra, contou com a colaboração do seu discípulo Nelson Rossi (1927-2014). Este laboratório brasileiro, equipado com cromógrafos – inovadores instrumentos para a investigação fonética que Lacerda desenvolvia desde 1932 –, produz em 1960-1963 o primeiro atlas linguístico do Brasil, o Atlas prévio dos falares baianos, no qual se recorre à transcrição fonética de Armando de Lacerda e de Göran Hammarström (1922-2019). Esse empreendimento, no qual intervieram Nelson Rossi e alguns dos seus colaboradores, foi vital no despontar da dialectologia no Brasil, promovendo a emergência de atlas linguísticos noutros estados. Exemplificativos são o Atlas lingüístico de Sergipe, também desenvolvido pela equipa da Universidade de São Salvador da Bahia e concluído em 1973 (embora publicado somente em 1987); o Esboço de um atlas lingüístico de Minas Gerais (1977); o Atlas lingüístico da Paraíba (1984); o Atlas lingüístico do Paraná (1994); e o Atlas lingüístico de Sergipe II (2005).
Nos EUA, a influência do Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra também se repercute. O apetrechamento deste espaço laboratorial com cromógrafos, associado ao prestígio internacional de Lacerda, é fundamental para atrair para Coimbra o doutorando Francis Millet Rogers (1914-1989). Detentor de uma bolsa de estudo da Universidade de Harvard, Rogers especializa-se em 1939, sob a supervisão de Lacerda, no uso da cromografia. Depois de regressar a Harvard, onde se doutora em 1940, a carreira de Rogers culminará na criação nessa universidade da primeira cátedra de Estudos Portugueses nos EUA (cátedra “Nancy Clark Smith”, de Língua e Literatura Portuguesas). Nesse percurso, Rogers, que entendia Lacerda como seu mestre, consegue integrar os estudos de português no programa de “General Education”. Nas suas aulas, recorre aos métodos de registo da fala apreendidos no laboratório dirigido por Lacerda. Entre outras inovações, esta prática potencia o interesse pela língua portuguesa a níveis dignos de o inscrever nas suas memórias, onde refere que, a partir de 1960, com a actualização e melhoria do curso de língua portuguesa, frequentemente lhe chegavam rumores de que as duas línguas de maior prestígio para os estudantes da Universidade de Harvard eram o árabe e o português.
Na mesma época, em 1965, mas do outro lado do globo, em Melbourne, um outro discípulo de Lacerda e colaborador do Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra assume a posição de primeiro professor catedrático de Linguística na Austrália. Referimo-nos a Göran Hammarström, o foneticista sueco que já em 1955 havia criado o Departamento de Fonética da Universidade de Uppsala. À imagem do ocorrido com Francis M. Rogers e com Nelson Rossi, também na base desta carreira académica se encontra o Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra, onde Hammarström preparara o seu doutoramento, que defendera em seguida em Uppsala em 1953. A importância da colaboração com Lacerda no laboratório dirigido por este sobressai em 1957, quando Georges Straka (1910-1993), director do Instituto de Fonética da Universidade de Estrasburgo, elabora um parecer sobre as competências científicas de Hammarström, a pedido do director da Faculdade de Letras de Uppsala. Nesse documento, Straka defende que o estudo de Hammarström sobre a duração dos fonemas em sueco é de grande interesse para a linguística, excedendo largamente os resultados previamente alcançados por outros investigadores. Na sua opinião, isso resultava de Hammarström ter usado em Coimbra o “excelente método cromográfico”.
Brasil, EUA, Escandinávia e Austrália: a criação em várias universidades estrangeiras de laboratórios que se apropriam das técnicas de investigação aplicadas no Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra são alguns exemplos da influência global deste centro de investigação. Os ensinamentos obtidos em Coimbra contribuíram para desencadear uma “mentalidade dialectológica” na América do Sul, assim como para a criação de cadeiras de fonética, de cursos de português ou para o seu uso em aulas de Línguas Românicas em Harvard.
O director do Laboratório, Armando de Lacerda, desempenhou um papel fundamental na obtenção deste estatuto. Lacerda beneficiara da existência, desde 1929, da Junta de Educação Nacional, instituição que planificava e financiava a investigação científica em Portugal, seguida, a partir de 1936, do Instituto para a Alta Cultura. É como bolseiro de investigação da Junta de Educação Nacional que Lacerda se especializa em fonética experimental em Hamburgo e em Bona, em 1930-1933. Nos institutos de fonética destas universidades adquire prestígio internacional, nomeadamente pela criação, em 1932, do policromógrafo, equipamento que torna obsoleto o quimógrafo, até então o principal instrumento aplicado nos laboratórios de fonética experimental. Digna de nota é também a publicação em 1933, em co-autoria com o seu mestre Paul Menzerath (1883-1954), da obra Koartikulation, Steuerung und Lautabgrenzung, trabalho que cria o conceito-chave de coarticulação (as influências exercidas entre si pelos sons contíguos da fala), que a partir daí desempenha um papel central na teoria fonética.
Regressando a Portugal em 1933, Lacerda instala na Universidade de Coimbra, como já foi referido, o primeiro laboratório de fonética experimental do país. Considerado por diversos linguistas estrangeiros, em meados do século XX, o melhor laboratório de fonética experimental da Europa, este espaço laboratorial, como exemplificámos com alguns casos, atrairá inúmeros cientistas da Europa, da América do Norte, da América do Sul e de África. Em comum, os investigadores estrangeiros partilham a procura de especialização que lhes permita dar início a prestigiadas carreiras académicas internacionais.
Nos anos 1960 os apoios do Estado português ao laboratório dirigido por Lacerda diminuem e, a partir de 1972, com a sua jubilação, e na ausência de um sucessor na direcção do instituto, inicia-se a ocupação para novos fins das dez salas que o Laboratório até então ocupava na Faculdade de Letras de Coimbra. Reduzido a uma única sala, o Laboratório encerra em 1979 a sua actividade. Nesse mesmo ano, Lacerda ocupava ainda a posição de membro honorário do Conselho Permanente para a Organização de Congressos Internacionais de Ciências Fonéticas, ombreando em exclusivo com Roman Jakobson (Cambridge, EUA) e Eberhard Zwirner (Colónia, República Federal da Alemanha), distinção compaginável, no ocaso da sua vida, com a história da sua carreira académica. Se a sua escola de investigação, por intermédio dos seus discípulos, se difundiu nos mais diversos países e continentes, já no nosso país aquele que é um dos raros cientistas portugueses inscritos na história de uma disciplina científica foi remetido ao esquecimento, realidade para a qual terá concorrido o facto de a Universidade de Coimbra o ter sistematicamente considerado membro do “pessoal técnico, auxiliar e menor”.
A (in)visibilidade historiográfica do Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de Coimbra e de Armando de Lacerda assume, deste modo, um particular interesse na história da ciência mundial, ao mostrar como um espaço laboratorial na periferia da Europa chegou a assumir uma atractividade científica mais própria dos tradicionais centros científicos; ao mesmo tempo, o seu fundador e director, sendo embora um dos nomes maiores da disciplina, era oficialmente remetido à condição de “técnico invisível”. Estes são motivos que mais do que justificam a recuperação desta história, em curso pelo projecto PHONLAB (2022.06811.PTDC) “Laboratório de Fonética: Coimbra – Harvard. Repensar centros e periferias científicas no século XX”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. A recuperação historiográfica em curso conduziu a Real Academia das Ciências da Suécia a dedicar um dia ao foneticista português (Armando de Lacerda: A pioneer of Experimental Phonetics - Kungl. Vetenskapsakademien (kva.se), além de em 2022 ter levado a rede internacional focada na história da investigação em comunicação de fala a, pela primeira vez, dedicar um dos seus workshops bianuais a um cientista (LACERDA 120 – 5th International Workshop on the History of Speech Communication Research (HSCR) (wordpress.com).
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Martins, Pedro | Martins, Pedro | | |
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Matias Tomé Upinde (1945-2024) | Matias Tomé Upinde (1945-2024) | | |
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Description:A pesquisa seguiu o caminho de uma abordagem “biográfico-narrativa”, que permite uma metodologia “ativa, interpretativa e reflexiva” (Thé 2022: 1) a partir da apresentação da história de vida de Matias Upinde, com os principais aspetos e os acontecimentos mais marcantes da sua trajetória. Trata-se de uma personalidade pouco conhecida, que se pretende divulgar, por se considerar que a história transnacional e conectada (Seigel 2005: 63), longe da história oficial, é tecida na malha dos sem voz e possibilita uma análise problematizante, para além das fronteiras das nações.
Matias Tomé Upinde nasceu em Cabo Delgado, no dia 25 de fevereiro de 1945, vivendo numa família alargada, com os pais e avós. Aos 7 e 8 anos frequentou a missão de S. João de Brito em Nambude (no planalto dos Macondes), tendo terminado a 4ª classe em 1962. Foi professor-catequista entre 1962 e 1964. Nessa altura, a maioria dos professores eram militantes clandestinos da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e, por esse motivo, Upinde escaparia para o Tanganica (atual Tanzânia), tendo passado por Mtwara, Dar-es-Salaam, Bagamoyo e Kongwa, onde chegou em 1965 e onde fez treinos militares. De volta a Dar-es-Salaam, preparado para ir trabalhar para a FRELIMO no exterior, foi “desviado” para Bagamoyo e, mais tarde, para Nachingwea, no sul do Tanganica, como instrutor no Centro de Preparação Político-Militar.
Daí seguiu para a União Soviética (URSS), com a intenção de cursar sabotagem, mas ficou na artilharia. De regresso a Nachingwea, fez um curso com instrutores chineses, após o que foi para o interior de Niassa, onde o primeiro grupo de artilharia deveria operar. Ali esteve, primeiro, como adjunto e, mais tarde, como chefe dos combatentes. Quando a FRELIMO se preparava para receber uma nova arma (a artilharia ligeira soviética B-11), Upinde seguiu para Dar-es-Salaam, e de lá para a URSS, onde treinou. De regresso a Nachingwea, passou a operar no interior de Moçambique: o seu grupo recebeu ordens para abrir a Frente de Manica e Sofala. Chegaram a 15 de agosto de 1974, já depois do golpe militar de 25 de abril de 1974 em Portugal. Chamado a chefiar um grupo que deveria seguir para a Rodésia do Sul (atual Zimbábue), partiu mais uma vez para Moscovo, a fim de ser preparado no quadro de forças especiais. Regressou a Moçambique em 1977, na altura do 3º Congresso da FRELIMO, sendo colocado em Quelimane, na província da Zambézia, como Comandante d Batalhão (1977-1978).
Em dezembro de 1978, entrou com o seu grupo em Manica, na companhia de Josiah Tongogara, comandante do Zimbabwean People’s Revolutionary Army (ZIPRA), braço armado do partido Zimbabwe African People's Union (ZAPU) no combate ao regime de minoria branca liderado por Ian Smith. “Não devíamos atacar até chegar à estrada Salisbúria (Harare)-África do Sul”. Criou então, entre janeiro e março de 1979, quatro grupos: um de reconhecimento; outro que atacou um hotel; um terceiro que ficou a defender a fronteira; e um quarto que permaneceu com o comandante no centro. Falavam sempre em Suaíli e, segundo o próprio Upinde, “dizíamos que éramos zimbabueanos”: “O meu nome era Eduardo Ngo”. Tinha o apoio do Destacamento Feminino (DF), que por diversas vezes transportou material, até que no dia 24 de maio de 1979 todo o grupo do DF foi dizimado num ataque. Apareceu um avião e três helicópteros, que fizeram um cerco: “Escondi-me das 14 às 18 h e caí numa cova”, relembra Upinde. Esconderam-se entre a população e ali ficaram. Isto aconteceu na época das conversações na Lancaster House, em Londres, que visavam o fim do conflito rodesiano e a futura independência do Zimbábue, num acordo que viria a ser assinado a 21 de dezembro de 1979. A ação da diplomacia moçambicana, chefiada por Samora Machel, junto da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher foi importante na solução encontrada para a transição no Zimbábue de colónia inglesa, sob um regime de minoria branca, a Estado independente.
“Como devo continuar a missão?”, perguntou então Upinde ao Presidente Samora Machel. Devia voltar. Através dos media, o Presidente deu notícia ao mundo da solidariedade moçambicana para com o povo do Zimbábue. Entretanto, um soldado zimbabueano foi capturado e “deu o meu nome aos bóeres”. Chegado a Umtali (atual Mutare), colocaram-nos na cadeia e começaram os interrogatórios: queriam saber qual tinha sido a missão do batalhão. “Ficámos uma semana e esperávamos duas coisas: ser ou libertados ou fuzilados”. Mas chegou um avião “com os nossos camaradas e polícia da Commonwealth. O plano nesse momento era regressar a casa, o que aconteceu a 7 de fevereiro 1980. Houve receção no aeroporto, cheio de gente”. “Fiz a apresentação do grupo e disse: ‘Missão cumprida!’” Preocupou-se com os camaradas falecidos, cujos corpos deviam regressar a Moçambique. “Escrevi duas vezes”. Até hoje, infelizmente, os familiares das vítimas desconhecem o respetivo paradeiro.
Teve outras missões, na Beira e em Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Desmobilizado com a patente de major, viveu com a família em Mocímboa da Praia. Em 2017, Mocímboa foi vítima de ataques dos insurgentes do grupo islamista radical Ahlu Sunnah Wal Jamaah. Segundo Upinde, “Foi tudo destruído… carro, motorizada e casa”; “A Mamã (Alda Saíde, organizadora da Conferência, conheceu o Comandante Matias através do General Mataruca, atual Comandante da Academia Militar em Nampula) é que me descobriu”. Agora, ninguém me chama,” lamentou-se no final da exposição da história da sua vida. A tranquilidade com que nos falou, aos setenta e oito anos, contrastava com a penúria a que se via reduzido, depois de tantos sacrifícios que ficaram esquecidos (Ricoeur 2007: 457). Faleceu em 2024, vítima de doença.
Existem fontes escritas – na documentação oficial (Machel 1974: 51), na imprensa (Machel 1976), em estudos académicos (Cabaço 2007: 405) – que dão conta da solidariedade moçambicana com outros movimentos de libertação, no contexto da África Austral. No entanto, as fontes orais e iconográficas dão o colorido do detalhe e, cruzadas com outros dados, possibilitam a compreensão do passado, dos conflitos militares em que a região se viu envolvida, face ao apartheid na África do Sul, ao regime de Ian Smith na Rodésia e ao colonialismo português. Por conseguinte, é necessário continuar a procurar os sem voz, de modo a dar-lhes visibilidade, pelo menos académica, para que os mais jovens se inspirem e façam o que os mais velhos começaram, para a construção de uma sociedade mais inclusiva e justa, num ambiente de Paz.
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Description:Vista como uma idade de trevas, violência e superstição ou, alternativamente, de civilização e valores cavalheirescos e comunitários, o período histórico habitualmente designado como “Idade Média” exerce desde há muitos séculos um fascínio enorme, que se perpetua até hoje e se estendeu às mais diferentes geografias. O termo “medievalismo” pode ser simultaneamente entendido como o estudo da “Idade Média” num contexto académico, ou como a representação ou uso de eventos, temas, conceitos, obras e figuras consideradas “medievais” em épocas posteriores à Idade Média. O conceito remonta à década de 1830 no contexto britânico, tendo sido popularizado em 1853 pelo escritor, filósofo e crítico de arte John Ruskin, que assim descreveu uma das três épocas da história da arquitetura europeia, em contraposição com o que chamou de “classicismo” e “modernismo” (Workman 1986: 378). Esta entrada centra-se nos vários “medievalismos”, entendidos como os diferentes estudos, narrativas, representações e usos da Idade Média em Portugal, entre o início do século XIX e a década de 1940. Por Idade Média entender-se-á o período tradicionalmente considerado entre o século V d.C. e a primeira metade do século XV. O texto focar-se-á em três campos: a historiografia – ou seja, o que se escreveu sobre o período medieval; as representações e práticas patrimoniais – como o património material da Idade Média foi entendido, preservado e restaurado; e as comemorações – como figuras e eventos do passado medieval português foram comemorados no espaço público.
A história dos medievalismos em Portugal está indelevelmente ligada a acontecimentos políticos, transformações socioeconómicas e correntes culturais que marcaram outros países ao longo da época contemporânea. Um dos fenómenos que maior impacto teve no contexto português foram as Invasões Francesas de 1807-1811. À semelhança de outras partes da Europa, a destruição de várias obras de arte de origem medieval (e não só) no contexto das Guerras Napoleónicas suscitou um interesse específico pelas tradições consideradas nacionais, em particular as da Idade Média (Geary e Klaniczay 2013: 1-2). Por outro lado, a independência do Brasil, em 1822, levou as elites portuguesas a virarem-se para a história nacional, em busca de modelos políticos capazes de inspirar uma futura regeneração. A Idade Média era representada como a época fundadora e diferenciadora da história de Portugal, aquela na qual as supostas caraterísticas da nação haviam adquirido o seu cariz original e puro, antes da sua alegada decadência. No entanto este fenómeno estava longe de ser único à realidade portuguesa. Na realidade, pela mesma altura, as elites doutras nações europeias, apesar dos seus diferentes processos históricos, partilhavam uma visão semelhante sobre o seu próprio passado medieval, demonstrando assim o cariz profundamente paradoxal dos medievalismos enquanto fenómeno transnacional.
À semelhança do que sucedeu em países como o Reino Unido, a década de 1840 constituiu em Portugal um marco significativo ao nível da produção literária, historiográfica e artística de inspiração medievalista (Matthews 2015: xi). Data deste período a publicação das primeiras obras literárias ambientadas na Idade Média por parte autores identificados com o Romantismo, como Alexandre Herculano e Almeida Garrett, parcialmente inspirados nos trabalhos de escritores como o escocês Walter Scott e o francês Victor Hugo. O próprio Herculano iniciou a escrita dos seus principais estudos historiográficos por esta altura, tendo como época de maior enfoque o período medieval. Influenciado por autores ligados ao liberalismo francês, notavelmente os historiadores François Guizot e Augustin Thierry, Herculano imaginava a Idade Média como uma época de conquista de liberdades cívicas, em contraste com o despotismo que alegadamente caracterizaria as épocas antiga e moderna (Groebner 2008: 91-92; Martins 2020: 456-457). À semelhança de historiadores românticos seus contemporâneos, como o espanhol Modesto Lafuente, o autor português concebia a época medieval como um período com características políticas e sociais singulares, marcado pela ausência de feudalismo e pelo poder dos concelhos e das Cortes (López-Vela 2004: 221-224).
Este interesse por tudo o que respeita à Idade Média deixou profundas marcas na cultura portuguesa desde então. Na realidade, não foi apenas a historiografia sobre as instituições políticas e a sociedade no Portugal medieval que conheceu um importante avanço na década de 1840. Produzidos em grande medida como uma resposta nacionalista aos trabalhos de autores estrangeiros – como o geógrafo e naturalista alemão Alexander von Humboldt e o político e historiador francês Louis Estancelin –, foram publicados também neste período os principais estudos de historiadores como o Cardeal Saraiva e o Segundo Visconde de Santarém em torno da primazia portuguesa nos chamados “Descobrimentos”. Ao nível da produção artística e da intervenção patrimonial, os anos de 1840 são ainda marcados pelo início de dois grandes projetos de inspiração medievalista, sob o patrocínio do rei consorte D. Fernando II, príncipe da Casa de Saxe-Coburgo-Gota: o restauro do Mosteiro da Batalha, considerado o mais emblemático edifício gótico português; e a construção do Palácio da Pena, em Sintra, concebido pelo também alemão Wilhelm Ludwig von Eschwege num estilo revivalista largamente influenciado pela arquitetura dos castelos renanos. Na realidade, a Alemanha foi, a par do Reino Unido e da França, um dos centros a partir dos quais o medievalismo romântico irradiou pela Europa oitocentista, tendo um grande impacto em contextos como o português.
Entre a segunda metade do século XIX e o início do XX, o interesse pelo passado medieval não parou de crescer no nosso país. É nesta altura que o adjetivo “medieval”, que já era amplamente empregue nos meios académicos britânicos desde pelo menos a década de 1830, passou a ser também utilizado por autores portugueses (Matthews 2015: 52). De facto, um conjunto de fatores socioeconómicos e políticos favorecia a manutenção do interesse pela Idade Média por parte das elites nacionais. À semelhança de que sucedia noutros países europeus, fenómenos como a urbanização e a industrialização geraram uma nostalgia romântica pelo passado pré-moderno. No caso especificamente português, as dificuldades em criar um “Terceiro Império” em África face à competição de várias potências europeias – cuja face mais visível foi o célebre Ultimato Britânico, de 1890 – incentivavam visões decadentistas da história nacional, nas quais a Idade Média era frequentemente representada como um contraponto idealizado ao suposto declínio da nação desde o início da Época Moderna.
São vários os paralelismos entre a visão da Idade Média produzida por autores portugueses neste período e a historiografia estrangeira sobre a mesma época histórica. Em figuras como Teófilo Braga, nomeadamente na sua tese sobre o que ele designou como a “raça moçárabe”, é possível identificar uma forte influência da obra do escritor e diplomata Arthur de Gobineau, dos debates sobre as origens raciais do povo francês e da historiografia em torno da alegada origem anglo-saxónica das instituições democráticas britânicas (Emery e Morowitz 2003: 18; Alexander 2007: 131-132). Ecos de discursos de dualismo rácico com origens no período medieval, remetendo para contextos como a Grã-Bretanha, a França, a Espanha ou a Itália, podem também ser encontrados na obra de autores contemporâneos como Alberto Sampaio ou Basílio Teles (López-Vela 2004: 222). Já a famosa conferência de Antero de Quental, Causas da decadencia dos povos peninsulares nos ultimos tres seculos (1871), uma das mais marcantes apologias do período medieval produzidas em Portugal no século XIX, deve muito aos ideais iberistas então em voga. Igualmente na obra de Oliveira Martins é possível identificar paralelismos com autores estrangeiros de inspiração medievalista. Por exemplo, o seu Projecto de Lei de Fomento Rural (1887) baseava-se numa conceção idílica da estrutura agrária de Portugal na Idade Média, com fortes semelhanças à que havia inspirado, na década anterior, as medidas legislativas do primeiro-ministro britânico Benjamin Disraeli (Chandler 1971: 182; Martins 2020: 458-463). Por outro lado, a descrição feita por Oliveira Martins das transformações políticas operadas pela crise de 1383-85 assemelhava-se às interpretações de vários historiadores espanhóis oitocentistas sobre o reinado dos Reis Católicos (López-Vela 2004, p.227) e revelava simultaneamente a influência do historiador suíço Jacob Burckhardt, cuja obra Die Kultur der Renaissance in Italien (1860) figurava na biblioteca pessoal de Martins em versão em língua inglesa. O autor português foi ainda um dos responsáveis pela difusão do mito em torno da figura do Infante D. Henrique, para o qual o geógrafo inglês Richard Henry Major, com a sua obra The life of Prince Henry of Portugal, surnamed the Navigator – publicada em 1868 e traduzida para português em 1876 –, também muito contribuiu. Na realidade, o infante quatrocentista tornar-se-ia uma das figuras mais marcantes do medievalismo português, muito graças ao quinto centenário do seu nascimento, celebrado no Porto em 1894, e que, tal como eventos idênticos realizados noutros países europeus pela mesma altura, profundamente contribuiu para a criação e consolidação de uma identidade nacional em torno de uma história comum (Figura 1).
No campo da historiografia da arte e das intervenções no património medieval, é também possível identificar fortes influências externas. O contraste entre a aparente nobreza e espiritualidade da arquitetura medieval e o carácter supostamente artificial e utilitário das construções modernas, salientado por autores ligados ao medievalismo inglês, como Augustus Welby Pugin, Ruskin e William Morris (Alexander 2007: 88-90), pode ser encontrado em obras como O Culto da Arte em Portugal (1896), de Ramalho Ortigão. De facto, a admiração de Ortigão pela arte medieval não o impedia de concordar com a ideia, partilhada por vários intelectuais e artistas franceses, ingleses e alemães oitocentistas, segundo a qual o estilo gótico era o que melhor encarnava o “génio” destas nações (Emery e Morowitz 2003: p.92; Alexander 2007: pp.78-81). A preferência do autor português ia assim para o estilo manuelino, considerado o verdadeiro “estilo nacional” e uma expressão local do gótico numa fase de expansão da arquitetura renascentista. No que toca às teorias de restauro, o pensamento do arquiteto francês Eugène Viollet-le-Duc, responsável por intervenções em edifícios icónicos como a Sainte-Chapelle e a Catedral de Notre-Dame em Paris, exerceu um grande impacto nos trabalhos levados a cabo em monumentos medievais portugueses, como a Sé Velha de Coimbra, a Sé da Guarda, ou o Castelo de Leiria. Neste último caso, o projeto de restauro, da autoria do arquiteto suíço Ernesto Korrodi, acabaria por não ser concretizado na sua totalidade. Já no caso da intervenção na Sé Velha de Coimbra, o responsável pelos trabalhos, o historiador de arte e arqueólogo António Augusto Gonçalves, procurou inspiração na arquitetura românica das catedrais de Ávila e Zamora para algumas das alterações introduzidas (Figura 2).
Durante a primeira metade do século XX, a historiografia portuguesa sobre a Idade Média intensificou as suas relações com trabalhos produzidos no estrangeiro. Na senda de autores espanhóis como José Amador de los Ríos, José Ortega y Gasset e Claudio Sánchez-Albornoz, António Sérgio procurou as causas do alegado declínio das nações ibéricas nas condições políticas e socioeconómicas que supostamente haviam condicionado a sua formação durante o período medieval (López-Vela 2004: 225). Já nas décadas de 1920 e 1930, Sérgio, juntamente com outros historiadores como Jaime Cortesão e Alberto da Veiga Simões, usou as teses do historiador belga Henri Pirenne para explicar não apenas o surgimento do reino de Portugal no século XII, mas também as transformações socioeconómicas geradas pela crise de 1383-85. Simultaneamente, certas ideias sobre a Idade Média nacional continuavam a ser motivo de instrumentalização política. Na década de 1910, e à semelhança do que faria Sánchez-Albornoz durante a Segunda República Espanhola, o engenheiro, deputado e futuro Ministro da Agricultura Ezequiel de Campos fundamentava os seus projetos de reforma agrária na ideia de que o país possuía vastas e estagnadas regiões rurais, cujo modo de vida e produtividade permaneciam praticamente inalterados desde o período medieval. Pela mesma altura, e num campo político totalmente oposto, os integralistas portugueses, notavelmente António Sardinha, baseavam os seus modelos políticos numa visão da Idade Média inspirada por autores franceses, como Pierre Guillaume Frédéric Le Play, Fustel de Coulanges ou Charles Maurras (Martins 2020: 465-468). A influência do pensamento conservador e católico francês pode ainda ser encontrada num autor como o jornalista, escritor e historiador João Ameal. Figuras como François-René de La Tour du Pin, Jacques Maritain, Henri Massis ou ainda o russo Nikolai Berdiaev deixaram uma profunda marca nos discursos de Ameal em torno da ideia de uma Idade Média espiritual, ordeira e unida, face à desagregação, individualismo e materialismo alegadamente trazidos pela modernidade (Workman 1986: 280). Esta ideia serviria em grande medida de base ideológica legitimadora para a ditadura militar implantada em 1926 e sobretudo para o regime do Estado Novo, a partir de 1933.
Também no que toca ao património material, os medievalismos portugueses da primeira metade do século XX foram marcados por inúmeros influxos e paralelismos com outros países europeus. A título de exemplo, a atitude de uma boa parte das elites nacionais face à arte eclesiástica depois da promulgação da Lei de Separação do Estado das igrejas (de 1911) em muito se assemelhou à observada em França na sequência do diploma análogo de 1905 (Emery e Morowitz 2003: 6). Durante a Primeira República, figuras como os historiadores de arte José de Figueiredo e Manuel Aguiar Barreiros, o poeta Afonso Lopes Vieira ou o escritor Manuel Ribeiro buscaram inspiração nos escritos de Viollet-le-Duc, Ruskin e William Morris para descrever o alegado contraste entre a arte e o estilo de vida dos artistas medievais e os seus congéneres modernos. Motivado pelo restauro dos chamados “Painéis de São Vicente”, José de Figueiredo – juntamente com outros historiadores de arte, como José Pessanha – procurou legitimar a existência de uma escola de pintura primitiva portuguesa, semelhante à que existira em locais como a Flandres e a Itália. Pouco depois, o Estado português começou a desenvolver a ideia de promover turisticamente o seu património material medieval, um processo exemplificado pela publicação, por parte da Repartição de Turismo, do guia em língua inglesa Castles of Portugal (1925), da autoria do historiador, presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa e oficial da marinha Vicente Almeida d’Eça. O interesse pela arquitetura militar da Idade Média, de resto partilhado por outros países como Espanha (Nuñez-Herrador e Villena Espinosa 2022: 193-194), foi consubstanciado pela ação da Direção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) a partir da década de 1930 (Figura 3). Na realidade, os dirigentes e técnicos que trabalharam sob este organismo absorveram muitas das ideias oitocentistas em torno da arte e do restauro, que então continuavam a ter eco nos sectores políticos mais à direita em países como a Alemanha e a Itália. Estas ideias incluíam uma profunda admiração pela arte medieval no seu todo, o desprezo pela arte maneirista e barroca e o princípio da “unidade de estilo”, que fora aplicado em diversos edifícios europeus durante o século XIX (Ordieres Díez 1995: 118-119). Este princípio, fortemente seguido nas primeiras décadas de intervenções da DGEMN, seria alvo de contestação interna por figuras como Raul Lino, partidário dos princípios de conservação postulados por autores como Ruskin e William Morris.
No que respeita às comemorações do passado medieval, Portugal seguiu processos semelhantes aos registados noutros países europeus durante a primeira metade do século XX. Um dos casos mais paradigmáticos foi, em 1920, a criação pela Primeira República da “Festa de Nuno Álvares Pereira”, claramente inspirada na Fête nationale de Jeanne d’Arc, promulgada pela Terceira República Francesa uns meses antes. De facto, à semelhança do que sucedeu com a sua congénere francesa, a figura do condestável português tornou-se um elemento nacional agregador no contexto da Primeira Guerra Mundial (Emery e Morowitz 2003: 22-25). Já durante o Estado Novo, e da mesma forma que o regime fascista fez em Itália em relação a outras figuras da Idade Média (como Francesco Petrarca), o nobre português foi identificado com a mensagem de “ressurgimento nacional” que o novo regime pretendia transmitir (Martin 2005: 199-200). Um dos exemplos mais espetaculares da apropriação do passado medieval pela ditadura portuguesa, porém, foram as várias encenações históricas organizadas nas décadas de 1930 e 1940 e que, tal como em eventos análogos organizados em países como a Alemanha ou o Luxemburgo pela mesma altura, representavam esta época em tons fortemente triunfalistas (Schweizer 2007: 142-162; Groebner 2008: 108; Péporté 2011: 128-130 e 276). Nalgumas destas recriações, foram utilizadas cópias de armaduras depositadas em museus estrangeiros, o que mostra bem como os organizadores destes eventos se preocupavam mais com uma ideia estereotipada do “medieval” do que propriamente com uma noção de veracidade histórica (Figura 4). No contexto das comemorações do duplo centenário (em 1940), e mais tarde do oitavo centenário da conquista de Lisboa (em 1947), o carácter transnacional destes eventos estava plasmado na forma como acontecimentos da Idade Média foram celebrados. No primeiro caso, a Batalha do Salado foi representada como um momento premonitório da aliança entre Salazar e Franco no contexto da Guerra Civil de Espanha e do chamado “Pacto Ibérico” de 1939. No segundo caso, os cruzados que participaram na conquista de Lisboa em 1147 foram apresentados como um sinal auspicioso das relações diplomáticas entre Portugal e outras nações europeias, como a Inglaterra, a Bélgica ou a Alemanha (Martins 2022).
Apesar do aparente declínio dos usos políticos do passado medieval no pós-Segunda Guerra Mundial, este continuou a ser objeto de estudos importantes e de instrumentalizações várias. No contexto português, à semelhança do que sucedeu noutros países europeus, a democratização não representou uma rutura completa com muitos dos pressupostos nacionalistas que influíam nas representações da Idade Média. A época medieval continua hoje a gerar interesse popular e a ser uma base significativa para discursos identitários e apropriações ideológicas várias.
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Novos Movimentos Sociais | Novos Movimentos Sociais | | |
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Description:Durante os chamados “Longos Anos Sessenta” (aproximadamente entre 1955 e 1975), as mobilizações sociais diferenciaram-se em várias partes do mundo, mostrando a emergência de novos conflitos, ou evidenciando a existência de clivagens até então ignoradas ou despercebidas. Esta “efervescência” impactou as identidades, as reivindicações, as estratégias dos atores dos conflitos nacionais e internacionais, abrindo novos processos e acelerando outros. Ao lado das reivindicações económicas, que tinham caracterizado o conflito social e político até então, apareceram ou aprofundaram-se outras temáticas – como os direitos de género e das minorias, a questão ambiental, o pacifismo, a libertação sexual – com especificidades próprias consoante os países e as áreas geográficas.
Face a estes processos, os dois modelos interpretativos do conflito então prevalecentes nas ciências sociais – o estrutural-funcionalista e o marxista – cedo demonstraram dificuldades. As ferramentas analíticas destas tradições tinham sido forjadas à volta de conflitos económicos, mas não estavam preparadas para analisar as novas clivagens que surgiram nos anos 1960. A reação a estas limitações teóricas assumiu formas diferentes na Europa e nos Estados Unidos da América, devido não só a distintas tradições de pensamento, mas também a especificidades do próprio objeto de estudo. Nos EUA, a maioria das organizações nascidas das vagas de protesto da década de 1960 assumiu rapidamente características pragmáticas. Na Europa, os movimentos sociais mantinham características herdadas de fortes movimentos operários nacionais, bem como uma conotação ideológica vincada, associada a traços marcadamente anti-sistémicos (della Porta e Diani 1995). Estas disparidades refletiram-se em abordagens que tomaram formas diferentes nos dois continentes. Se nos EUA o foco incidiu sobretudo sobre a dimensão racional dos movimentos e sobre a sua relação com o processo político, a resposta das ciências sociais europeias aos movimentos dos anos 1960 e 1970 passou pela elaboração da “teoria dos novos movimentos sociais”. Autores como Alain Touraine, Alberto Melucci ou Claus Offe salientaram que, diferentemente do movimento operário, os novos movimentos sociais não se limitavam a reivindicações materiais e a exigir a intervenção do Estado para garantir o bem-estar e a segurança, mas incidiam sobre valores ligados à afirmação da sua própria identidade cultural, resistindo à expansão da intervenção estatal na esfera do quotidiano.
Esta visão dos novos movimentos foi fundamental para dar nome a uma série de fenómenos e de atores emergentes. A reflexão que se desenvolveu nas décadas seguintes, no entanto, veio a reconhecer a intersecção dos diferentes eixos conflituais e a interdependência entre reivindicações materialistas – com base económico-social) e pós-materialistas (de base cultural, política, identitária). Este reconhecimento é particularmente importante quando estudamos contextos autoritários, como os países da Europa do Sul que, durante os “Longos Anos Sessenta”, ainda viviam em ditadura: casos como Portugal e Espanha, cujos regimes haviam subsistido à queda dos fascismos europeus, após a 2ª Guerra Mundial, ou como a Grécia, regime autoritário de formação mais recente. Apesar de estarem submetidos a ditaduras, estes países também foram atravessados por fortes mobilizações sociais, que partilhavam muitas das características dos movimentos dos longos anos Sessenta no resto do mundo. É certo que algumas das causas centrais dos “novos movimentos sociais” (como as reivindicações feministas e ambientais, os direitos homossexuais, a libertação cultural e sexual, entre outras) se difundiram apenas depois das transições para a democracia, sobretudo porque as reivindicações políticas, ligadas ao fim da ditadura, tinham prioridade; ainda assim, aspetos como a emergência de uma nova esquerda (Cardina 2011), ligada também à mudança de costumes e de práticas culturais, coincidiram com as fases finais dos regimes autoritários português, espanhol e grego, tendo sido parte do fenómeno de multiplicação das forças de oposição às ditaduras.
O caso de Portugal é, neste sentido, bastante emblemático. Os movimentos estudantis que se intensificaram no país a partir dos finais dos anos 1950, e sobretudo do início dos anos 1960, começaram por contestar a falta de liberdade académica, para chegarem rapidamente a uma crítica mais explicita ao regime vigente. Durante a última década do Estado Novo, as reivindicações de cariz “cultural” assumiram um papel muito relevante e estavam associadas a uma crítica aberta ao ambiente abafador, provinciano e conservador do regime. Estas reivindicações eram acompanhadas pela procura crescente de produtos culturais “alternativos” (muitas vezes censurados), que tinham com frequência uma dimensão explicitamente política, como era o caso de muitas obras produzidas em Portugal no campo da música, da literatura, ou das artes visuais.
A oposição contra o Estado Novo enriqueceu-se ainda, durante os anos 1960 e o início dos anos 1970, com as novas posições anticoloniais. Se, por um lado, estas eram obviamente motivadas pelo contexto das guerras portuguesas em África (iniciadas em 1961), eram também inspiradas, de forma crescente, por discursos e reflexões internacionais, como as elaboradas pelos próprios movimentos de libertação, ou por autores como Frantz Fanon. Em 1968, em Lisboa, foi organizada a primeira manifestação contra a guerra do Vietname. Se ela pode ser entendida como uma forma indireta de protesto contra as guerras portuguesas em África, a manifestação mostrou igualmente a interligação transnacional de algumas instâncias dos movimentos dos Longos Anos Sessenta, e respetiva declinação e “internalização” em contextos locais.
Esta internalização não era apenas veiculada através de informações e publicações clandestinas, ou através dos exilados e dos demais emigrados portugueses, mas também – e paradoxalmente – pela própria propaganda do regime. Notícias sobre protestos noutros países eram frequentemente divulgadas nos media portugueses, com o objetivo de, por contraste, salientar a presumida atmosfera de paz e estabilidade da vida nacional. A partir de 1961, reportagens sobre o movimento dos direitos civis nos EUA visavam também denunciar as atitudes repressivas e racistas desta democracia ocidental, sobretudo num contexto de reprovação internacional das guerras coloniais portuguesas em âmbitos como a ONU. Foi o caso, por exemplo, de uma reportagem publicada a 24 de Abril de 1961 no Diário de Notícias, na qual se referia que, além das “discriminações raciais e da repressão policial de um movimento pacífico”, também “jovens nazis, de braçadeira e cruz gamada, chegaram a Montgomery no autocarro do ódio”. As notícias eram acompanhadas por fotografias de polícias norte-americanos usando o cassetete contra crianças negras e jovens pacíficos. Ao mesmo tempo, ao lado destes artigos aparecia a pontual e quase diária crónica da missão de “pacificação” desenvolvida pelas tropas portuguesas nas colónias africanas.
Com efeito, n De facto, nos Estados Unidos o movimento pelos direitos civis foi desde a metade dos anos 1950 o principal protagonista do conflito social (McAdam 1982). A partir daí, outros movimentos se difundiram, como o estudantil, o feminista, o homossexual, o ambientalista, o hippie. Todos estes movimentos tinham profundas continuidades entre si e estavam também ligados a mobilizações e processos políticos internacionais. É suficiente pensar, por exemplo, nas intersecções ideológicas, e por vezes até materiais, entre o movimento pelos direitos civis – com o seu enfoque na emancipação dos cidadãos afrodescendentes nos EUA – e o desenvolvimento dos movimentos de libertação em África. Ao mesmo tempo, é impossível dissociar estas dinâmicas de evoluções contemporâneas na história das ideias e do pensamento, com o surgimento e desenvolvimento dos estudos pós-coloniais, dos estudos culturais, ou do pós-estruturalismo.
Já na Europa, movimentos antiautoritários – sobretudo estudantis – alastraram em vários países, democráticos ou não, assumindo ao mesmo tempo idiossincrasias locais e continuidades transnacionais. A história recente de cada país, e os respetivos processos políticos e sociais, interagiram com clivagens de escala mundial. Na Alemanha e na Itália, países recentemente saídos dos regimes nazista e fascista, as continuidades autoritárias a nível institucional, educacional, social e civil foram alvo de crítica dos movimentos estudantis. A violenta repressão policial nos dois países contribuiu para consolidar a perceção destas continuidades, numa escalada de violência política que redundou no alastrar do terrorismo nos anos 1970 e 1980 (della Porta e Reiter 1997). Na Alemanha, estas dinâmicas foram acompanhadas pelo surgimento de outros eixos de mobilização, sobretudo ecologista e pacifista. Na Itália, o antiautoritarismo político e social, juntamente com a valorização da luta operária, caracterizou o conflito nas suas mais diversas declinações, influenciando , sobretudo a partir dos anos 1970, o ressurgimento do movimento feminista e o nascimento de uma cultura de contrainformação. O Maio de 68 tornou-se emblema deste período. Entretanto, o movimento estudantil na capital francesa foi apenas uma pequena parte da excecional vaga de mobilizações que atravessou o país desde os finais dos anos 1960: como demonstra Erik Neveu (2016), o ‘maio francês’ foi sobretudo um movimento operário, e um dos períodos com a maior concentração de greves na história francesa.
Na Europa de Leste, revoltas estudantis e operárias fizeram-se sentir na Hungria, na Polónia, na Checoslováquia, no contexto dos abalos provocados pelas críticas ao estalinismo tornadas públicas pelo novo secretário-geral do PCUS, Nikita Khrushchev. Violentamente reprimidas pelas forças soviéticas, estas mobilizações deixaram significativos legados para os futuros processos de democratização destes países. Frente a estas fraturas no mundo comunista, as esquerdas ocidentais dividiram-se, com a proliferação de declinações do marxismo e a emergência de novas inspirações internacionais (como a China maoísta, a Albânia, Cuba, o Guevarismo). A assim chamada ‘nova esquerda’ – encarnada quer em movimentos, grupos e partidos, quer em reflexões ideológicas e políticas – difundiu-se no mundo ocidental, em diálogo com as temáticas emergentes, sobretudo os direitos de género e das minorias, as questões ambientais, a libertação cultural e de costumes. Os efeitos no mundo das artes e da música foram também significativos: no cinema, por exemplo, o papel do neorrealismo enquanto cânone de referência da esquerda marxista internacional deu lugar a outras experiências e sobretudo à nouvelle vague, fortemente inspirada pelo existencialismo.
Estas dinâmicas, como já sugerimos, chegaram também a Portugal. Mas a multiplicação dos eixos de conflito no país e a ligação entre eles torna necessário adotar uma definição que reconheça a sua novidade. Algumas das especificidades do país tornam difícil o enquadramento destes fenómenos, a não ser de maneira parcial, como “novos movimentos sociais”. Como sublinhado, o contexto autoritário catalisou o conteúdo mais político dos protestos, ao mesmo tempo que o desenvolvimento tardio do país em termos económicos e, consequentemente, sociais e culturais fez com que não existissem bases sociais para movimentos pós-materialistas, pelo menos da mesma forma que tal se verificava em países de capitalismo avançado. Por outro lado, o caso de Portugal exemplifica bem a dificuldade de distinguir entre diferentes eixos conflituais, uma vez que as reivindicações políticas não podem ser dissociadas dos aspetos económicos, sociais e culturais. Se isto em grande parte se deve às próprias condições do país, até hoje a evolução dos movimentos mostra que é difícil distinguir entre velhos e novos movimentos sociais, ou entre valores materialistas e pós-materialistas. Por exemplo, em condições de escassez, a questão de género, por exemplo, torna-se mais dramática. Os problemas ambientais têm evidentes implicações materiais, como as consequências das mudanças climáticas hoje nos ensinam. A discriminação das minorias tem profundos efeitos nas suas condições materiais de vida. Condições de trabalho precárias têm consequências sobre a identidades dos jovens e a sua afirmação. Ao procurarmos os “novos movimentos sociais” na história dos conflitos em Portugal, temos de ter em consideração as próprias limitações do conceito e, ao mesmo tempo, as especificidades históricas, políticas, económicas e sociais do país (Accornero e Ramos Pinto 2022). Por outro lado, o caso de Portugal – como outros casos de ‘fronteira’ – ajuda-nos a discutir e testar os conceitos existentes e, por fim, a complexificá-los.
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Description:A palavra polícia conheceu nos últimos dois séculos e meio uma transformação semântica profunda. As mudanças refletiram mutações políticas, culturais e sociais que afetaram as formas como a “polícia” chegou à população e interagiu com esta. De um conceito que tendia a designar toda a administração de um território, dos recursos nele contidos e da sua população, passou ao longo do século XIX a associar-se a instituições, comummente públicas, encarregadas de vigiar e manter a ordem e a segurança pública. Tratou-se de um processo amplo, a nível europeu e global, não sendo por isso possível compreender as mudanças na esfera policial em Portugal sem considerar movimentos de circulação transnacional de ideias, a expansão imperial e a formação de regimes coloniais, bem como a internacionalização de questões criminais e o impacto de movimentos internacionalistas.
Nas últimas décadas do século XVIII, a centralização dos poderes do Estado Absolutista levou à criação, em 1760, do lugar de Intendente Geral de Polícia do Reino, que progressivamente se transformou numa instituição estatal, a Intendência Geral de Polícia (IGP), encarregada de uma miríade de funções, da justiça criminal à educação, passando pela administração urbana, pelo controlo das populações e pela vigilância política. O debate político, legal e até filosófico de teorização do “Estado de Polícia” desenvolveu-se a partir das visões que defendiam mais poderes para os monarcas absolutos e o enfraquecimento dos poderes periféricos. Inserida neste contexto, a Intendência representou um maior controlo do espaço urbano e foi um instrumento político de controlo das dissidências políticas, especialmente após a Revolução Francesa, mas veio sobretudo concretizar a monopolização, nas mãos do Intendente, de funções administrativas e judiciais e de intervenção central no quotidiano do crime e da ordem pública. A criação, em 1801, da Guarda Real de Polícia (GRP), uma força militar destinada exclusivamente à esfera policial, ajudou a colocar polícia e população cara a cara de forma muito mais rotineira. Transferidas e recriadas no Rio de Janeiro em 1808, a IGP e a GRP foram ainda exemplos precoces de uma circulação policial que iria intensificar-se nos séculos seguintes.
As Revoluções Liberais que percorreram a Europa e as Américas nas primeiras décadas do século XIX levaram a repensar a polícia. Se a necessidade de extinguir a “despótica” Intendência e as instituições policiais do Antigo Regime era consensual entre os liberais portugueses, o que deveria substitui-las era matéria de acesa disputa e traduziu-se num debate de ideias que era parte de um movimento transnacional mais amplo. A implantação da Monarquia Constitucional, em 1834, traduziu-se assim no primeiro momento de reforma policial moderna, pensando-se em políticas públicas a implementar por um estado-nação soberano. Inspirada pelos exemplos que observaram in loco durante o exílio político da elite política liberal, especialmente em Inglaterra ou França, a criação em 1835 das guardas municipais, no Porto e em Lisboa, foi o marco mais significativo deste movimento. Estas instituições tomavam o nome de forças policiais congéneres francesas, mas – controladas pelo poder civil, compostas de homens assalariados para fazerem carreira na polícia e visíveis a toda a população pelas fardas que se distinguiam dos militares e dos não-uniformizados “espiões” – o modelo que seguiam era o da Metropolitan Police, estabelecida em Londres em 1829 e que era nesta altura o exemplo por muitos emulado na esfera do policiamento urbano. A polícia seria agora um braço administrativo do Estado, responsável por trazer os suspeitos de infringirem as leis criminais e civis até outro poder, o judicial, para serem julgados. Já o papel do Estado na gestão do quotidiano urbano era afirmado de forma mais intensa: a segurança não seria mais um resultado da autorregulação da comunidade, mas um serviço provido pelo Estado aos cidadãos. A instabilidade política vivida em Portugal nos anos seguintes impediu, contudo, a consolidação de um modelo liberal de polícia, com a subsequente militarização das guardas municipais, que as tornou praticamente indistinguíveis da anterior GRP.
Quando, no início da década de 1850, a Regeneração estabilizou a Monarquia Constitucional, o repensar liberal da polícia permanecia mais na esfera do debate de ideias do que no da implementação de políticas públicas ou do quotidiano das interações com a população. Por isso, nos anos 1850 e no início da década de 1860, na imprensa, no parlamento e em debates mais especializados entre militares ou juristas, foram aumentando as vozes que clamavam pela reforma das instituições policiais. Nos campos, faltavam polícias; nas cidades, os polícias eram demasiado incivilizados para as classes médias que cada vez mais socializavam nos espaços públicos. Foi assim sob a égide do chamado Governo da Fusão, que juntava no poder Regeneradores e Históricos, com Martens Ferrão na pasta do Reino e Barjona de Freitas na pasta da Justiça, que em 1866 e 1867 foi preparado um extenso plano de reforma das instituições policiais e de todo o sistema de justiça criminal do país. Em Lisboa e Porto, o policiamento urbano passaria a ser efetuado por novas instituições, as polícias civis, que seguiriam o modelo original das guardas municipais, seriam financiadas pelo orçamento geral do Estado e tuteladas diretamente pelo Ministério do Reino. Nos restantes distritos, seriam criadas instituições semelhantes, financiadas pelas juntas gerais de distrito e tuteladas pelos governadores civis. Em janeiro de 1868, os novos polícias civis de Lisboa e Porto, distribuídos em esquadras, passaram a patrulhar vinte e quatro horas por dia as ruas das cidades. Nos restantes distritos, fruto dos conflitos entre o governo central e as elites distritais, o processo foi mais lento, mas até ao final do século todos os distritos do país ganharam a sua própria força de polícia civil. Fora das cidades, Martens Ferrão bebeu no exemplo da Gendarmerie Francesa, uma força nacional organicamente militar, mas com operações dirigidas pela autoridade civil, encarregada de vigiar todo o território.
Na primeira metade do século XIX, o exemplo francês tinha-se espalhado por toda a Europa continental, traduzido em instituições como os Carabinieri italianos ou a Guardia Civil em Espanha. Portugal constituía uma exceção numa Europa que estruturava os seus sistemas policiais sob o binómio civil-urbano, militar-rural. Ao propor uma Guarda Civil nacional, Martens almejava colocar o país a par do panorama policial europeu. As reformas propostas pelo governo ao parlamento em 1867 eram abrangentes, afetando todo o sistema de justiça criminal. Nos mesmos dias em que a polícia civil passava no parlamento, foram também aprovadas a lei que estabelecia o sistema penitenciário, a abolição da pena de morte e o julgamento de portugueses que cometessem crimes no estrangeiro. As reformas fiscais e administrativas que o mesmo governo propôs conduziram a um amplo movimento de protesto no país e à chamada Janeirinha, que em janeiro de 1868 resultou na queda do governo. Entre as propostas que caíram com o governo, estava a da Guarda Civil.
Até à década final do século XIX, as reformas policiais eram sobretudo processos políticos de cima para baixo: as instituições e as lógicas de atuação policial eram pensadas e reformadas mais em consequência dos debates políticos entre elites políticas do que de pressões sociais vindas de baixo. No final do século, contudo, a situação alterou-se. A partir da década de 1880, Lisboa e o Porto começaram a crescer e a tornar-se mais heterogéneas. O incremento das mobilidades atlânticas, que tinham especial impacto nas cidades portuárias portuguesas, traduziu-se em novos desafios para a polícia. A perceção do aumento da criminalidade, uma criminalidade em linha com os padrões da modernidade – ascensão dos crimes de propriedade em relação à violência interpessoal – começou a pautar as preocupações das classes médias urbanas. A expansão da imprensa e de uma esfera pública de massas tornou a polícia um alvo frequente de críticas, e assim eram cada vez mais audíveis as vozes que clamavam pela sua reforma, incluindo-se nelas atores até aí ausentes do debate: os próprios polícias. Em agosto de 1893, o governo chefiado por Hintze Ribeiro, com João Franco como Ministro do Reino, implementou uma reforma profunda, cujos efeitos iriam durar até ao advento do Estado Novo. Os serviços policiais foram então divididos em três divisões, que iriam consolidar-se institucionalmente nas décadas seguintes. O policiamento das ruas por guardas fardados ficava entregue à Segurança Pública, enquanto a fiscalização de uma miríade de pequenos elementos do quotidiano urbano – pesos e medidas, leite, fiscalização do regulamento sobre prostituição – ficava entregue à Polícia Administrativa.
Mais relevante, porque ganharia autonomia institucional em 1902, foi o surgimento da Investigação Criminal. As últimas décadas do século XIX marcaram a ascensão do detetive criminal quase ao nível de celebridade: encontrar os culpados de crimes narrados na imprensa e discutidos nas ruas da cidade passou a ser uma parte essencial do trabalho policial. Para isso, o acesso da investigação criminal a novas técnicas e tecnologias, como a identificação de indivíduos através de impressões digitais, passou a ser um terreno de disputa, com polícias, médicos e juristas a procurarem monopolizar estes novos saberes. Junto da Investigação Criminal foi colocada uma embrionária Polícia Preventiva, encarregada de vigiar os movimentos de protesto político que pontuaram as últimas duas décadas da Monarquia Constitucional.
A implantação da República, em outubro de 1910, encontrou a polícia numa situação contraditória. Nas cidades, tinha conhecido algumas inovações, mas os polícias eram contestados tanto pelos movimentos republicano e anarquista, quanto pelas classes populares, as quais faziam crescer Lisboa e Porto sem grande infraestrutura. Nos campos, no entanto, a ausência de uma gendarmaria nacional continuava a traduzir-se numa fraca capacidade de penetração do Estado central e na concomitante proeminência de poderes periféricos ou privados. Implantada em Lisboa e proclamada pelo telégrafo ao resto do país, a República sentiu que precisava de instrumentos para controlar partes substantivas do território nacional, em que a população poderia ameaçar o novo regime. A criação da Guarda Nacional Republicana, em 1911, sinalizou assim tanto uma política de consolidação do regime, quanto um processo policial de centralização da ação dos poderes públicos e da lei como fontes únicas de regulação social, colocando Portugal a par do que já ocorria na Europa continental. Durante a Primeira República, a GNR conheceu uma história atribulada: a implantação no território nacional foi lenta e, ao contrário do que se poderia esperar, a esmagadora maioria dos recursos foi concentrada em Lisboa, fazendo dela, como muitos argumentaram, uma guarda pretoriana do regime. Em 1919, com o país em guerra civil de facto, o comandante da GNR, Liberato Pinto, chegou a chefiar um dos muitos efémeros governos do período. Por outro lado, a imagem dos “polícias cívicos”, como passaram a ser conhecidos, mostra bem o dilema da polícia durante a Primeira República: implantada com o apoio de um movimento urbano de rua que tinha na luta contra a polícia uma parte essencial da sua legitimidade política, os governos republicanos nunca conseguiram chamar a polícia para si, estabelecendo uma autoridade pública amplamente respeitada. Os polícias eram agentes do Estado, mas eram combatidos ou pelo menos hostilizados por quem os controlava.
Foi numa situação de quase absoluto colapso da autoridade policial que a Ditadura Militar chegou ao poder em 1926. No contexto da ascensão e consolidação de regimes autoritários e fascistas, a história da polícia entre 1926 e 1974 é menos linear do que à partida se esperaria. Até 1935, com a unificação das polícias cívicas sob um comando nacional único, a Polícia de Segurança Pública, as instituições policiais experimentaram constantes mudanças, que traduziam disputas no interior do regime. A Polícia de Investigação Criminal (PIC), por exemplo, transitou várias vezes entre o Ministério do Interior e o da Justiça. Para além da evolução orgânica, é importante também colocar a questão do que a Ditadura trouxe à polícia. O novo regime começou por implementar medidas que recuperassem a imagem do polícia na sociedade portuguesa. Em parte, é essa recuperação “moral” que explica a militarização da PSP, que se juntava assim à GNR. Nos discursos do regime, o velho e incompetente “cívico” foi substituído por um novo, enérgico, saudável e competente polícia do Estado Novo. As únicas forças civis do regime eram a PIC, renomeada de Polícia Judiciária em 1945, e a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), estabelecida em 1933 e renomeada de Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) na mesma altura. Militares ou civis, as polícias eram um dos pilares de um regime que se pretendia forte. A vontade de quem exercia a autoridade, e não os direitos dos cidadãos, constituía o eixo estruturante da ação policial. De facto, o Estado Novo procedeu a uma inversão do papel da polícia na sociedade: de uma lógica liberal, em que a polícia era em teoria encarada como garante dos direitos individuais e como provedora de segurança aos cidadãos, passou-se para uma lógica em que a polícia era vista como um instrumento garantidor da conformidade dos cidadãos aos interesses do Estado nacional.
A instabilidade política e social do entreguerras levou a um crescimento exponencial – especialmente visível nos regimes ditatoriais, mas não exclusivamente nestes – de instrumentos policiais de vigilância e repressão política. Apesar de os instrumentos de vigilância policial de natureza política se terem consolidado desde os anos finais da Monarquia Constitucional, a Ditadura constituiu um momento de acentuado incremento da repressão política, com a PVDE e a PIDE a desempenharem funções de vigilância, mas também de julgamento e de encarceramento de opositores políticos, algo que na prática perdurou até 1974. De facto, apesar das mudanças cosméticas introduzidas após o fim da Segunda Guerra Mundial, as instituições policiais, o perfil e o estatuto profissional dos polícias pouco mudaram nas décadas subsequentes do Estado Novo. A inserção da polícia portuguesa em redes internacionais de policiamento, com a participação da PIDE e do seu diretor histórico, Agostinho Lourenço, na Interpol – onde assumiu o cargo de presidente entre 1956 e 1960 –, mostram um sistema policial incluído e participante no sistema policial internacional. Uma das mudanças mais significativas na polícia portuguesa durante os anos finais do Estado Novo foi a integração entre a polícia metropolitana e a polícia colonial. O reforço do projeto colonial em África, traduzido na intensificação da migração de população branca para as colónias africanas, refletiu-se num correspondente reforço do policiamento branco em África. Na década de 1960 e início da década de 1970, fazer carreira na PSP significava transitar por comandos distritais metropolitanos, mas também por forças de policiamento colonial.
Embora a justiça de transição não tenha levado à barra dos tribunais ou punido a maior parte da violência e dos abusos policiais cometidos pelo regime ditatorial, após o 25 de Abril de 1974 o regime democrático desmantelou com relativa rapidez as estruturas de vigilância e repressão política. A PIDE foi extinta e as funções de vigilância de fronteiras e fiscalização dos estrangeiros foram entregues ao então criado Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. A Polícia Judiciária tomou o lugar da PIDE como representante portuguesa na Interpol. Mais lentas foram as mudanças nas outras instituições policiais e a formulação de políticas de segurança pública condizentes com uma sociedade democrática. Apesar de debatida ao longo das últimas décadas, a unificação das polícias territoriais, PSP e GNR, nunca passou do papel, mantendo-se um sistema dual de polícia modelado do sistema francês e estruturado no século XIX. A desmilitarização da principal força de policiamento urbano do país, a PSP, um processo que acompanha normalmente reformas policiais voltadas para a proteção dos direitos civis, só foi formalizada em meados dos anos 1980, quando a polícia começou a formar os seus próprios oficiais, e só no final da década de 1990 a natureza civil da PSP foi consolidada com a transformação do Comando-Geral em Direção Nacional. Na segunda metade dos anos 1990, assistimos finalmente à formulação e implementação de forma mais sistemática de políticas públicas de segurança pública, adotando modelos de policiamento que vinham sendo discutidos transnacionalmente desde a década de 1970. O policiamento de proximidade, com programas específicos para determinados grupos e lugares, e o enfoque num policiamento como serviço à população, deixando para trás um policiamento que enfatiza a manutenção, quase sempre aparente e circunstancial, da ordem pública, marca ainda hoje em Portugal os debates em torno da polícia.
No início do século XX, alguns polícias começaram a expressar uma voz autónoma para reclamar mais recursos e melhores condições de trabalho, mas também para defender certas técnicas profissionais. No entanto, a instabilidade da Primeira República e a submissão dos interesses policiais aos interesses do Estado durante o Estado Novo impediram a afirmação de um grupo profissional. Assim, só depois da implantação da Democracia é que se desenvolveram movimentos de sindicalização e de profissionalização policial que já se verificavam noutras partes do mundo. Este não foi um processo pacífico ou linear, como o demonstra o episódio dos “Secos e Molhados”, em abril de 1989, quando polícias que protestavam no Terreiro do Paço, em Lisboa, pelo direito de sindicalização na PSP foram reprimidos com canhões de água por unidades de manutenção da ordem pública da própria polícia. O mito do “povo de brandos costumes” é uma das mais consolidadas narrativas definidoras do povo e da nação em Portugal, uma narrativa que tende a subalternizar a necessidade e o papel do polícia na sociedade. A história da polícia no Portugal contemporâneo revela, contudo, um percurso intrinsecamente ligado à história do país e do mundo.
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Praga de gafanhotos (1898) | Praga de gafanhotos (1898) | | |
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Description:Ao longo da História, as interações entre os humanos e os não-humanos – múltiplas, mútuas e continuamente adaptativas – foram marcadas por momentos de perturbação. Descritas desde a Antiguidade Clássica, as pragas de gafanhotos são um dos protagonistas mais conhecidos de tais momentos. Recorrentes, destruidoras, e comuns a quase todas as geografias e períodos históricos, estas pragas estão na origem da própria palavra “calamidade”, a destruição do calam (em latim, caniço ou talo do trigo) que fazia pairar a ameaça da fome sobre as comunidades dependentes da colheita do cereal.
Algumas espécies de gafanhotos beneficiam de circunstâncias ecológicas particulares, associadas ao tipo de coberto vegetal e a determinadas condições climáticas, tendo ciclos reprodutivos particularmente bem-sucedidos e formando, assim, populações numerosas que se mantêm aglomeradas. Esta gregarização é um fenómeno biológico em que se verificam mudanças fisiológicas e morfológicas individuais, articuladas com a alteração de um comportamento solitário e relativamente críptico, desencadeando-se uma fase de maior notoriedade e atração de conspecíficos. Os enxames assim formados atacam vorazmente culturas em crescimento. Em seguida, encetam uma deslocação a partir do seu ponto de origem, num trajeto que pode ter centenas ou milhares de quilómetros, com paragens regulares, e repetidos prejuízos, cruzando, frequentemente, as fronteiras políticas de diversos países.
A história das pragas de gafanhotos enfrenta dois desafios principais: (1) o de abraçar as causas dos eventos, os impactos geograficamente distribuídos e as respostas societais que lhes foram inerentes de forma transnacional; e (2) o reconhecimento do papel dos não-humanos como sujeitos da História. Para a fome generalizada que afetou a Síria e a Palestina nos anos da 1ª Guerra Mundial, por exemplo, terá contribuído, alegadamente, um episódio de gregarização e migração de gafanhotos: no ano que se seguiu a uma invasão de gafanhotos do deserto (Schistocerca gregaria), morreram 100 a 200 mil pessoas de desnutrição ou doenças associadas. Frutas, legumes, forragens e uma pequena, mas não insignificante, quantidade de cereais foram devorados pelos insetos (Foster 2015).
Em Portugal também se testemunharam fenómenos similares. Em 1898, por exemplo, grandes enxames de gafanhotos entraram em território algarvio. Para os agricultores locais não era estranha a chegada esporádica de nuvens de gafanhotos do deserto, as quais, neste território, causavam poucos ou nenhuns danos. Julgaram-nos idênticos e, por isso, ignoraram o fenómeno. Todavia, este era protagonizado por uma outra espécie, o gafanhoto marroquino (Dociostaurus maroccanus) (Gomes et al. 2019).
Na primavera do ano seguinte, os ovos começaram a eclodir e uma nova geração de gafanhotos passou a alimentar-se das culturas e a voar para outros locais. Foi demasiado tarde para evitar a invasão prolongada, que duraria até 1905. Só no distrito de Faro, em 1899, foram apanhadas mil toneladas de gafanhotos. A expansão da praga alcançou onze distritos, o maior número registado até 1947. Os gafanhotos foram descritos como “assustadores”, “legiões inumeráveis e extraordinárias”, “devastando localidades onde pousam, com mais prejuízo, do que o fogo”; “uma verdadeira calamidade para a agricultura e para o tesouro” (Anónimo 1901).
Publicadas na mesma época, as leis protecionistas que pretendiam aumentar a produção de cereais panificáveis terão contribuído para agravar o alarme e obrigar à tomada de medidas pela administração central para mitigar os efeitos dos gafanhotos. Em 1899, estabeleceram-se os “Serviços Contra as Epiphytias”. O Decreto de 23 de dezembro, que os instituiu, foi o primeiro regulamento geral contra as pragas das plantas em Portugal. Apesar de se tratar de um conjunto de disposições genéricas, que podiam ser aplicadas a qualquer praga, assemelhava-se muito à Ley de Extinción de la Langosta, publicada em Espanha vinte anos antes (Buj 1996). Em 1902 – ainda o surto de gafanhotos iniciado em 1898 não tinha sido extinto ¬ –, foi publicado o Regulamento dos Serviços de Extinção dos Acrídios, criando-se um serviço exclusivamente dedicado aos gafanhotos.
Os regulamentos para controlar os surtos destes insetos sugerem um modus operandi semelhante em Portugal e em Espanha, revelando uma história transnacional que inclui os dois países ibéricos. Ambos defendiam a destruição dos ovos dos gafanhotos, lavrando os terrenos onde estes tinham sido postos, e a apanha dos animais à mão ou com redes ou armadilhas, destruindo-os posteriormente. No entanto, os relatórios das autoridades portuguesas, bem como as descrições feitas nos jornais da época – tal como O Bejense, O Comércio da Guarda ou O Distrito de Faro, entre outros – das ações levadas a cabo para controlar as populações de acrídios, não reconheciam essas semelhanças, e exigiam articulação, colaboração ou cooperação entre os governos para pôr em marcha um programa comum de combate aos surtos. A luta contra os gafanhotos deveria ser uma tarefa transnacional, baseada numa ação conjunta, coerente e coordenada ao nível de métodos e esforços.
Ainda assim, um ofício atesta uma pontual cooperação ibérica. Em 1900, Portugal tinha recebido uma amostra de um fungo (Empusa acridii), do Instituto de Grahamstown, da Colónia do Cabo. Era uma tentativa pioneira de usar a luta biológica para controlar o flagelo. Esperava-se que o patógeno se espalhasse na população de gafanhotos, causando-lhes a morte (Pestana 1901). A amostra foi partilhada com Espanha, com a justificação de que a maioria das invasões em território nacional provinha do país vizinho.
Pode supor-se que o momento histórico, marcado por rivalidades entre Portugal e Espanha a par com o crescimento do iberismo, possa ter criado dificuldades de colaboração entre instituições congéneres. Todavia, os gafanhotos vieram lembrar que as fronteiras políticas não separam uma unidade geográfica ou ecológica, e não eram por isso capazes de impedir a circulação dos insetos. Para a extinção dos acrídios, “não [havia] ninguém que não [visse] com bons olhos, n’esse sentido, a união ibérica” (Mastbaum 1901: 117).
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Primeira Proclamação da Independência de Timor-Leste (1975) | Primeira Proclamação da Independência de Timor-Leste (1975) | | |
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Description:Seguindo os preceitos definidos na Conferência de Berlim, que haveriam de moldar as relações entre a Europa e as suas dependências até à segunda metade do século XX, o Terceiro Império colonial português foi um complexo histórico-geográfico centrado em África, com um lugar marginal – embora simbolicamente poderoso – reservado às possessões asiáticas. Quando a Revolução dos Cravos colocou na ordem do dia o processo de descolonização – o mais tardio entre as potências europeias – já a União Indiana havia resolvido de facto a questão do “Estado Português da Índia”, situação prontamente reconhecida ainda em 1974, e a República Popular da China, que desde 1966 detinha um controle informal mas substancial sobre Macau, havia diligenciado junto da ONU para retirar esse território da lista de entidades “não autónomas sob administração portuguesa” (Resolução 1542 (XV) da Assembleia Geral, Dezembro 1960) e fazer o seu registo como “território chinês sob administração portuguesa”, situação singular a requerer solução diferenciada. Da lista de territórios asiáticos a descolonizar por Portugal, restava Timor.
Reocupado pela potência colonial europeia quando o fim da Guerra do Pacífico ditou a retirada do Japão, e apesar da afirmação do Ministro das Colónias Marcello Caetano que Portugal voltava como “amigo rico”, o “Timor Português” não participou no processo de “desenvolvimento repressivo” (Bandeira Jerónimo 2023) que, no pós-II Guerra Mundial, tocou Angola e Moçambique. Em 1974, continuava a ser “uma colónia sem colonos”, como lhe chamara, na década de 1930, o capitão Armando Pinto Corrêa, então administrador do território.
Tal como os outros dois domínios asiáticos portugueses, Timor era um pequeno território – 15 mil km2, com pouco mais de meio milhão de habitantes – rodeado por um enorme vizinho. A Indonésia é uma potência regional composta por um vasto arquipélago, com cerca de 17 mil ilhas e, na altura, mais de 150 milhões de habitantes, que tinha além disso ambições territoriais associadas a uma retórica anticolonial. Timor apresentava outro significativo contraste com as colónias africanas: à data da revolução portuguesa, não possuía nenhum movimento nacionalista significativo (a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas nunca teve um membro timorense), nem era palco de guerra. A articulação entre as entidades que integravam a CONCP e actores fortes, quer da então Oposição Democrática portuguesa, quer da arena internacional, estava também ausente no caso que estamos a tratar, com excepção da relação que viria a desenvolver-se, alguns meses mais tarde, entre a Indonésia e movimentos locais. Por isso, o processo de autodeterminação do “Timor Português” não recebeu honras de prioridade, tardando a definir os seus contornos.
Quem não demorou em se manifestar foi a Indonésia. Ainda antes de o general Spínola tomar posse como Presidente da República, e da nomeação do I Governo Provisório do pós-25 de Abril, desembarcou em Lisboa um diplomata e político de primeira linha (Franciscus Xaverius “Frans” Seda) com uma mensagem de Suharto. A Indonésia felicitava Portugal pela decisão de encetar a descolonização, e admitia duas soluções para o caso do “Timor Português”: ou a continuação da soberania portuguesa num novo quadro institucional, ou a integração dessa colónia na nação vizinha. Argumentando com “necessidades de segurança”, afastava a hipótese da independência. Esta não era uma posição consensual entre a elite de Jacarta, uma vez que algumas personalidades defendiam um alinhamento estratégico com a agenda descolonizadora do Movimento dos Não Alinhados, cuja origem remonta à Conferência de Bandung em 1955, iniciativa estruturante do posicionamento indonésio. Segundo estas vozes, tal alinhamento poderia sair debilitado caso a solução encontrada para Timor não fosse clara, ou derivasse do uso da força. O então Ministro dos Negócios Estrangeiros indonésio, Adam Malik, dirigiu em Junho de 1974 uma carta ao timorense José Ramos-Horta em que afirmava reconhecer a todos os povos o direito à independência, não havendo razões para excluir Timor desse direito. Sabemos hoje que as várias facções do poder político e militar em Jacarta foram jogando as suas cartas, incluindo o lançamento de uma operação secreta de desestabilização (Operasi Komodo), sob o comando de Ali Murtopo, general próximo do presidente Suharto e membro do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, influente think tank com uma forte componente de católicos indonésios. Suharto reservou para si a arbitragem dessas manobras. até se decidir por uma das partes e lançar a Operasi Seroja, que levaria à intervenção militar (Durand & Dovert 2016). A Indonésia apareceu, pois, desde o início, como um elemento crítico na descolonização de Timor, exigindo a Portugal a definição de uma resposta à sua posição, suportada num poderio militar tão forte que era impossível tanto de ignorar como de enfrentar.
Em Timor, o mês de Maio de 1974 viu nascer três organizações, cada uma delas representando uma versão distinta do nacionalismo político. A União Democrática Timorense (UDT) começou por defender a manutenção do território num quadro de autonomia no seio de um Portugal federal, fazendo eco da posição veiculada por Spínola em Portugal e o Futuro. Depois da derrota desta tese, com a demissão do Presidente da República português, a UDT inclinou-se para uma independência a prazo, vindo mais tarde, em Agosto de 1975, a abraçar a defesa da integração na Indonésia. Essa era, desde o início, a linha estratégica da Associação Popular Democrática de Timor (APODETI), formada em finais de Maio de 1974. Portugal garantiu a legitimidade deste movimento, a possibilidade de ser apoiado abertamente pela Indonésia, e condições de expressão do seu ideário idênticas aos demais. Em 20 de Maio de 1974 surge também a Associação Social-Democrática Timorense (ASDT), que defendia uma independência negociada. Em Setembro, este grupo viria a redenominar-se Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN), radicalizando a sua linha política, sob a influência do retorno de Lisboa de um grupo de estudantes ligados à extrema-esquerda. O quadro das forças políticas sofreria ainda alguns ajustes, com o nascimento do Partido Trabalhista, do “monárquico” KOTA e de um efémero grupo que era partidário da integração na Austrália (prontamente desautorizado por todo o espectro político desse país). As três primeiras forças corporizavam as principais opções estratégicas alternativas. Qualquer uma delas apresentava uma solução compatível com o quadro desenhado pela ONU para a descolonização, nomeadamente pela Resolução 1541(XV) da AG (Dezembro de 1960).
Contrariamente ao que se passava nas colónias africanas, onde havia uma quase perfeita coincidência entre nacionalismo e independentismo, a situação em Timor assemelhava-se à dos outros territórios portugueses na Ásia, onde a restauração de uma alegada unidade pré-colonial, por via da integração em nações que haviam sacudido o jugo colonial (Índia) ou realizado uma revolução anticapitalista e antiocidental (China), apresentava credenciais nacionalistas e anticoloniais.
Como já se disse, Portugal tardou em definir um quadro de referência para a situação de Timor. Em princípio, a Lei 7/74, que definiu os contornos da descolonização, deveria aplicar-se também a esse território. Mas sucederam-se declarações de responsáveis políticos que colocavam o processo em termos específicos, que ora o dilatavam no tempo, ora assumiam que ele deveria seguir uma via própria. Em Outubro de 1974, depois de proferir declarações em Lisboa sobre a inviabilidade a curto prazo da independência de Timor, mas sublinhando também o encargo resultante para Portugal de manter aquela colónia – que impactaram negativamente na opinião das associações políticas timorenses –, Almeida Santos deslocou-se a Timor e constatou ser impossível travar o processo de descolonização em pé de igualdade com as restantes colónias. Em Novembro, o coronel Mário Lemos Pires foi nomeado novo governador e encarregado de diligenciar, junto das forças políticas mais implantadas no terreno, os termos de um roteiro para a descolonização. Seguiram-se intensas conversações entre Díli e Lisboa, de que a parte portuguesa dava também conta a delegações indonésias. A Indonésia insistia no que pode ser chamado de “descolonização sem autodeterminação”, isto é, numa negociação directa com Portugal, com exclusão de qualquer consulta ou envolvimento dos timorenses. Embora mostrando abertura para a continuação dos contactos, Portugal ripostou insistindo que a última palavra teria de ser dada às populações locais.
Na sequência de diversas iniciativas de contacto e diálogo com a UDT, a APODETI e a FRETILIN, que ocuparam boa parte da primeira metade de 1975 e nas quais se trabalhou num roteiro desenhado por Almeida Santos, Portugal convocou a Cimeira de Macau (realizada a 25 e 26 de Junho), com o intuito de levar essas três entidades a assinar um acordo global de descolonização. A UDT e a APODETI compareceram, discutiram, obtiveram resposta a pequenos ajustes que propuseram, e assinaram uma declaração de concordância; a FRETILIN decidiu não comparecer, sem, porém, mostrar, em momento algum, uma atitude de antagonismo em relação à solução que estava em cima da mesa. Neste quadro, Portugal promulgou a Lei de Descolonização de Timor (Lei 7/75, de 17 de Julho), que previa a constituição de uma autoridade transitória, composta por um Alto-Comissário coadjuvado por dois secretários portugueses e por um representante de cada movimento nacionalista. Previa-se também que fosse formada, no terceiro domingo de Outubro de 1976, uma Assembleia Constituinte, “por meio de eleição directa, secreta e universal com inteiro acatamento dos princípios inscritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem”, estabelecendo-se o compromisso de acatar a deliberação dessa Assembleia, que disporia de um prazo de dois anos para concluir os seus trabalhos. Trata-se de uma solução parecida com a que fora desenhada para Cabo Verde e para São Tomé e Príncipe, desta feita alargada aos três movimentos que Portugal reconhecia como legítimos representantes do povo timorense (na senda do que sucedia em Angola com o MPLA, a FNLA e a UNITA, todos subscritores dos Acordos de Alvor), mas com prazos mais alargados.
O tempo e as manobras desestabilizadoras de sectores relevantes da elite indonésia viriam a conspirar contra esta solução, que tinha como ponto forte seguir o estipulado nas resoluções relevantes da ONU e nas proclamações dos respetivos comités dedicados ao tema. Não dispondo de capacidade bélica para se opor a eventuais tentativas indonésias de subverter o processo, restava a Portugal desenhar uma solução com base no direito internacional. Qualquer tentativa indonésia para interferir ou desvirtuar o sentido imprimido por este modelo deveria conduzir esse país ao isolamento diplomático – como Portugal experimentara durante duas décadas – e ao seu enfraquecimento junto dos parceiros de luta anticolonial.
No entanto, na noite de 10 para 11 de Agosto de 1975, em Díli, tudo se precipitou. A UDT levou a cabo um golpe de estado, sob o nome de Movimento Anti-Comunista (na tentativa de articular sectores que escapavam ao seu controlo direto), e denunciou o quadro desenhado pela Lei 7/75. O objectivo do golpe era confuso, mas foi o suficiente para quebrar o quadro de referência em vigor. O governador, não querendo antagonizar o movimento político que entendia ter melhores relações com Portugal, optou por não ripostar, mesmo se dispunha de força suficiente (cerca de 70 paraquedistas) para o fazer; em vez disso, procurou – sem êxito – a interlocução. Perante a ameaça a que ficou submetida, a FRETILIN proclamou uma “insurreição popular” e, apoiando-se num número elevado de militares timorenses do exército português, constituiu, a 20 de Agosto, as Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste (FALINTIL). Começou assim uma breve, mas sangrenta guerra civil, e com ela o espectro de que a solução militar pudesse vir a sobrepor-se aos esforços para encontrar uma saída política para a descolonização do território.
Esse espectro tinha outra face: uma intervenção indonésia, a pretexto da inexistência de condições mínimas de estabilidade e segurança. Sem forças militares em número suficiente para o impedir, Portugal procurou a via diplomática. O Presidente da República, Costa Gomes, encarregou Almeida Santos de diligências em Nova Iorque, Jacarta, Camberra e Ataúro, um ilhéu próximo de Díli onde o governador português de Timor se refugiara. A hipótese de constituir uma força internacional de interposição, sob comando da ONU, com uma missão humanitária e transitória, não recebeu à época o apoio de ninguém.
No início de Setembro de 1975, a guerra terminou, com a vitória da FRETILIN, que passou a dominar o território, com excepção da fronteira oeste, onde prosseguiam escaramuças com os indonésios. Portugal lançou sucessivos e veementes apelos a novas negociações, no quadro da Lei 7/75, que admitia poder ser pontualmente revista.
De Díli, a FRETILIN reivindicava o regresso do governador (para responder aos argumentos indonésios de que Portugal havia abandonado as suas responsabilidades), mas exigia ser reconhecida como “único e legítimo representante” do povo timorense, não autorizando a presença da UDT ou da APODETI, que Portugal continuava a ver como movimentos com legítimas pretensões a participar no processo previsto pela Lei 7/75. Para a FRETILIN, o único ponto a discutir com Portugal era a negociação – bilateral – da “independência total e imediata”. Tirando uma hesitação, ao tempo do V Governo Provisório, quando se encarou tal hipótese (argumentando que o cenário da descolonização africana parecia ter-se imposto também em Timor), as autoridades portuguesas recusaram-se sempre a aceitar tais exigências, certas de que tal redundaria, inevitavelmente, numa intervenção indonésia, sem que o direito internacional desse cobertura à posição de Timor-Leste.
O outono europeu assistiu ao arrastar de infrutíferas tentativas de marcar rondas de negociação com os três movimentos, admitindo-se que pudessem acontecer em separado. No início de Novembro, Melo Antunes reúne em Roma, pela última vez, com o seu homólogo indonésio Adam Malik, sem que o encontro resultasse em qualquer avanço, para além da reafirmação de posições já conhecidas. Num último esforço, o Ministro dos Negócios Estrangeiros português vai ainda a Nova Iorque discursar na ONU, apelando ao retomar de conversações com os nacionalistas timorenses.
No dia 28 de Novembro, a FRETILIN proclama unilateralmente a independência da República Democrática de Timor-Leste. Portugal recusa-se a reconhecer o fait accompli. Praticamente nenhum país reconhece a nova república – facto curioso, que sinaliza o relativo isolamento deste caso em relação ao confronto entre blocos antagónicos a que chamamos Guerra Fria. Mas a Indonésia reage como esperado: a 7 de Dezembro, lança um ataque com forças aerotransportadas, meios anfíbios e corpos terrestres. É apoiada internacionalmente pelos EUA (Simpson 2005), pela Austrália (Job 2021) e por vários vizinhos da ASEAN, sem que o campo oposto seja capaz de mobilizar qualquer contestação. Como disse José Ramos-Horta (1996) na sua alocução por ocasião da atribuição do Prémio Nobel da Paz, Timor-Leste não passou de uma nota de rodapé na saga da Guerra Fria.
Gabando-se de que iriam tomar o pequeno-almoço em Batugadé (na fronteira oeste), almoçar em Díli e jantar em Lospalos (na ponta leste), os indonésios viriam, no entanto, a enganar-se: a ocupação demorou muito mais tempo do que o previsto, enfrentando uma tenaz oposição popular.
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