Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do Movimento das Forças Armadas | Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do Movimento das Forças Armadas | | |
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Description:
As Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do Movimento das Forças Armadas (MFA) foram uma das iniciativas mais singulares que ocorreram na conjuntura revolucionária do 25 de Abril de 1974. Foram organizadas pela Comissão Dinamizadora Central (CODICE), estrutura da 5.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA), em colaboração com alguns organismos do Estado, nomeadamente a Direcção-Geral da Cultura Popular e Espectáculos, aliando diferentes sectores da sociedade portuguesa em torno de um novo projecto político.
A sua formalização ocorreu no dia 25 de Outubro de 1974, através de uma conferência de imprensa realizada no Palácio Foz, em Lisboa, no âmbito da qual foi apresentado o Programa de Dinamização Cultural e Esclarecimento Político, documento que clarificou os principais objectivos: “preencher o vácuo cultural e de informação política existente em todo o país, com maior incidência em certas zonas” (Correia et al. s/d: 21); a “luta anti-fascista”; o “esclarecimento do Programa do MFA”; e a criação de uma abrangente “rede cultural” em todo o país, através de uma descentralização cultural. Deste modo, a dinamização cultural tornou evidente a viragem cultural da como demonstraram Fishman & Lizardo (2013), no âmbito do processo mais vasto de aprendizagem da prática democrática (Fishman 2019).
As Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do MFA resultaram de uma pluralidade de experiências individuais e colectivas, que configuraram diferentes modelos inspiradores (ver Almeida 2019). Foram reformuladas ao longo da sua vigência, de acordo com o conhecimento das realidades que procuraram transformar, e em função também do rumo da revolução. As campanhas não apenas reflectiram a experiência da Guerra Colonial, especialmente da acção psico-social realizada pelos militares portugueses, mas também foram inspiradas por modelos internacionais, que incluíram desde os projetos pedagógicos de Paulo Freire até à experiência da revolução cubana, em particular as brigadas de alfabetização e os Comités de Defesa da Revolução (Sánchez Cervelló 1996: 263-264).
Prevendo o Programa de Dinamização Cultural e Esclarecimento Político uma actuação em todo o território, através do trabalho de equipas constituídas por militares e civis, as Campanhas actuaram privilegiadamente nas zonas rurais do norte e centro de Portugal. No entanto, desde o início, foi perceptível uma preocupação transnacional reflectida na deslocação de equipas para os países de acolhimento da emigração portuguesa na Europa (França, Alemanha, Bélgica Luxemburgo, Holanda, Inglaterra e Suíça), colaborando a CODICE, em alguns casos, com a Secretaria de Estado da Emigração.
De acordo com o Livro Branco da 5ª Divisão 1974-1975 (1984), entre 1974 e 1975 foi realizado um total de 10 mil sessões de esclarecimento. As Campanhas percorreram as populações rurais do interior norte e centro, intervindo em campos tão diversificados como o das infra-estruturas, da medicina, da veterinária, da agricultura ou do desporto. Foram construídos acessos, edificados recintos desportivos, promoveu-se o saneamento básico e a electrificação, e prestaram-se consultas médicas gratuitas. A par destas acções, a dinamização cultural integrou áreas como o teatro, as artes plásticas, o cinema, a dança, a música e o circo, coordenadas pelo sector cultural da CODICE. Neste âmbito, as áreas do teatro e das artes visuais tiveram uma actividade muito expressiva. Para os artistas que aderiram à proposta do MFA, as Campanhas foram um laboratório para a experimentação de novas relações com os públicos, contrariando uma arte apartada do real (Almeida, 2024).
Até 11 de Março de 1975, a Dinamização Cultural obedeceu a um modelo itinerante, em que as equipas procediam ao diagnóstico das principais necessidades das populações. O modo privilegiado de actuação eram sessões de esclarecimento que integravam a representação de uma peça de teatro, um concerto, ou a projecção de um filme. Neste modelo itinerante, foram realizadas as acções no distrito da Guarda (de 25 de Novembro de 1974 a 7 de Dezembro de 1974) e nas regiões de Bragança, Vila Real, Lamego e Viseu, numa campanha que assumiu a designação de “Operação Nortada” (de 6 de Janeiro de 1975 a 21 de Janeiro de 1975).
No mês de Janeiro de 1975 têm início duas outras campanhas: a primeira, entre 24 de Janeiro e 2 de Fevereiro, tem como destino o distrito de Castelo Branco; a segunda, denominada “Operação Verdade”, foi realizada no Alto Minho, de 31 de Janeiro a 9 de Fevereiro. Durante o mês de Fevereiro, a CODICE e as suas estruturas regionais e distritais continuam a promover sessões de esclarecimento em todo o país, nas quais se destacam a “Operação Alvorada”, nos concelhos de Ponte de Lima, Caminha, Vila Nova de Cerveira e Paredes de Coura, e a “Operação Povo Culto”, nos concelhos de Tavira, Castro Marim e Alcoutim.
No primeiro dia de Março de 1975, inicia-se a “Acção Atlântida”, no arquipélago dos Açores. Com duração prevista até dia 17, viria a ser suspensa devido aos acontecimentos do 11 de Março. A última campanha a ser realizada sob égide do modelo itinerante foi a “Operação Cávado”, que se propôs percorrer o concelho de Barcelos entre os dias 10 e 16 de Março.
A partir da “Operação Nortada”, o modelo itinerante e a tipologia de actuação são reavaliados. O 11 de Março de 1975 viria a desencadear a reestruturação das Campanhas de Dinamização Cultural, às quais é acrescentada uma nova dimensão: a Acção Cívica. No testemunho e na análise de Correia et al. (s/d), esta nova etapa baseia-se na experiência das acções anteriores, fazendo-se agora a apologia das campanhas de longa permanência, caracterizadas pela fixação de meios técnicos e culturais, dotando-se a CODICE de mais valências, que ampliam e fortalecem o seu campo de intervenção (ver Almeida 2009).
As campanhas realizadas sob a égide da “acção cívica” desenvolveram-se em várias fases, permanecendo no terreno por períodos mais prolongados. Por exemplo, a acção realizada no distrito de Viseu estará em curso durante um ano (de 20 de Março de 1975 até ao primeiro trimestre de 1976). A campanha “Maio-Nordeste”, realizada no distrito de Bragança, decorrerá durante cinco meses (tem início a 17 de Maio de 1975 e é interrompida em Outubro).
Visando democratizar o mundo rural por meio de iniciativas culturais dedicadas a denunciar o passado repressivo e a promover a participação cívica, as Campanhas enfrentaram fortes reações no norte rural, alimentadas pela Igreja conservadora e pelas elites locais. Na sequência do 25 de Novembro de 1975, a CODICE seria extinta no dia seguinte, embora algumas equipas tenham permanecido no terreno até ao início de 1976.
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Cantigas do Maio | Cantigas do Maio | | |
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Description:Cantigas do Maio é o quinto LP da discografia de José Afonso (1929-1987), originalmente publicado no final de 1971 pela editora Orfeu, de Arnaldo Trindade. Este LP representa uma mudança significativa nas características musicais do repertório em disco de José Afonso, com maior diversidade instrumental comparativamente aos seus trabalhos anteriores e usufruindo mais das potencialidades tecnológicas do estúdio de gravação, graças também ao papel desempenhado por José Mário Branco na direção musical. As características deste disco convergem com a popularização internacional de uma concepção de obra fonográfica distinta da simples captação de uma actuação musical, ideia patente no trabalho de vários músicos identificados com os estilos do pop-rock anglo-americano na segunda metade da década de 1960 (como os Beatles, Pink Floyd, entre outros). A maior elaboração sonora das canções de José Afonso, indissociável das próprias práticas de gravação, é igualmente reflexo da crescente importância destes cantores na formulação de novas propostas estéticas, opostas às que consideravam ser veiculadas pelo regime vigente em Portugal e, simultaneamente, em convergência com as novas dinâmicas internacionais da música popular. Juntamente com as primeiras publicações dos músicos José Mário Branco e Sérgio Godinho para a editora Sassetti, a edição de Cantigas do Maio foi frequentemente caracterizada por jornalistas e músicos como um momento pivot na transformação das sonoridades do universo da música popular em Portugal e, em particular, do movimento da “canção de protesto” contra a ditadura.
No início da década de 1960, José Afonso protagonizara uma ruptura com a canção de Coimbra, em cuja tradição se tinha formado como cantor. Desta ruptura, marcada pelo descartar da guitarra portuguesa e pelo enveredar por temáticas de crítica social e política, resultou um repertório de autor, de teor mais marcadamente contestatário, o qual designou de “baladas” (Silva 2021). Canções como Os Vampiros, Menino do Bairro Negro, entre outras, acompanhadas à viola por Rui Pato, constituíram exemplos de um novo repertório, que inspiraria uma vaga de cantores com percurso pautado pela crítica ao regime, em pleno período de Guerra Colonial.
Após permanecer cerca de três anos em Moçambique (1964-1967), onde dá continuidade à sua atividade de professor, José Afonso regressa a Portugal e é pouco depois contratado pela editora Orfeu. Este contrato implicava a gravação e publicação regular de fonogramas, o que lhe garantia a subsistência, após ser impedido de dar aulas. O seu segundo álbum publicado nesta editora, Contos Velhos Rumos Novos (1969), ainda com acompanhamento de Rui Pato à viola, é já marcado por uma maior diversificação instrumental, mesmo que sem extensa preparação prévia. A edição de Contos Velhos Rumos Novos é contemporânea à proliferação de novos cantores inspirados pela obra e pelos percursos de José Afonso e de Adriano Correia de Oliveira, sendo particularmente impactante o surgimento do programa televisivo Zip-Zip enquanto plataforma de exposição mediática de vários destes músicos (incluindo Francisco Fanhais, Manuel Freire, José Jorge Letria, entre outros) (Raposo e Roxo 2010: 1356-1357).
Paralelamente, em França, vários cantores portugueses exilados utilizavam a canção enquanto instrumento de contestação política e de retrato das condições de vida em Portugal e nas comunidades migrantes. O caráter explícito das letras, permitido pelo diferente contexto, e o contacto com o universo artístico francês foram particularmente importantes na obra de cantores como Luís Cília e José Mário Branco, que iniciam em Paris a sua atividade fonográfica. O caso de José Mário Branco é particularmente sintomático de um maior enfoque nas potencialidades da gravação multipista para a construção de novas realidades sonoras no estúdio, aspecto que o aproxima do pop-rock anglo-americano então em voga. Este interesse convergiu com o desejo de José Afonso de diversificar a base instrumental do seu repertório, que até à viragem para a década de 1970 era maioritariamente acompanhado à viola. Para lá do contacto pessoal com José Mário Branco durante este período, para José Afonso foi também importante a proximidade com alguns protagonistas da Música Popular Brasileira (MPB), com destaque para Gilberto Gil e Caetano Veloso, que conheceu em Londres por ocasião da gravação do LP Traz Outro Amigo Também (1970). A discografia de Gil e Caetano estimulou Afonso a investir na reconfiguração do suporte instrumental das suas gravações (Ricardo e Monteiro 1970). O trabalho destes e de outros músicos contribuiu também para a consolidação internacional de vários movimentos da canção de protesto e resistência política, dispersos mas articulados, particularmente na América Latina, nos Estados Unidos e na Península Ibérica. Estes movimentos consagravam frequentemente a valorização das práticas musicais tradicionais enquanto elementos basilares, como aconteceu no caso português.
O desejo de diversificação instrumental motivaria um extenso período de preparação dos arranjos musicais com José Mário Branco, que se tornou responsável pela direção musical das gravações de um novo LP. Para este disco, José Afonso e José Mário Branco contaram com a presença de Carlos Correia (Bóris), guitarrista responsável pela concepção harmónica de várias canções, assim como de outros músicos (Michel Delaporte, Christian Padovan e outros) com quem José Mário Branco já trabalhara na gravação de outros discos dos quais fora diretor musical. O estúdio escolhido foi o Strawberry Studio do Château d’Hérouville, nos arredores de Paris, onde decorreriam também gravações de vários protagonistas britânicos e franceses do rock (Pink Floyd, Elton John, etc.), bem como dos primeiros long play de José Mário Branco e Sérgio Godinho. O carácter de obra fonográfica que cria realidades sonoras próprias à gravação, não se limitando à captação da performance dos músicos, é desde logo evidente na primeira faixa, Senhor Arcanjo. A introdução inclui uma falsa partida e troca de comentários, pretendendo refletir a dinâmica colaborativa do trabalho de estúdio. O papel do diretor musical na reconfiguração do repertório, sobretudo na sua dimensão sonora, é particularmente patente em canções como Grândola, Vila Morena, Maio Maduro Maio e Coro da Primavera. Inicialmente escrita em homenagem à vila alentejana com o mesmo nome, Grândola, Vila Morena evidencia o papel de José Mário Branco na transformação do repertório durante o processo de gravação. Sendo inicialmente uma canção acompanhada à viola, a subsequente tentativa de emulação da sonoridade do cante alentejano e da sua estrutura musical reflecte o interesse destes músicos pelo universo da música tradicional portuguesa – em particular por aquela captada e disseminada por colectores como Michel Giacometti – enquanto inspiração central na configuração de uma nova música popular, distante do que entendiam ser o folclore tipificado promovido pelas instituições do Estado Novo (Madeira, Andrade e Castro 2023). Grândola, Vila Morena seria mais tarde usada como senha para a insurreição militar de 25 de Abril de 1974. Esta evocação dos elementos tradicionais encontra-se igualmente patente em Milho Verde, canção beirã, e no refrão de Cantigas do Maio. A diversidade tímbrica das percussões de Michel Delaporte, assim como a inclusão previamente preparada de teclados e de instrumentos de sopro, marcam uma diferença significativa relativamente ao percurso discográfico anterior de José Afonso. Simultaneamente, as letras do disco refletem o pendor surrealista do cantor e evocam situações do quotidiano e personagens emblemáticas da luta antifascista, caso de Cantar Alentejano, que homenageia Catarina Eufémia, assassinada em 1954 por um tenente da Guarda Nacional Republicana.
A publicação de Cantigas do Maio no final de 1971, simultânea à edição do primeiro LP de José Mário Branco e do primeiro disco de Sérgio Godinho, foi promovida em periódicos como o Mundo da Canção ou o Diário de Lisboa como um momento de renovação das características musicais dos “baladeiros” e do próprio repertório gravado de José Afonso, sendo os seus discos seguintes marcados por uma maior diversidade sonora e instrumental. A combinação do uso das modernas potencialidades tecnológicas do estúdio de gravação com a construção de uma “música popular portuguesa” simultaneamente ancorada nas práticas musicais ruraisanteciparia as experiências levadas a cabo após o 25 de Abril de 1974 por grupos como o Grupo de Acção Cultural (GAC) - Vozes na Luta e a Brigada Victor Jara, entre outros. O renovado estatuto dos cantores de protesto durante o período revolucionário português, e de José Afonso em particular, projectou internacionalmente a canção Grândola, Vila Morena, levando à sua adaptação em diversas línguas e, consequentemente, a várias edições internacionais de Cantigas do Maio (em Espanha, França, Alemanha, Itália, etc.). [show more]
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Centro de Estudos Africanos (CEA) | Centro de Estudos Africanos (CEA) | | |
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Description:Entre os materiais que em 1953 foram apreendidos no âmbito de um inquérito instituído pela PIDE contra três membros da Casa dos Estudantes do Império – Rui Roberto Nuno Guedes da Silva, Hugo Aires Lopes David e Gualter Manuel Rodrigues Soares – há um documento datilografado que se intitula “Plano de trabalhos 1951-1952” (ANTT 1953, fls. 21-24). O plano está dividido em seis secções: I. A terra e o homem; II. Socio-economia africana; III. Pensamento negro; IV. Problemas do ultramar português e da restante África negra; V. O negro no mundo; VI. Problemas centrais para o progresso do mundo negro. Estas, por sua vez, estão organizadas em diversas subcategorias. Da primeira folha consta uma data manuscrita (11-10-51) e o nome ‘Tenreiro’ junto à primeira secção. Na segunda, o plano termina com uma nota que afirma: “Este plano deve ser completo por recensões bibliográficas bem como pela organização de bibliografias dedicadas aos assuntos que se venham a considerar principais. Cada estudo será discutido em regime de seminário e de cada um deles se fará um resumo com um desenvolvimento adequado à matéria versada.”
Embora no documento não haja propriamente uma indicação que o identifique, é possível intuir que se trata do primeiro plano de trabalho do Centro de Estudos Africanos (CEA). O plano é esquemático, mas reflete bem o espírito do Centro e o seu propósito principal: estudar África, refletir sobre uma série de temáticas relacionadas com a sua história, cultura e política, para suprir a falta de conhecimento e de discussão sobre esses temas – e a própria impossibilidade de os discutir – na esfera pública portuguesa da época.
O CEA foi criado em Lisboa em 1951, ano significativo na história do colonialismo português tardio, quando, frente às crescentes pressões da comunidade internacional para a autodeterminação dos povos, se assistiu a uma reforma constitucional que levou à revogação do Acto Colonial de 1930 e à consequente transformação do império português numa nação pluricontinental, e das suas colónias em províncias ultramarinas. Como afirma a historiadora Cláudia Castelo (2013), “a tónica da política ultramarina seria, daí em diante, a assimilação”. É justamente a tomada de consciência da sua condição de colonizados assimilados que leva um grupo de estudantes e intelectuais africanos em Lisboa a interessar-se no pelo estudo de África e a empreender um percurso que, anos mais tarde, Amílcar Cabral, um dos fundadores do CEA, definirá “re-africanização dos espíritos” (Andrade 1976: 8).
Além de Cabral, o núcleo originário do Centro era constituído por Mário Pinto de Andrade, Francisco José Tenreiro, Agostinho Neto, Humberto Machado, Noémia de Sousa, Julieta e Alda do Espírito Santo e Marcelino dos Santos. Porém, muitos outros tomaram parte nas sessões e atividades promovidas pelo CEA, incluindo Vasco Cabral, Tomás de Medeiros, Joaquim Pinto de Andrade – irmão mais velho de Mário – e António Domingues (Medeiros 2015: 38). Oriundos da pequena burguesia negra e mestiça das colónias, eram dos poucos africanos que tinham conseguido deslocar-se até à metrópole para ter acesso ao ensino superior. O convívio regular e duradouro que estabeleceram após chegar ao coração do império – e as discussões e trocas que daí surgiram – foi fundamental para desenvolverem uma perceção da sua identidade e da sua diferença em relação à cultura portuguesa que lhes era imposta. Cedo se deram conta de que, embora tivessem atingido os mais altos níveis de educação (Francisco José Tenreiro, por exemplo, era assistente na Faculdade de Geografia da Universidade de Lisboa), pouco sabiam sobre as suas terras, pois os assuntos relacionados com África estavam completamente ausentes dos curricula portugueses. Como afirma Mário Pinto de Andrade, tinham a vivência da África, mas nunca tinham tido a possibilidade de refletir sobre a própria cultura: era, pois, necessário “dar a conhecer, conhecermo-nos a nós próprios” (Laban 1997: 71).
A tomada de consciência deste grupo de jovens – que, anos mais tarde, o mesmo Mário Pinto de Andrade (1973) definiria como “a geração de Cabral” – passou também por uma série de atividades e de encontros promovidos por associações de cunho cultural e político, como a Casa dos Estudantes do Império (CEI), o Clube Marítimo Africano e o Movimento de Unidade Democrática (MUD) Juvenil. Porém, além de serem vigiados pela polícia, estes espaços tinham certas limitações que conduziram o grupo a procurar outro lugar onde desenvolver as atividades do centro de estudos que planejavam. De facto, a CEI nem sempre era capaz de representar as aspirações dos estudantes negros e mestiços, privilegiando os interesses de portugueses brancos vindos das colónias (Tomás 2021: 38), enquanto os militantes dos movimentos políticos da oposição ainda tinham dificuldade em entender a especificidade da questão colonial, considerando-a subordinada ao derrube do regime fascista.
Depois de uma tentativa fracassada de tomar a direção da Casa de África – uma associação ligada aos velhos representantes das elites africanas residentes em Portugal, que os mais novos consideravam conservadora, quando não reacionária (Andringa 2009) – a escolha recaiu sobre a casa da família santomense Espírito Santo, situada no número 37 da rua Actor Vale, que dispunha de um grande salão onde acolher todos os participantes. As sessões do CEA aconteciam aos domingos, para desviar eventuais suspeitas da polícia e dar a impressão de que o grupo estivesse reunido para passar junto o dia festivo. Além de ser uma estratégia de precaução, o aspeto familiar e informal das sessões acabaria por contribuir para fortalecer os laços de amizade e de camaradagem entre os participantes.
Como assinalado na nota final do plano de trabalho mencionado antes, as sessões do CEA eram organizadas em regime de seminário: cada participante preparava uma relação sobre um tema e apresentava-a à assembleia, que depois discutia abertamente. Além dos que apareciam de forma regular nas sessões em casa da família Espírito Santo, havia também os que participavam à distância: é o caso de Viriato da Cruz, poeta angolano e futuro fundador e ideólogo do MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola). Viriato, que na época se encontrava em Luanda, enviou uma relação sobre “Os conceitos de África Branca e África Negra” a Mário Pinto de Andrade, com quem mantinha correspondência regular (Laban 1997: 75). Foi também graças a estas colaborações com quem vivia diariamente a realidade das colónias que o CEA, nas palavras de Mário de Andrade (s/d), se tornou num espaço de “discussão das nossas raízes, de apreensão dos problemas africanos”, além de constituir um importante centro de circulação de livros, muitos dos quais proibidos pelo regime salazarista ou de difícil localização e acesso.
Das sessões do CEA nasceram alguns projetos que pretendiam sair do salão da rua Actor Vale e atingir um público mais amplo. Em 1953, por exemplo, um pequeno grupo de membros do Centro enviou uma contribuição coletiva para um número especial da famosa revista francesa Présence Africaine dedicado aos estudantes negros. Aproveitando a correspondência que Mário de Andrade tinha estabelecido com o diretor dessa revista, o senegalês Alioune Diop, o grupo conseguiu publicar, de forma anónima, um pequeno dossiê intitulado “Situation des étudiants noirs dans le monde”, que discutia temas que lhes eram particularmente caros, como o acesso ao ensino nas colónias e as dificuldades que enfrentavam os estudantes negros da África portuguesa.
Ainda em 1953, no âmbito das atividades do CEA (Pereira 2017: 201), foi publicado o Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, editado por Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro, e que contava com poemas escritos por diversos membros e amigos do CEA. Como Mário Pinto de Andrade (1953) escreve no prefácio, numa tentativa de “frisar a importância daqueles que não obstante a sua formação sobre os meridianos do ocidente, têm realizado esforços no sentido de reatar as tradições perdidas, reencontrar-se no passado africano e representar o conjunto da massa negra”, o Caderno pretendia colocar esses jovens poetas africanos – negros, mestiços e até brancos, como António Jacinto – numa tradição panafricanista e humanista que se inspirava na negritude de Léopold Senghor e de Aimé Césaire, assim como na leitura de poetas da América do Norte, de Cuba e das Antilhas. O CEA visava também a edição de uma revista onde pudessem ser divulgados os estudos realizados pelos seus membros, assim como a sua produção literária, e tinha em preparação a publicação de um fabulário africano, provisoriamente intitulado O homem e o cágado, cujos esboços podem ser hoje encontrados no arquivo pessoal de Mário Pinto de Andrade. Estes projetos, porém, não tiveram tempo de vir à luz.
Depois dos acontecimentos de Batepá, em 1953, os membros do CEA tiveram de interromper as reuniões na rua Actor Vale, pois a implicação da família Espírito Santo na denúncia do massacre de trabalhadores africanos em São Tomé e Príncipe tinha atraído as atenções da polícia. Segundo um relato de Mário Pinto de Andrade (Laban 1997: 81), a última sessão do CEA teve lugar no dia 11 de Abril de 1954, e nela foi feito um balanço dos objetivos que o Centro tinha conseguido atingir nos breves, porém intensos, anos da sua existência.
Com o fecho do CEA, ficou em muitos dos seus membros a vontade de manter os seus princípios, alargando contudo a sua esfera de ação e dando-lhe uma dimensão mais claramente política. No final dos anos 1950, muitos dos que tinham participado em reuniões do CEA reencontraram-se no exílio em Paris, e a partir daí lançaram as bases para a constituição de movimentos políticos pela conquista da independência nas colónias da África portuguesa. Estavam de novo novamente reunidos em nome dpela valorização da cultura africana, mas concebiam agora a luta de libertação como expressão máxima desta cultura.
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Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA) | Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA) | | |
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Description:Criada em 1950, a Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA) dá expressão institucional a iniciativas de colaboração bilateral empreendidas após a II Guerra Mundial entre o Reino Unido e a França, no âmbito da medicina tropical e da saúde pública em África, entretanto alargadas à Bélgica, primeiro, e depois a Portugal, à União da África do Sul e à Rodésia do Sul, passando igualmente a contemplar outros domínios de intervenção (ver Gruhn 1971; Castelo, 2022). O convénio foi precedido pela criação, em 1949, do Conselho Científico para a África ao Sul do Saara (CSA), que reunia cientistas oriundos dos países envolvidos, enquanto representantes das respectivas disciplinas, e que viria a tornar-se no órgão consultivo da CCTA (ver Matasci, 2020). No papel, a Comissão visava coordenar actividades técnicas até então conduzidas a nível nacional, com o objectivo de melhorar as condições de vida e promover o desenvolvimento do continente africano. A sua criação deve, pois, ser entendida no quadro da imposição da agenda desenvolvimentista do pós-guerra, mas também no âmbito da tentativa de relegitimação do domínio colonial em África face à vaga descolonizadora e ao crescente anticolonialismo. De forma mais específica, a CCTA afirmou-se ainda como meio de impedir, ou pelo menos de controlar, o acesso das Nações Unidas e das suas agências especializadas aos territórios em causa, ainda que, a este respeito, a atitude dos países envolvidos tenha variado entre eles, evoluído ao longo do tempo ou suscitado divergências no interior das respectivas burocracias (ver Kent 1992; Gruhn 1971; Castelo & Ágoas 2021).
Em termos organizativos, a coordenação política da CCTA assentaria em sessões intergovernamentais ocorridas pelo menos uma vez por ano nas diversas capitais nacionais, e seria assegurada por um secretariado permanente, inicialmente liderado por Paul-Marc Henry, do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês, que, a partir de 1955, passaria a dirigir o secretariado conjunto da CCTA e do CSA, com uma sede em Londres e outra em Bukavu (na actual República Democrática do Congo). Depois da criação dos primeiros gabinetes consagrados à mosca tsé-tsé e à tripanossomíase, aos solos e à economia rural, e às epizootias, instituídos na sequência de reuniões realizadas antes ainda da formação da CCTA, a sua estrutura passaria a contemplar diversos organismos análogos relativos ao habitat, à geologia, ao trabalho, à pedologia, ao bem-estar rural, à estatística ou às ciências humanas, entre outras matérias, para além de contar com correspondentes ou redes de correspondentes dedicados à climatologia, à nutrição, à educação ou a informações económicas, para referir apenas alguns temas (Castelo 2022: 39). A actividade da CCTA passaria em larga medida pela organização de “conferências inter-africanas” sobre estes e outros assuntos, sob recomendação da CSA (nalguns casos, em colaboração com organismos internacionais), e ainda pela formulação de recomendações a serem implementadas pelos países-membros. A isto somar-se-ia uma profusa actividade editorial, por via do boletim Science-Afrique e de diversas outras publicações, dando conta dos trabalhos das conferências, dos recursos científicos disponíveis ou de projectos conjuntos em curso, entre os quais se podem destacar o atlas de climatologia, o estudo das migrações na África Ocidental e o estudo comparativo dos sistemas de contabilidade nacional (idem: 40).
Independentemente das consequências práticas destas iniciativas, a acção da CCTA parece ter sido determinante para o incremento da investigação em África e para a afirmação e crescimento de várias especialidades científicas nos países envolvidos. No caso português, o facto tem tradução ao nível das ciências naturais, designadamente em áreas relacionadas com a agricultura, mas é especialmente saliente no âmbito das ciências humanas, área em que o ímpeto resultante da anterior criação da Junta de Investigações Coloniais (em 1936), e da sua reorganização (em 1945), pouco se fizera sentir (Castelo & Ágoas 2021; Castelo 2022). Em meados da década de 1950, o lançamento, na metrópole, de linhas de investigação consagradas ao bem-estar rural e à urbanização, produtividade e migrações interterritoriais nos territórios africanos, entre outras matérias, no âmbito do recém-criado Centro de Estudos Políticos e Sociais (CEPS) da Junta de Investigações do Ultramar, bem como a reforma progressiva do ensino superior colonial no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (ISEU), e, em particular, a introdução de cursos de sociologia e de antropologia cultural, surgem na sequência de recomendações emanadas da conferência inter-africana de ciências humanas organizada pela CCTA em Bukavu em 1955. O mesmo se pode dizer da criação da Missão de Estudos de Geografia Física e Humana do Ultramar Português (1960) e, a nível local, do estabelecimento dos Institutos de Investigação Científica de Angola e de Moçambique (1955), que incluíam, também eles, secções dedicadas às ciências sociais.
Semelhantes medidas dão nota do empenho da ditadura portuguesa relativamente a esta organização de cooperação científica inter-imperial, o qual pode ser ainda aferido pelas propostas feitas por Portugal à CCTA no sentido de criar no seu seio gabinetes inter-africanos de saúde e de estatística, e ainda um instituto de ciências sociais – iniciativas inviabilizadas por acção do Reino Unido, que procurava evitar hostilizar as Nações Unidas com a criação de organismos sobrepostos aos das respetivas agências (Castelo & Ágoas 2021: 74). De forma paradoxal, é pois possível afirmar que o compromisso português com a CCTA não só não invalida como confirma os desígnios colonialistas e obscurantistas deste investimento político na ciência e na técnica, destinado, antes de mais, a controlar a produção e a circulação de informação sobre os territórios do império. Por seu turno, o motivo aparente para a oficialização, em Janeiro de 1954, da CCTA enquanto organismo intergovernamental – iniciativas científico-sociais em África da parte da UNESCO e de fundações filantrópicas norte-americanas – comprova simultaneamente que tais desígnios não eram à época exclusivos de uma ditadura, sendo extensíveis aos restantes países membros, e que cabia agora às ciências sociais a primazia no suporte técnico e na legitimação simbólica da acção política, particularmente em meio colonial (idem: 73). Nas palavras de um dos delegados portugueses à conferência de Bukavu (Adriano Moreira, que mais tarde seria não apenas director do CEPS e do ISEU, mas também Ministro do Ultramar), proferidas por ocasião da reunião da Comissão Interministerial da CCTA que apreciou os resultados daquela conferência: “Parece que se pretende aferir a idoneidade da acção colonial já não pela ocupação do território nem pela ocupação científica do ponto de vista das ciências da natureza, mas sim em face da ocupação científica do ponto de vista das ciências humanas” (Castelo & Ágoas 2021: 80).
Com a vaga de independências da segunda metade da década de 1950, a CCTA passaria a incorporar as novas nações africanas (Gana, Libéria, Guiné e Camarões, entre 1956 e 1960, e diversas outras depois disso), perdendo o seu estatuto de “clube colonial”, sendo por fim integrada na Organização de Unidade Africana (OUA) em 1965, já depois de Portugal e África do Sul terem sido afastados (1962) e de os restantes países europeus perderem o direito de voto (Gruhn 1971: 463-464). Tal desfecho traduz de si mesmo as implicações pós-coloniais da CCTA, que têm vindo a ser investigadas em domínios como a saúde, a educação e a nutrição (cf. Castelo 2022, nota 18). Por estudar, todavia, em toda a sua extensão, permanece o peso destas dinâmicas transimperiais no conjunto de redes intercoloniais, particulares e estatais, que se sabe terem moldado a ciência contemporânea, bem como a importância específica da CCTA na elucidação da matriz colonial das ciências sociais à época da sua afirmação global (Steinmetz 2023) – tarefas já encetadas para o caso português (Castelo & Ágoas 2021).
Financiamento
A pesquisa que serve de base a este texto foi conduzida ao abrigo de um contrato de investigação financiado pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I. P ao abrigo do Concurso Estímulo ao Emprego Científico (CEECIND/01684/2017).
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Contrabando humano | Contrabando humano | | |
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Description:O contrabando humano é um traço marcante de muitos movimentos migratórios, em diversos contextos históricos e geográficos. Sem prejuízo das especificidades que cada realidade impõe, esta prática tem em comum o propósito de criar pontes transnacionais onde existem barreiras, iludindo controlos fronteiriços e obstáculos à saída, à entrada ou à permanência num território. A partir de um contrato, geralmente oral, o contrabandista – intermediário, auxiliador, facilitador – oferece auxílio na travessia de fronteiras e países de trânsito. Tal acordo é baseado na natureza das relações entre as duas partes e apresenta vantagens para ambas. Independentemente de quem inicia o processo e do tipo de motivação de cada um, o intermediário “vende” a uma pessoa interessada, e mediante as suas capacidades e as capacidades de outros indivíduos situados noutros espaços nacionais ou não-nacionais, o auxílio na viagem, a realizar de forma indocumentada ou com documentação falsificada, em troca de uma remuneração que pode assumir diversas formas (espécie, géneros, troca de favores relativos a assuntos do âmbito migratório ou fora dele).
Assim, ao contrário do que sucede no tráfico de pessoas, onde o migrante é de alguma forma forçado a participar na “transação”, resultando em algum tipo de abuso ou exploração, no caso do contrabando humano o migrante participa ativamente no processo da sua emigração, podendo negociá-la e assumir-se como um dos protagonistas das relações que se estabelecem durante a intermediação (Baird e Van Liempt 2015: 2-3; Sanchez 2017: 11-12; Andrijasevic 2016: 58-60). Todavia, no discurso mediático e político, assim como em estudos sobre tráfico humano, usa-se o termo “tráfico” como sinónimo de auxílio à emigração ou contrabando humano, o que resulta em narrativas que retiram qualquer agência ao migrante e que fecham os intermediários nas seguintes molduras figurativas e tipológicas: o criminoso, o mafioso, o traficante, o predador, o agressor, o extorsionário, o vagabundo. Estas classificações são retomadas e difundidas de cada vez que se verifica mobilidade populacional indesejada, quer nos locais de origem ou recetores dos migrantes, quer nos países de trânsito. É esse o tratamento mediático dado, por exemplo, aos contrabandistas de populações rohingya que fogem de perseguição étnica, ou aos auxiliadores de refugiados sírios da recente guerra civil. Tais narrativas convêm a políticas de encerramento de fronteiras ou de reforço da respetiva vigilância, a discursos securitários, à limitação da mobilidade de determinadas categorias de pessoas e à ação repressiva dos estados; em suma, essas narrativas servem de pretexto a uma gestão diferencial das migrações.
Em Portugal, o auxílio clandestino à saída de pessoas existe, pelo menos, desde o século XV (no contexto da fuga de judeus conversos), sendo mais conhecido na historiografia pelos estudos sobre os “negócios da emigração” para o Brasil (até depois da Segunda Guerra Mundial), vindo a ganhar fôlego a partir de meados dos anos 1950, quando a migração teve como principal destino o continente europeu, mais especificamente França. A natureza e o volume da emigração deste período contribuíram para que ela fosse construída como problema pelos sectores sociais e políticos que mais se opunham ao êxodo, tendo sido apresentada pela imprensa nesses termos. Depois de, em 1947, a ditadura ter proibido qualquer intervenção privada na organização da saída do país, obrigando os candidatos à emigração a passar por um moroso e seletivo processo burocrático encabeçado pela Junta da Emigração (organismo responsável pela atribuição do passaporte de Emigrante), a fuga clandestina tornou-se a opção mais procurada para sair do país. Perante a colaboração que o Estado português obteve dos seus congéneres espanhol e francês na repressão aos facilitadores nos respetivos territórios, criaram-se estratégias e redes informais, mais ou menos complexas ou extensas, que acompanhavam e orientavam o candidato à emigração entre a saída e o destino.
A culpabilização pública dos facilitadores pelos dramas da emigração clandestina permitia justificar os insucessos do controlo policial das fronteiras, criticados pelos setores que se opunham à saída de mão-de-obra, de potenciais povoadores do Ultramar e de soldados para a guerra que Portugal travou em diversas colónias africanas desde o início da década de 1960. Engajadores e passadores serviam além disso como bodes expiatórios para apresentar à comunidade nacional e internacional, apontados como responsáveis por uma emigração massiva e usados para camuflar eventuais motivações políticas para a saída de pessoas. Pretendia-se, deste modo, que o movimento migratório fosse entendido como resultante da influência de novos “negreiros”, de “exploradores sem escrúpulos” e de “máfias internacionais”, que, com o intuito de se beneficiarem financeiramente, manipulavam as vontades de uma população supostamente passiva, subserviente, sem grandes ambições.
A base do auxílio à emigração estava, contudo, ancorada localmente, junto do emigrante, atuando e estendendo-se desde o local onde se efetuava o recrutamento dos migrantes até França. Esta base era sustentada por um sistema de contactos e de acordos orais de base fiduciária entre os vários intermediários, que se conectavam numa extensão transnacional. A organização das viagens clandestinas tinha como suporte redes sociais pré-existentes, que também atravessavam as fronteiras. Os intermediários conheciam-se de outras atividades, algumas informais, onde haviam criado laços de confiança, tais como o contrabando de mercadorias, os circuitos comerciais de produtos agrícolas, o transporte de pessoas, animais e coisas, as simples relações familiares ou de amizade, ou até graças a encontros mais inesperados, como os que ocorriam dentro das prisões. Estas sociabilidades possibilitavam a transmissão de ferramentas, a criação de códigos de comportamento e de relações de confiança, mesmo entre os elementos da rede que se encontravam fisicamente mais distantes. A existência prévia de acordos informais permitia aos diferentes intermediários a verificação de que cada etapa da viagem era cumprida.
Além de recrutadores (angariadores, engajadores ou juntadores), participavam neste processo passadores, guias e transportadores, principalmente portugueses e espanhóis, que tinham como função orientar os emigrantes no cruzamento das duas fronteiras e dentro dos territórios português, espanhol e francês. A passagem (nome comum atribuído à viagem migratória) podia, assim, ser feita em várias etapas, recorrendo-se a diferentes meios de transporte e obrigando a paragens estratégicas para mudança de intermediário, para alimentação e descanso ou, simplesmente, para prevenir encontros indesejados com eventuais denunciantes e polícias. A logística envolvia, por isso, uma série de apoios e de agentes locais, presentes nas várias etapas do percurso, o que implicava a participação de contactos pessoais que se conectavam com as redes de auxílio à emigração, de modo a tornarem a viagem possível.
Desde o momento em que contratava os serviços do contrabandista, o migrante tinha um papel ativo nesta interação, uma vez que uma das suas estratégias consistia em avaliar a confiabilidade do intermediário. O migrante averiguava acerca do sucesso com que o facilitador conduzia as suas viagens, ou socorria-se de outras garantias que assegurassem a boa conclusão do serviço contratado oralmente. É, pois, nesta base que o contrabando de migrantes se define como um processo social com várias camadas, onde a solidariedade, os amigos ou sócios, as comunidades migrantes, as conexões pessoais, o dinheiro e as experiências passadas se unem para formar uma base de proteção, de segurança e de tomada de decisão (Zhang, Sanchez e Achilli 2018: 8-9).
Os mecanismos de auxílio à mobilidade de pessoas atingem por vezes dimensões transnacionais importantes, entrando em circuitos globais potencialmente mais visíveis se as distâncias entre o ponto de partida e o de chegada forem maiores. Mas, para aferir a dimensão deste processo social, há que ter em conta que se trata de uma realidade que tanto pode abarcar organizações de passagem supranacionais como iniciativas individuais locais não organizadas (Drbohlav, Štych e Dzúrová 2013: 213). Em ambos os casos, as redes sociais, os laços e as estruturas culturais e étnicas têm um papel importante e muitas vezes indissociável da intermediação, tal como tem também o migrante, com os seus desejos e características próprias (Van Liempt 2007: 88-94).
Os exemplos são muitos, em vários momentos da história ou da atualidade. É possível observar o emaranhado de contactos estabelecidos para facilitar a entrada de protestantes no território francês da Franche-Comté, no final do século XVII (Debard 1986: 23-34), ou a fuga de afegãos proporcionada por redes de contrabandistas denominados oficialmente como ghachag (Majidi e Danziger 2016: 172). Mais conhecido no Ocidente é ainda o coyote, mas também o snakehead, que participam em extensas redes transnacionais de facilitação da entrada clandestina de migrantes, respetivamente sul-americanos e chineses, nos Estados Unidos da América.
A identidade do contrabandista de pessoas constrói-se, portanto, através de práticas pouco coniventes ou mesmo opostas a enquadramentos meramente nacionais, no sentido em que, sendo a sua condição inseparável da existência de fronteiras, é na transgressão dos limites nacionais que ele se define. O contrabando de migrantes é composto de sujeitos híbridos, ancorados em contextos locais e nacionais, mas que se inserem em lógicas e narrativas de mobilidade transnacionais.
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D. Maria Constança da Câmara, sétima marquesa de Fronteira | D. Maria Constança da Câmara, sétima marquesa de Fronteira | | |
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Description:Filha de D. Luís Gonçalves da Câmara Coutinho Pereira de Sande e de D. Maria de Noronha, D. Maria Constança nasceu a 13 de Julho de 1801, de acordo com o assento de baptismo. A família paterna, não titular, descendia dos senhores das Ilhas Desertas, Regalados e da Casa da Taipa. A família materna, pelo contrário, pertencia à aristocracia de corte, descendendo dos condes dos Arcos e dos marqueses de Marialva. Sétima dos nove filhos do casal, pouco se sabe acerca da sua instrução, a não ser que recebeu educação literária, religiosa e musical (em canto, piano e harpa). Teve provavelmente uma educação doméstica, como era habitual nas elites aristocráticas femininas do seu tempo, com recurso a diversos mestres.
A casa ascendeu à titulação na sua geração. Os seus irmãos tornaram-se sucessivamente o 1º, 2º e 3º condes da Taipa. A sua irmã mais velha entrou no grupo da aristocracia ao casar com o 6º marquês de Angeja, o que sucedeu também a D. Maria Constança por casamento com D. José Trasimundo Mascarenhas Barreto, 7º marquês de Fronteira, 8º conde da Torre e de Coculim, 10º conde de Assumar e representante do título de marquês de Alorna. A frequência por D. José Trasimundo das partidas e saraus típicos da aristocracia europeia nos séculos XVIII e XIX, realizados no palácio dos pais de D. Maria Constança, favoreceu o consórcio, ocorrido a 14 de Fevereiro de 1821. Deste enlace nasceria, no ano seguinte, D. Maria Mascarenhas, a única filha do casal.
Na sequência do golpe absolutista de Abril de 1824, o alinhamento político do marquês pelas ideias liberais levou-o à prisão. Depois de ser libertado, ele e a sua mulher abandonaram o Reino, percorrendo diversos países da Europa, em particular França, Bélgica, Holanda e a península itálica. Neste contexto, assistiram em Paris à sagração de Carlos X, em 1825, e às cerimónias do Jubileu Santo, em Roma, no mesmo ano. Nesta última cidade, D. Maria Constança desempenharia oficiosamente, em diversas cerimónias, as funções de embaixatriz, a pedido do embaixador português, por este ser solteiro.
O diário inicia-se em 1826, na viagem de regresso a Portugal. Ao contrário de outros países europeus, que desde a Idade Moderna cultivam uma tradição neste género literário, a produção diarística em Portugal é considerada incipiente, sendo escassos os diários anteriores ao século XX conhecidos. Tal pode dever-se à pouca atenção dada aos arquivos de família, muitos dos quais permanecem até hoje privados e desconhecidos do público. Esta realidade é ainda mais significativa se vista por uma perspectiva de género: o número conhecido de mulheres diaristas é baixo (Urbano 2023). Ao desconhecimento das fontes, junta-se o menor grau de alfabetização e de acesso à cultura letrada por parte das mulheres, mas também um conjunto significativo de questões que ao longo dos séculos invisibilizaram a escrita de autoria feminina.
Nessa viagem de regresso, o casal passou por Inglaterra, visitando Londres, Oxford, Hampton Court, Newark e Portsmouth, e contactando com diversos membros da aristocracia, portugueses e estrangeiros, nomeadamente com os marqueses de Salisbury, com o conde de Flavigny, com os barões de Heytesbury e com o futuro barão Francis Godolphin Osborne.
Entre Novembro de 1826 e o início de 1828, D. Maria Constança esteve em Lisboa. Neste período, as entradas do diário são escassas, vindo a tornar-se regulares a partir do final de Julho de 1829, na estância balnear de Dieppe, já durante o segundo exílio do casal, provocado pela ascensão de D. Miguel ao trono português, período em que mais de 13 mil liberais deixaram o país (Isabella 2023: 217). Esta emigração insere-se em movimentos migratórios similares ocorridos por toda a Europa, decorrentes das revoluções e da instabilidade política vivida em países como França, Itália, Espanha e Grécia, mobilizando elites aristocráticas, terratenentes e militares. Neste período, os marqueses de Fronteira conviveram com outros aristocratas, tais como as duquesas de Angoulême, Berry, Noialles e Poix, o conde Demidoff, os viscondes de Castelbajac e diversos membros da família Bombelles. Em Agosto, o casal regressou a Paris, onde encontraria outros aristocratas portugueses emigrados, travando também conhecimento com vários titulares estrangeiros.
Em Junho de 1830, iniciaram um périplo até à região de Como, através de Pouilly-sur-Loire, Vichy, Lyon, Nantua, Genebra, Lauzen, Aber, Sion, Briga, Domo D’assola, Baveno e Milão; nessa ocasião, conviveram com a marquesa de Vence, o conde de Borromeu, a viscondessa da Pedra Branca e o general espanhol Miguel de Álava y Esquível. A temporada em Como, em Julho e Agosto de 1830, foi socialmente menos intensa, mas ainda assim pô-los em contacto com os condes de Tanzi e com a cantora lírica Giuditta Pasta. Posteriormente, o casal instalou-se em Florença, após um périplo por Milão, Génova, Rapallo, Sestri, Borghetto di Vara, Sarzana, Luca e Livorno, estabelecendo redes de sociabilidade com membros da família Strogonoff, com o diplomata Carlo Andrea Pozzo di Borgo e com os príncipes Dolgarukov. Em Florença, foram apresentados aos grão-duques da Toscana e ao dei da Argélia, exilado nesta corte, bem como a diversos aristocratas e diplomatas europeus.
No final de Maio de 1831, os marqueses deixaram Florença, passando por Bolonha, Modena, San Benedetto Po, Mântua, Verona, Borghetto sull’Adige, Roveredo, Trento, Inha, Colma, Vipiteno, Innsbruck e Munique, onde se demoraram alguns dias. A viagem prosseguiu para Augsburgo, Ulm e Estugarda, seguindo-se Karlsruhe e Baden-Baden. Aqui, travaram conhecimento com os príncipes de Tarante, com Lobanov-Rostovsky, com de la Tremouille, com a condessa Lage de Volude e com os barões von Mengden, reencontrando ainda outros aristocratas, como o príncipe Golitsyn ou o barão von Ende. Em meados de Agosto retomaram viagem, passando por Karlsruhe, Heidelberg, Frankfurt, Mainz, Koblenz, Colónia e Aachen.
O diário é omisso entre Setembro de 1831 e Fevereiro de 1832, data em que os marqueses já se encontravam em Paris. Aqui, recuperaram relações com aristocratas portugueses e estrangeiros, como a marquesa d’Agrain, com Jean-Guillaume Hyde de Neuville ou com Susan Euphemia Beckford. A estadia em Paris foi interrompida em Maio de 1833 para dar lugar a uma temporada de banhos em Boulogne-sur-mer, tendo o casal regressado à capital francesa em Agosto e retomado então contacto com o marquês de La Valette e com a Madame de Flahaut.
O regresso de D. Maria Constança a Portugal deu-se a partir de Boulogne-sur-mer, a 9 de Outubro, através de Dover e com paragem em Londres. O diário é reiniciado a 1 de Abril de 1834, em Lisboa, prolongando-se, com bastantes intervalos, até 1842. Neste período, a 1 de Janeiro de 1836, foi agraciada por D. Maria II com a ordem de Santa Isabel.
Embora exilados e em situação económica precária, contornada com recurso a empréstimos de banqueiros estrangeiros, os marqueses de Fronteira mantiveram um nível de vida condizente com o seu estatuto social, estabelecendo redes de sociabilidade com a aristocracia europeia e norte-africana que igualmente se deslocava, tanto por razões de exílio (como no caso já referido do dei da Argélia), quanto profissionais (como no caso do corpo diplomático) e de lazer. Este quotidiano cosmopolita, que o diário permite acompanhar, é comparável ao da aristocracia norte-europeia de finais do século XVIII e assenta na partilha da mesma esfera social, favorecida pela existência de códigos de sociabilidade comuns (Wolff 2015: 84-88), que consistiam na realização de visitas, na frequência de bailes e saraus, nos quais se jogava ou tocava e se cantavam os êxitos musicais da época. Ia-se a banhos nas estâncias termais em voga, passeava-se nos parques públicos, visitavam-se locais de interesse – fossem igrejas, palácios ou museus –, onde os grandes mestres da pintura europeia eram apreciados: artistas como Rafael, Guido Reni, Rubens, Domenico Zampieri, Anthony Van Dick ou Bartolomé Esteban Murillo.
Outro elemento significativo do estilo de vida aristocrático era a frequência do teatro, especialmente de ópera. Além de ser um espaço privilegiado de aprofundamento das redes sociais, a frequência da ópera permite-nos conhecer os consumos culturais deste grupo e o próprio gosto da marquesa de Fronteira, que referencia os principais compositores do seu tempo, incluindo alguns atualmente menos conhecidos (como Peter von Winter, Simon Mayr, ou François-Adrien Boieldieu), a par de outros que continuam a figurar no cânone operático, como Rossini, Mercadante ou Bellini. Os marqueses tiveram ocasião de assistir a atuações dos principais artistas internacionais do seu tempo, em especial de cantores líricos e de bailarinas.
De resto, a descrição dos consumos culturais da marquesa de Fronteira não se fica pelas artes de palco. D. Maria Constança alude a algumas leituras – desde o clássico Homero, aos franceses Charles-Victor Prévot, Marie des Heures (Clotilde-Marie Collin de Plancy), Alphonse Marie Louis de Prat de Lamartine e George Sand, passando pelo italiano Alessandro Manzoni, pela inglesa Ann Radcliffe e até pelo norte-americano James Fenimore Cooper. A prática da leitura incluía também a imprensa periódica nacional e estrangeira. Através dela, e da correspondência recebida dos seus familiares e amigos, a marquesa mantinha-se atualizada relativamente à situação política do seu país e dos principais acontecimentos europeus, nomeadamente as guerras de independência da Grécia e a travada entre a Rússia e o Império Otomano (1828-1829). Acompanhou também a revolução de Julho de 1830 em França e, no mesmo ano, a de Varsóvia, bem como a tentativa de revolução em Modena, perpetrada por Ciro Menotti.
Desde a conclusão do diário em 1842 até à sua morte, pouco se sabe, à excepção de ter sido directora de um dos colégios de Infância Desvalida, instituído pela duquesa de Bragança, e vogal da Sociedade Protetora dos Órfãos Desvalidos das Vítimas da Cólera Morbus, em 1856, e da Febre Amarela, em 1857. Nas memórias do seu marido, D. Maria Constança é referida apenas pontualmente. Morreu a 11 de Setembro de 1860 no seu palácio de Benfica, tendo sido sepultada na igreja do convento de S. Domingos de Benfica.
Finalmente, importa realçar que a participação da marquesa de Fronteira nas sociabilidades europeias, demonstrada pelo seu diário, sobretudo após a ascensão de D. Miguel ao trono, para além de testemunhar a partilha de códigos sociais, deverá ser entendida como uma estratégia de mobilização política internacional levada a cabo pelos emigrados portugueses liberais. O desenvolvimento de uma diplomacia informal visou a promoção de redes de solidariedade transnacional entre os partidários do constitucionalismo e a adesão à causa liberal portuguesa.
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Descolonização | Descolonização | | |
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Description:Terá havido algo de singular na descolonização portuguesa? Esta questão pode bem figurar entre os problemas clássicos da historiografia do império português, um campo fértil em reivindicações de “excepcionalidade” quando se trata de situar a trajetória do país face a outras experiências europeias.
Desde logo, a cronologia parece validar tal hipótese. A soberania portuguesa nos seus territórios ultramarinos chegou ao fim em 1974-75, mais de uma década volvida sobre as descolonizações protagonizadas por outras potências. Só o pequeno enclave de Macau seguiu um curso mais em linha com desenvolvimentos internacionais, tendo o território governado por Portugal transitado para a administração chinesa em 1999, dois anos depois da entrega de Hong-Kong pela Grã-Bretanha à República Popular da China.
Para a esquerda anticolonial, o desfasamento temporal deveu-se ao anacronismo de um regime liderado por um obstinado ditador fascista, sustentado pelos seus aliados da NATO graças à lógica da Guerra Fria. Para muitos à direita, a longevidade do império assentou no carácter fundamentalmente benigno da governação colonial lusa, respaldada em séculos de coexistência pacífica com as populações ultramarinas, segundo uma visão popularizada a partir dos anos 1950 com base nas ideias do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre.
No entanto, uma das preocupações que tem distinguido a investigação historiográfica das últimas décadas sobre esta temática é a atenção prestada às afinidades – que não foram poucas – entre as trajetórias portuguesa e europeia-ocidental (Jerónimo e Pinto 2015). Nesta entrada, procuraremos olhar para esses paralelismos, mas também para a complexa teia de influências recíprocas e transnacionais que permitem matizar o alegado “excepcionalismo” português, de maneira a tornar o fim do colonialismo nos espaços de língua portuguesa um fenómeno compreensível à luz das dinâmicas que contribuíram para o afrouxamento dos laços imperiais um pouco por todo o mundo naquele período.
A descolonização não foi um acontecimento, mas um processo: este tornou-se, na era contemporânea, um dos lugares-comuns da historiografia dos impérios (Jansen e Osterhammel 2017). Mas foi também – acrescentamos nós – um fenómeno multifacetado e repleto de paradoxos. Como processo, a descolonização poderá talvez inscrever-se na “conjuntura”, a temporalidade definida por Fernand Braudel como de carácter cíclico, secular; nesse sentido, encaixará, grosso modo, nas balizas do “breve século XX” conceptualizado por E. J. Hobsbawm. Embora alguns autores prefiram recuar até ao século XVIII e às primeiras independências crioulas contra o domínio europeu para dar conta do imperialismo contemporâneo em toda a sua amplitude (Klose 2014), neste ensaio adotaremos uma periodização mais restrita (c. 1919-1975), em parte por razões de espaço, mas também porque aquilo que chega ao fim em 1974-75 é o chamado “terceiro império português”, forjado no contexto da corrida imperialista de finais do século XIX, com o seu centro de gravidade localizado no continente africano.
Numa perspetiva diacrónica, poderá fazer sentido determo-nos em quatro subdivisões temporais: 1919-1945; 1945-61; 1961-74; e uma última em que, muito sucintamente, aludiremos aos acontecimentos que marcaram o fim do império (1974-75) e às suas sequelas, numa perspetiva comparada.
A primeira fase transporta-nos até esse período extremamente ambivalente, do ponto de vista da estabilidade dos impérios coloniais, que foi o pós-Primeira Guerra Mundial. As devastações desse conflito desferiram um severo – mas não definitivo – golpe nas pretensões de “missão civilizacional” que eram reivindicadas pelas potências imperiais para justificar a hierarquia racial em que repousavam as sua conquistas ultramarinas.
As reverberações globais da defesa, pelo presidente dos Estados Unidos, do princípio da autodeterminação, nos últimos meses da I Guerra Mundial – aquilo a que se chamou o “momento Wilsoniano” (Manela 2007) – revelar-se-iam limitadas no império colonial português, mais ainda do que noutras paragens. As condições que noutros espaços imperiais – como o Egipto e a Índia britânica, partes do Médio Oriente, a China ou a Coreia – permitiram que germinasse uma consciência nacionalista eram pouco expressivas nos territórios ultramarinos portugueses: Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Goa, Damão e Diu, Macau ou Timor Oriental. Ainda assim, algumas pessoas ligadas a uma intelligentsia africana estabelecida na metrópole aproveitaram as expectativas criadas pelas proclamações de Wilson para criticar o incumprimento de promessas humanitárias e autonomistas feitas pelo regime republicano recentemente instaurado em Portugal, assim como a legislação de sentido claramente racista que fazia o seu caminho em várias colónias portuguesas.
No período de entre-guerras, elementos dessa intelligentsia participarão em vários congressos pan-africanistas; um deles, o escritor e jornalista Mário Domingues, usaria as páginas do jornal anarquista A Batalha para denunciar as expressões mais cruas e violentas do domínio colonial português em África (Garcia 2022). Mas a posição de muitos destes pan-africanistas era ao mesmo tempo ambígua, com vários deles a fazerem a defesa das posições coloniais portuguesas em diversos fóruns internacionais (Oliveira 2017).
Nas possessões indianas, será sobretudo o fermento do nacionalismo associado ao movimento liderado por Gandhi no Raj Britânico que galvaniza os descontentes com o domínio português. Em 1928, Tristão de Bragança Cunha, um engenheiro de Chandor educado em Paris, funda o Goa Congress Committee, distinguindo-se depois na agitação patriótica em Goa após a Segunda Guerra Mundial, circunstância que lhe valeria vários anos de cativeiro em prisões portuguesas.
O facto de a contestação nacionalista ter sido incipiente no período de entre-guerras não poupou os governos portugueses a outras dores de cabeça. Em boa medida, isso deveu-se ao receio de que a nova organização internacional, a Sociedade das Nações, e a sua doutrina da trusteeship (incrustada no sistema dos mandatos), pudesse facilitar uma “espoliação” dos territórios ultramarinos portugueses. Denúncias de situações análogas à escravatura feitas em Genebra por observadores externos, como o sociólogo norte-americano Edward Ross (1924-25), causaram enorme agitação patriótica em Lisboa. Grande entusiasta do eugenismo nos EUA, Ross visitara extensas partes de Angola e Moçambique e revelara-se muito crítico da incapacidade portuguesa para levar por diante uma obra civilizacional à altura dos padrões definidos pelas potências ocidentais mais influentes – um tipo de contrariedade que haveria de atormentar o império luso praticamente até ao fim. Em 1926, a sugestão de um intelectual macaense, o escritor Montalto de Jesus, de que, por manifesta incapacidade da metrópole para garantir o desenvolvimento do enclave, a administração de Macau transitasse para a Sociedade das Nações levou à apreensão e destruição dos exemplares da obra em que tal proposta havia sido formulada (Jesus 1990).
Os piores receios dos partidários do império acabaram por não se concretizar, em boa medida graças ao desinteresse da própria SDN por esse tipo de soluções, mas também à orientação de potências revisionistas, como a Alemanha após a chegada dos nazis ao poder, para outro tipo de projetos de expansão imperialista, designadamente para a Europa Central e de Leste. Durante a Segunda Guerra Mundial, a gestão cuidadosa, e muitas vezes ambígua, por Oliveira Salazar da neutralidade portuguesa resultaria numa confirmação do apoio das democracias ocidentais ao colonialismo português, que em Timor e em Macau, entre 1942 e 1945, enfrentou, às mãos dos japoneses, humilhações equiparáveis à de outros poderes imperiais (Alexandre 2017).
As ambiguidades das potências ocidentais a propósito da continuidade do colonialismo ficaram bem patentes em vários momentos do pós-guerra. Em boa medida, a historiografia vê hoje a criação das Nações Unidas como uma tentativa para dar um novo sopro de vida aos impérios europeus (Mazower 2009): diversos planos de desenvolvimento e bem-estar procuravam conter as aspirações nacionalistas estimuladas pela Guerra. Excluído da ONU até 1955, Portugal não deixou de tirar partido deste cerrar de fileiras dos poderes imperiais, sobretudo em África, cujas matérias-primas e recursos naturais eram percebidos pelos europeus como indispensáveis à sua reconstrução económica, bem como para a recuperação do seu estatuto de potências.
No entanto, não deixaram de ocorrer diversos desenvolvimentos perturbadores para o status quo imperial luso, desde logo relacionados com movimentos sísmicos que tiveram lugar no continente asiático. A independência da Índia, em 1947, gerou uma disputa diplomática entre Lisboa e Nova Deli, que rapidamente se converteria numa guerra de nervos, com potencial para degenerar num conflito armado. Em 1954, os enclaves portugueses de Dadrá e Nagar Aveli foram ocupados por ativistas satyagrahas indianos. A relutância de Jawaharlal Nehru em recorrer à força para resolver de uma vez por todas a “questão de Goa” adiaria por alguns anos o desfecho da disputa, que acabaria por acontecer em finais de 1961, quando o líder indiano concluiu que maiores atrasos poderiam comprometer seriamente a sua liderança junto do emergente Movimento dos Não-Alinhados (Stocker 2005).
Na China, o triunfo de uma revolução comunista que prometia vingar os vexames infligidos ao antigo Império do Meio parecia uma sentença de morte para estabelecimentos ocidentais como Macau ou Hong Kong. Tal não viria a acontecer, por força de um conjunto complexo de fatores, entre os quais foi decisivo o interesse do regime de Mao Tsé-tung em dispor de vias discretas que lhe permitissem contornar o bloqueio decretado pelos EUA à República Popular da China, no seguimento da Guerra da Coreia. Cálculos geopolíticos do mesmo teor refrearam a Indonésia de Sukarno, tornada independente em 1949, de reclamar a soberania sobre os territórios que não integravam o património das Índias Orientais holandesas, incluindo o então chamado Timor português (Oliveira 2023).
No entanto, os governantes portugueses não ignoravam o apelo emocional do nacionalismo anticolonialista e nunca confiaram inteiramente num direito internacional cujo viés imperialista passara a ser abertamente contestado nos grandes areópagos mundiais. Em abril de 1955, a conferência afro-asiática de Bandung sinalizou, entre outras coisas, a disposição das potências ali reunidas para prestarem apoio às lutas de libertação que tinham como foco primordial os poderes coloniais europeus. Redes e comités de solidariedade foram estabelecidos em vários países do então denominado Terceiro Mundo, com destaque para o Egipto, o Gana e Marrocos. Essas novas infraestruturas de solidariedade afro-asiática seriam ativamente procuradas pelos nacionalistas anticoloniais de língua portuguesa, para organizarem a sua luta independentista. Os de orientação tendencialmente socialista, na sua maioria educados na Europa (e muitos deles em Lisboa), formam, em 1960, em Tunes, a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, uma plataforma que traria importantes sucessos diplomáticos aos movimentos que a constituíam, ao ponto de permitir muitas vezes camuflar as respetivas fraquezas na frente militar.
A viragem da década foi fértil em sobressaltos para Portugal. Reunida em dezembro de 1960, a Assembleia Geral das Nações Unidas coincidiu com a aprovação de um conjunto de declarações que estabeleciam, sem ambiguidades, o direito dos povos à autodeterminação, a que a própria Carta da organização já aludia.
É certo que à época outros poderes coloniais europeus estavam ainda implicados em vários conflitos intratáveis, usando leis de exceção para encarcerar e torturar combatentes independentistas, desde a Argélia ao Quénia. Mas o carácter ditatorial do poder metropolitano português tornava-o quase impermeável a pressões domésticas e menos flexível a sugestões liberalizadoras feitas por poderes como os EUA – elementos que, por essa altura, pesaram nalgumas das “estratégias de saída” congeminadas por britânicos e franceses. O regime salazarista enfrentou um ano particularmente duro em 1961, com tentativas de golpe no plano interno, levantamentos populares armados em Angola, a perda da fortaleza de São João Baptista de Ajudá (no atual Benim), e a anexação de Goa, Damão e Diu pelas forças da União Indiana.
As pressões sofridas por Portugal nas Nações Unidas eram consideráveis, incluindo votos hostis dos EUA, então sob a presidência de John F. Kennedy. Salazar alegaria mais tarde que um pequeno país como Portugal estava impedido de seguir as pisadas de outros países europeus, pois não dispunha de meios para continuar a exercer uma influência duradoura nas suas colónias através de mecanismos indiretos (ditos “neocoloniais”). Trata-se de uma explicação que deixa muito a desejar; parece mais razoável supor que Salazar percebesse que uma guerra prolongada, mas de custos controlados e de “baixa intensidade”, lhe seria vantajosa. Agora que os países europeus ocidentais, para onde todos os anos emigravam dezenas de milhares de portugueses, demonstravam ser possível conciliar prosperidade, estabilidade e democracia, tornava-se mais difícil justificar a natureza ditatorial do regime português. Numa era de détente na Guerra Fria, como aquela que ocorreu a partir de 1962-63, apenas a manutenção de um império concebido como uma “herança sagrada” (Alexandre 2017) permitia justificar a mobilização militar do país, com os correspondentes custos financeiros, e ainda com prejuízo para os esforços de modernização e bem-estar que o próprio regime sabia que tinha de empreender para garantir a sua estabilidade.
No imediato, é verdade que Lisboa conseguiu ganhar tempo, graças a uma estratégia de contrainsurreição prudentemente conduzida e a um conjunto apreciável de cumplicidades internacionais. Até ao início dos anos 1970, o regime logrou conter o desafio das guerrilhas africanas, que haviam entretanto aberto focos de luta armada também na Guiné (1963) e em Moçambique (1964), ao mesmo tempo que lançava ambiciosos programas de fomento económico e engenharia social. Os interesses económicos implicados nesse surto de crescimento, assim como o vasto aparato burocrático e de segurança vinculado ao esforço militar, criaram um número assinalável de veto-players, que ajudaram Salazar, e depois Caetano, a adiar quaisquer cenários de descolonização (Spruyt 2005).
Os portugueses puderam tirar partido de certas táticas de contrainsurreição que outras potências ocidentais tinham desenvolvido noutros contextos, da Malaia ao Vietname, da Argélia ao Quénia, assim como da condescendência dos seus parceiros da NATO no tocante ao desvio de equipamento desta organização para os teatros africanos. O seu entendimento com os regimes supremacistas brancos da Rodésia e da África do Sul evoluiu para modalidades de colaboração cada vez mais estreita, em domínios como a partilha de informações, a cooperação policial e militar e o intercâmbio económico. Tudo isto criou condições que levaram a um impasse que, no início da década de 1960, quando o fim do “ultracolonialismo” português era visto como iminente por não poucos observadores europeus, poucos teriam acreditado ser possível.
As divisões no campo dos nacionalistas foram também um fator não negligenciável no arrastamento da situação. Os apelos à unidade que vários líderes e entidades afro-asiáticas endereçavam raramente surtiram efeito, sobretudo no caso de Angola, onde os independentistas se dividiram em três partidos antagónicos; mesmo movimentos dotados de lideranças mais coesas, como a FRELIMO (Moçambique) e o PAIGC (Guiné-Bissau e Cabo Verde), ressentiram-se de cisões e de rivalidades internas, algumas delas facilitadas por desenvolvimentos como o cisma sino-soviético nos anos 1960, e acabaram por ver os seus líderes assassinados – Eduardo Mondlane em 1969, Amílcar Cabral em 1973 – em parte devido ao exacerbamento dessas divisões.
Na Guiné e em Moçambique, a guerrilha gozava de certa capacidade de iniciativa, sobretudo graças a algum equipamento militar moderno (artilharia ligeira em particular) e a quadros treinados em academias militares de países socialistas, de Cuba à China. No entanto, o grosso da atividade dos movimentos independentistas desenrolava-se no exílio, sob a forma de iniciativas diplomáticas (em especial na ONU) e de propaganda política (MacQueen 1997). Para isso, esses movimentos contavam com a solidariedade de dezenas de estados do chamado Sul Global e do bloco socialista, assim como de redes de ativistas anticoloniais em vários países do Ocidente.
O efeito cumulativo desta mobilização transnacional foi apreciável. Em 1973, a denúncia de atrocidades cometidas pelo exército português, como a de Wiriyamu, em Moçambique, deu uma nova visibilidade ao sofrimento que resultava do impasse militar na África dita portuguesa.
Em última análise, numa guerra de paciência e desgaste como são todas as guerras de guerrilha, os nacionalistas revelariam uma determinação superior, levando a que as forças armadas portuguesas, elas próprias um espelho das mudanças aceleradas vividas por Portugal nos anos 1960, começassem a questionar o sentido da resistência à descolonização.
Como alguns dos oficiais portugueses depois notariam, o efeito do golpe de Estado de 25 de abril de 1974, motivado essencialmente pela incapacidade do regime para superar o impasse ultramarino, foi em tudo semelhante ao impacto da queda do czarismo na vontade de lutar dos soldados russos em 1917.
Essa circunstância revelar-se-ia decisiva no desatar dos laços coloniais entre Lisboa e os seus territórios africanos. Uma tentativa de última hora do general António de Spínola, o presidente da Junta de Salvação Nacional, no sentido de relançar o projeto imperial em bases federativas (ou “neocoloniais”, como pretendiam os seus críticos) esbarrou na oposição determinada dos movimentos independentistas e dos seus aliados, bem como na dos oficiais do Movimento das Forças Armadas, que apostavam tudo num acordo amistoso com as guerrilhas.
Perante as tentativas de adiamento de Spínola, o recrudescimento das ações armadas e vários ultimatos das estruturas locais do MFA foram suficientes para que o antigo governador da Guiné tomasse consciência de que não havia alternativa à independência sob a égide dos movimentos nacionalistas reconhecidos pela ONU. Em 1958, no caso francês, o impasse argelino gerara também uma intervenção militar na política, que levou inclusivamente ao nascimento da V República, sob a liderança do general De Gaulle; o seu sentido, no entanto, foi o de tentar salvar a Argélia francesa, desígnio precisamente contrário ao que pretendia o MFA quando avançou para o derrube do Estado Novo.
A Lei 7/74, de 27 de julho, consagrou o reconhecimento imediato do direito das populações coloniais à autodeterminação, com todas as suas consequências, incluindo a independência, e foi recebida com júbilo pela população metropolitana e ultramarina, assim como pela generalidade das forças políticas portuguesas, para quem a descolonização era tida como uma premissa fundamental da evolução democrática do país.
Os processos de transferência do poder na Guiné, em Moçambique, em Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe não foram isentos de sobressaltos – sobretudo em Moçambique, após os motins provocados por uma parte da população branca hostil ao acordo de independência celebrado com a FRELIMO em 7 de setembro de 1974. Entretanto, isso não impediu que o momento fosse vivido de forma eufórica entre os sectores mais à esquerda da revolução portuguesa: Portugal e as suas antigas colónias estavam agora irmanados na “construção do socialismo” e Lisboa podia aspirar a tornar-se um intermediário-chave entre a Europa e a África, uma “ponte” entre o Norte capitalista e o Sul Global, superando a memória traumática do colonialismo e da guerra.
Este momento de euforia teve, porém, um tempo de vida muito curto. O principal fator a arrefecer o entusiasmo com a descolonização foi a afluência a Portugal, em grande número, dos nacionais portugueses de Angola e Moçambique (conhecidos como “retornados”, rótulo que muitos repudiavam), confrontando a antiga metrópole com a necessidade de acomodar e apoiar aproximadamente 550 000 indivíduos, num contexto de grave crise económica (Peralta 2022). A esmagadora maioria eram portugueses brancos, mas entre eles contavam-se também algumas dezenas de milhar de africanos, que contribuíram para tornar as cidades portuguesas um pouco mais multiculturais, ao mesmo tempo que punham à prova as ideias auto-complacentes do país em relação à sua capacidade para lidar com a diferença.
O segundo fator prendeu-se com a rápida deterioração da situação política nos antigos territórios ultramarinos. Dois deles, em particular – Angola e Timor –, converteram-se em palco de violentos conflitos entre facções nacionalistas desavindas, que propiciariam interferências externas de vários atores da Guerra Fria e, no último caso, uma invasão militar indonésia que estabeleceria um regime de ocupação brutal até à realização de um referendo de autodeterminação em 1999. Em ambos os casos, a incapacidade das autoridades portuguesas para exercerem um papel arbitral suscitou enormes controvérsias, influenciando muito negativamente, e por várias décadas, as perceções da opinião pública acerca da descolonização.
Como se comparou o fim do império lusitano com o de outras potências? E como se têm os portugueses relacionado com a memória de todo o processo? Mais uma vez, parece sensato matizarmos aqui a noção de “excepcionalidade” portuguesa. O facto de países como a Bélgica, a Holanda e a França serem governados por democracias liberais, que não eram indiferentes à maneira como eram olhadas pela opinião pública internacional, tornou possível compromissos negociados com forças independentistas – mas isso não poupou a erupção no Congo, na Indonésia, na Indochina e na Argélia de episódios de enorme violência, incluindo guerras travadas com extrema crueldade. Mesmo a descolonização britânica, durante tanto tempo apresentada como um modelo de razoabilidade e pragmatismo (num registo próximo da “versão whig da história”), tem sido alvo de um olhar mais crítico, que associa a procrastinação de Londres à imensa tragédia humana da partição da Índia e Paquistão, em 1947, ou enfatiza o recurso a medidas de exceção para cobrir toda a espécie de abusos nas campanhas de contrainsurgência travadas na Malaia ou no Quénia (Elkins 2022).
Tal como os seus congéneres europeus, Portugal tentaria encontrar um enquadramento institucional para tirar o máximo partido das suas relações pós-coloniais, designadamente com a criação, em 1996, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). À imagem de outras instituições diplomáticas pós-coloniais, como a Commonwealth ou a Francophonie, a CPLP poderá ter trazido alguns dividendos políticos à antiga potência colonial (como o apoio em certas votações na ONU), mas ela tem sido também uma arena onde a harmonização de interesses se tem revelado muitas vezes difícil, em parte devido ao ressentimento de alguns estados-membros diante daquilo que veem como manifestações de “paternalismo” da antiga metrópole, ou em domínios onde os compromissos portugueses no quadro da União Europeia (tais como os acordos de Schengen) colidem com as expectativas das antigas colónias africanas.
As consequências culturais e psicológicas da descolonização entre os ex-estados coloniais são também um laboratório de comparação interessante. Em 1999, um ano depois da Exposição de Lisboa dedicada à temática dos Oceanos, vista por alguns como uma manifestação do apego de Portugal ao seu imaginário imperial, o historiador Landeg White observou que em 1975 o país realizara a sua descolonização “física”, mas permanecia relutante em empreender uma verdadeira “descolonização mental” (White 1999: 54-55). Tal tarefa implicaria revisitar toda uma história imperial recheada de mitos benevolentes e, ao mesmo tempo, tirar ilações sobre os equívocos dessa história mítica e das suas manifestações no presente. As últimas duas décadas, porém, têm evidenciado alguma disposição de partes da sociedade portuguesa para realizar um ajuste de contas com o passado imperial, em boa medida graças à difusão, na academia e nos media, de uma agenda pós-colonial, bem como ao ativismo de indivíduos e organizações de afrodescendentes.
O apego português a uma representação mítica do passado tem matizes próprias, incluindo um forte envolvimento estatal na perpetuação de um imaginário de tonalidades luso-tropicalistas. Mas, uma vez mais, até que ponto o mesmo não sucederá noutros contextos, em função de idiossincrasias locais que também elas se têm revelado resistentes à mudança? Exemplos disto são as “guerras identitárias” alimentadas por incidentes associados a legados imperiais (das polémicas em torno de Zwarte Piet nos Países Baixos à campanha Rhodes Must Fall no Reino Unido), ou as memórias não apaziguadas de vários países em relação aos aspetos mais violentos do seu colonialismo, desde as atrocidades no Congo do Rei Leopoldo às violações de direitos humanos na Argélia francesa (Buettner 2016).
De certa forma, o último capítulo desta história europeia permanece ainda por concluir – e são cada vez mais aqueles que querem ter uma palavra a dizer nesse processo.
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Francisco Rolão Preto (1893-1977) | Francisco Rolão Preto (1893-1977) | | |
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Description:Francisco de Barcelos Rolão Preto nasceu em 1893 e, ainda que o seu nome seja relativamente desconhecido do grande público, foi uma das figuras-chave da ultradireita portuguesa na primeira metade do século XX. Apoiante da causa monárquica e integralista durante a Primeira República, acabou por deixar a sua marca na história de Portugal ao liderar, já no período inicial do Estado Novo, o Movimento Nacional-Sindicalista (MNS), principal variante portuguesa do fascismo, caraterizada pela defesa de valores ultranacionalistas, da mobilização popular e do culto da ação direta. O seu percurso político, contudo, foi muito complexo, com diversas mudanças e reconfigurações ideológicas. Começando por aderir, durante a juventude, à causa monárquica, Rolão Preto participou nas revoltas de Paiva Couceiro após a implantação da República (Pinto 2000: 2-32). Tendo-se exilado na Bélgica, primeiro, e depois em França, o futuro líder do MNS travou contacto direto com algumas das principais figuras da direita reacionária francófona, incluindo Charles Maurras, que nesta fase terá exercido sobre ele forte influência. Também neste período, tornou-se editor da revista Alma Portuguesa, criada em 1913 por monárquicos exilados. Regressando a Portugal em 1917, Rolão Preto envolveu-se ativamente na organização monárquica Integralismo Lusitano (IL), vindo posteriormente a integrar a sua Junta Central.
Contudo, o pensamento de Rolão Preto, exposto nos textos que escreveu para o jornal A Monarquia e no livro de 1920 A Monarquia é a Restauração da Inteligência, destacava-se do de outros integralistas (vincadamente tradicionalistas e elitistas) pela sua propensão para a dinamização da política, algo que já o aproximava daquilo que viria a ser o fascismo; aqui, podem ser detetadas influências de figuras italianas como Enrico Corradini e Gabriele D’Annunzio. De facto, numa série de artigos surgidos em 1922 no jornal A Época (reunidos em 1939 no volume O Fascismo), Rolão Preto faz uma avaliação positiva do movimento de Mussolini, elogiando a sua tendência para a ação direta. Outro elemento presente no seu pensamento era a “questão social” e a necessidade de chamar a classe operária de volta para o nacionalismo, fazendo-a abandonar o comunismo. Para alcançar esse fim, advogava uma “monarquia social” e um “sindicalismo orgânico”, que fosse capaz de ultrapassar tanto o individualismo do capitalismo liberal quanto a luta de classes promovida pelo marxismo e que, através de sindicatos e corporações que unissem os elementos da produção, pusesse termo às tensões sociais, criando uma comunidade nacional harmoniosa.
Ao longo da década de 1920, Rolão Preto esteve associado a diversas organizações de direita radical, tendo inclusivamente colaborado com o General Gomes da Costa no golpe de 28 de Maio de 1926 que pôs fim à República e deu início à Ditadura Militar. Contudo, foi em 1932 que esta figura de proa dos meios nacionalistas foi convidada para se juntar a um grupo de jovens estudantes de Lisboa que, a 15 de Fevereiro desse ano, havia publicado o primeiro número do jornal A Revolução (para a história do Movimento Nacional-Sindicalista, ver Medina 1978). Trazendo consigo outros membros do Integralismo Lusitano, Rolão Preto acabaria por se tornar no líder carismático do MNS, que adaptava ao contexto nacional o aparato e as estratégias de mobilização associadas ao Fascismo italiano (incluindo, entre outros elementos, a saudação romana e o uso de camisa e de símbolos próprios). Assim, ainda que o próprio Rolão Preto tenha por vezes procurado demarcar-se de fenómenos estrangeiros, é relativamente consensual entre os especialistas que este movimento representou a forma mais acabada de fascismo no nosso país, traduzindo-se a sua ideologia num “ultra-nacionalismo palingenético”, no qual o objetivo da mobilização popular e o culto da ação direta e dos valores heroicos eram componentes essenciais.
A ideologia de Rolão Preto nesta época está exposta em vários dos textos que escreveu em 1932, e que incluem Balizas_Directrizes-Alma e Para Além do Comunismo. Neles, encontramos um projeto político em que ainda está presente o corporativismo da fase integralista, mas aos quais se junta agora um culto explícito da juventude e uma intenção declarada de dinamizar a sociedade através de métodos revolucionários. Ademais, a reverência pela figura do rei, que deveria liderar o sistema corporativo, parece ter sido substituída pelo culto de um chefe carismático, mais próximo do modelo de Mussolini ou de Hitler (Martins 2020: 110). Assim, é possível dizer que o MNS representou uma “fascização” do conteúdo ideológico do IL e que o percurso de Rolão Preto, transitando da direita radical reacionária para o fascismo, encontra paralelos noutras figuras europeias, sendo o caso mais evidente o do francês Georges Valois. Entretanto, o crescimento do MNS causava apreensão à elite conservadora do regime, que então contava com António de Oliveira Salazar como seu novo líder. Espelhando as interações entre o conservadorismo autoritário e o fascismo – que também ocorreram noutros países, e que podiam incluir alianças e influências mútuas mas também, frequentemente, acirrados conflitos –, a contenda entre o ditador português e o líder do Nacional-Sindicalismo acentuou-se em 1933. Salazar limitou a ação política do MNS, fechando as suas sedes e proibindo as suas publicações, ao mesmo tempo que procurava – com sucesso – atrair para o seu lado algumas das alas mais “moderadas” do grupo de Rolão Preto, numa nota oficiosa de 29 de julho de 1934, o movimento acabaria por ser proibido, o que colocou um fim à história do fascismo enquanto movimento no Portugal de entreguerras.
Tendo vivido por algum tempo exilado em Espanha, onde estabeleceu laços com a Falange de Primo de Rivera, o antigo líder do MNS não deixaria de conspirar contra Salazar e de, inclusivamente, se envolver numa tentativa fracassada de golpe, a ter lugar em setembro de 1935. Na segunda metade da década de 1930, a sua ideologia era ainda a do fascismo, tendo apoiado os falangistas na guerra civil espanhola. Contudo, ao chegar a 1945, era evidente a sua desilusão com os regimes de Hitler e Mussolini, acusando-os, no livro A Traição Burguesa, de terem defraudado os ideais revolucionários. Mais tarde, Rolão Preto terá renegado definitivamente o fascismo, bem como pensadores – como Georges Sorel e Maurras – que o haviam influenciado no início da sua carreira política. Sem nunca ter abandonado o anti-salazarismo, Rolão Preto aproximou-se então da oposição democrática ao Estado Novo, ao apoiar as candidaturas de Norton de Matos (em 1949) e Humberto Delgado (em 1958). Segundo José Melo Alexandrino (2023: xvii), a biografia política do líder do MNS é constituída por dois grandes ciclos: um primeiro que vai de 1915 a 1935 e, depois de uma fase de transição, um segundo período que começa em 1945. Este último representou uma reconfiguração ideológica radical, que o teria levado a abraçar os princípios da democracia representativa e da liberdade individual. Francisco Rolão Preto viveria o suficiente para testemunhar a morte do seu maior rival, Salazar, bem como a queda do Estado Novo, com a Revolução de 1974, que acolheu positivamente. Depois de aderir ao Partido Popular Monárquico, faleceu a 18 de dezembro de 1977, deixando atrás de si um percurso rico em contradições, e que importa conhecer para compreender o século XX português.
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Indesejáveis | Indesejáveis | | |
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Description:Embora já usado internacionalmente em momentos anteriores, o conceito de “indesejável” foi consolidado no período entreguerras, em virtude da intensa circulação transnacional de pessoas a que se assistiu a partir dos inícios do século XX. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) incrementou este movimento e, cada vez mais, os Estados passaram a ser confrontados com a presença de estrangeiros dentro dos seus territórios. Por um variado conjunto de razões, mormente políticas e sociais, a presença de muitos destes estrangeiros deixava de ser considerada positiva e estes tornavam-se indesejáveis, relacionando-se esta categorização com condições que poderiam pôr em causa a ordem, a segurança e a estabilidade. Sob esta definição eram colocados os estrangeiros que, aos olhos dos governos, fossem contrários à ordem política, económica, moral e social vigente: entre estes, contavam-se os comunistas e os anarquistas, apologistas da revolução social, mas também, no âmbito criminal, vadios, mendigos, gatunos e ladrões, assim como o grupo formado por criminosos internacionais, ou seja, estrangeiros que desenvolviam atividades ilícitas num circuito que contemplava ligações transnacionais, em particular as associadas ao tráfico de mulheres para a prostituição (Menezes 1996: 91).
A consolidação, no entreguerras, do conceito de indesejável explica-se também por, ao longo desse período, se ter assistido a uma intensificação do debate a respeito do crime internacional, face ao incremento das ameaças políticas (associadas ao comunismo e ao anarquismo) e ao desenvolvimento de novas práticas de delito comum que comportavam uma dimensão transnacional. Em resposta, as polícias dos vários países sentiram necessidade de internacionalizar o seu diálogo e de colaborar de forma mais próxima e constante (Knepper 2011). Assim, pelos mais variados motivos, a presença de estrangeiros passou a ser frequentemente negada pelos governos. As convulsões bélicas e políticas que marcaram este período – como a Revolução Russa (1917), a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Guerra Civil de Espanha (1936-1939), a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ou a emergência de diversos regimes autoritários – induziram à deslocação massiva de pessoas e, juntamente com a crise económica de 1929, levaram os Estados a tomar uma atitude mais restritiva à entrada de estrangeiros nos seus territórios.
Assim, os Estados precisaram de definir que estrangeiros deveriam ser enquadrados na categoria de indesejáveis. Em Espanha, eram considerados indesejáveis aqueles cuja presença, por ser passível de ter um efeito negativo na tranquilidade pública, era percecionada como perigosa, ao passo que no Brasil tal categoria incluía todos os estrangeiros que, por qualquer razão, não se enquadrassem no modelo social imposto pela elite brasileira (Aizpuru 2010: 602). França, em 1937 (no contexto da Guerra Civil de Espanha), delimitou a presença de estrangeiros tendo por base critérios económicos, sociais e políticos. Entre os indesejáveis económicos contavam-se os estrangeiros que não tivessem contrato de trabalho válido no país; os indesejáveis sociais eram identificados com práticas como a prostituição e a delinquência; e os indesejáveis políticos eram os estrangeiros que se opunham à situação vigente (Pérez Rodríguez 2022: 49-50).
Portugal não ficou à margem desta dinâmica e também restringiu a entrada daqueles que, no entender do governo português, constituíam uma ameaça política ou social e eram considerados perigosos. Do ponto de vista social, essa perigosidade estava relacionada com a carência de meios de subsistência ou de domicílio fixo (como mendigos e vagabundos), ao passo que a perigosidade política se identificava com a prática de atividades que pudessem perturbar a ordem pública e a segurança do Estado (Aizpuru 2010: 602). Assim, o governo português categorizava como indesejáveis os estrangeiros que careciam da documentação legal exigida para entrar e permanecer no país, os que manifestavam ideias e políticas contrárias à “situação”, os que eram acusados da prática de diversos crimes, e os que não apresentavam meios de subsistência. No período entreguerras, destacou-se o caso dos refugiados, os quais eram maioritariamente vistos como indesejáveis, percecionados como criminosos e “portador[es] dos germes da revolução” (Chalante 2011: 62), pelo que a sua vigilância e o seu controlo se revestiam de prioridade para as autoridades portuguesas, empenhadas em impedir que essa presença influenciasse negativamente a sociedade portuguesa.
A secção internacional da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), criada em 1933, era a principal responsável pela vigilância de estrangeiros no país. Como tal, cabia-lhe controlar a presença de indesejáveis, incluindo opositores políticos, criminosos suspeitos ou acusados de diversos tipos de crime, e refugiados, sobretudo aqueles perseguidos pelo nazismo e pelo franquismo. A PVDE não estabelecia uma distinção clara entre o opositor político e o criminoso comum, e atribuía frequentemente a prática de diversos crimes aos estrangeiros indesejáveis, colocando numa mesma categoria o comunista, o anarquista, o judeu, o refugiado, o traficante e o falsificador. No contexto das perseguições nazis, que levaram a uma maior afluência de estrangeiros às fronteiras portuguesas, a polícia política procedia recorrentemente a uma associação entre judeu e comunista, identificando tais pessoas como “moral e politicamente indesejáveis”, ao mesmo tempo que lhes atribuía a prática de crimes de caráter transnacional, como o tráfico “brancas” e de estupefacientes (Gonçalves 2023: 241). Desta forma, em nome da ordem e da segurança do país, encontrava-se legitimada a repressão exercida sobre os indesejáveis.
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